Cabeçalho da página de Sérgio Paulo Silva e hiperligação para a hierarquia superior.

Sérgio Paulo Silva, Um santo lavado com vinho. Breve memória do meu S. Paio, 1ª ed., Estarreja, 2004, 48 págs.

São Paio da Torreira

Clicar para ampliar.

    A Imagem do Santo (Foto Guedes)

...Para obterem autorização dos pais para ir a uma festa, tinham de pôr a sua habilidade à prova, usando de certos rodeios com antecedência, pois já contavam com as condições e exigências a que teriam de se sujeitar: maior rendimento e boa vontade na execução dos trabalhos, obediência, pontualidade, etc., pois que tratando-se de uma festa que obrigava a perder dois dias de trabalho, como era a romaria ao S. Paio da Torreira, que se efectua anualmente a 8 de Setembro, mesmo na época das colheitas e das vindimas, os trabalhos teriam de ser adiantados, facto que os jovens compreendiam e cumpriam. E assim, obtida a autorização para ir à festa, os moços e as moças, dando pulos de contentes, entregavam-se a cochichar e a planear uns com os outros os preparativos para fazerem festa rija.

Passava-se isto, em geral, em cada agrupamento de cachopas que acamaradavam no mesmo serão, que logo davam parte aos rapazes seus conversados e aos tocadores (que os havia sempre) também frequentadores dos seus serões.

Fazendo um esforço de memória, vou tentar reconstituir, aproximadamente, várias passagens de uma narrativa de meu avô, que eu achei interessante. Ele massacrava-me a ter de ouvir factos passados no seu tempo de rapaz. Era este o assunto: ele era muito amigo de uma família, onde havia quatro filhos já espigadotes, sendo até companheiro do Manel, o mais velho, em Lisboa; passava-se isto em 1860. O pai deles era muito severo e os filhos, que se empenhavam em ir nesse ano ao S. Paio da Torreira, redobravam esforços no desempenho dos vários trabalhos, pois já contavam com as condições que o pai ia impor.

Clicar para ampliar.
A capela reconstruída. Frontaria singela sineira do ângulo da empena. (Foto Guedes)

Atiraram-se à vindima que ficou feita em dois dias, já tinham apanhado o milho temporão e, finalmente, veio a autorização do pai. Palavras do meu Avô: Antes da festa, eu e o Manel viemos de Lisboa a tempo de pisar o vinho e eu fui ajudá-los. Aquilo é que era andar! Todos se maniabam coma ratos! Cando sandaba no lagar a pisar o binho, já se fazia festa. O Chico, qu'era o mais nobo, andada à rasca pra mijar e o Manel só dezia: ó stipor .., tu num mijes no binho olha qu'eu mato-te! De repente apraceram à porta d'adega as duas irmãs do Manuel cum ôtras cachopas do sarão delas e antão eu cá disse logo: Oh cachopas!...Ólhim lá s'estão im modos destaró pé do lagar, ólhim que su binho num ferbe, já num se bai ó Sampaiol E cando uma delas se prantô munto brumêlha e deitá a varrer pra fora d'adega, foi uma risada... O Manele scangalhô sarrir pra mim a dezer: Ó Jacintro... ela fugiu pro mor da rabeca.

Segundo o meu avô, trabalharam todos com afinco. Enquanto o vinho fervia no lagar, viraram-se para o milho e com duas descamisadelas ao serão, feitas com a ajuda de vizinhos e acompanhadas com festa rija como era uso, as espigas foram para a eira a secar e com duas malhadelas o milho secou e meteu-se nas caixas e o vinho foi também posto nas pipas.

Clicar para ampliar.
Instantâneo do S. Paio da Torreira em 2003. (Foto Ana Alexandra Pereira)

O pai deles andava satisfeito e como estavam na antevéspera da festa, os filhos foram autorizados a fazer os seus preparativos e até os deixou levar o corno do vinho. Continuando a narrativa do meu avô, a coisa passou-se assim mais ou menos: a Maria, a mais velha, era quem resolvia tudo; meteram-se na casa do forno, o Manel cozeu o pão trigo para o farnel, a Maria foi ter com a mãe e pediu: nha mãe?. pra nós todos bô matar o galispo brumêlho, lebâmos uma febra e uma choiriça grande, stá bem? Resposta: O galo, cachopa? Num s'arremedeiam cum pitos mais piquenos? A Maria: pitos, nha mãe? Só um num chega pró Manel!

Cozinhou o galo, a chouriça, a febra e fez fatias O Chico preparou as borrachas para ir encher o vinho à adega e a Maria ordenou: Oh Chico! Leba tamêm o corno do pai quêle já deixô e até testô bem.

Clicar para ampliar.
Instantâneo do S. Paio da Torreira em 2003. (Foto Ana Alexandra Pereira)

A Rosa, a irmã mais nova, trouxe o açafate para acondicionar o farnel e a condessa grande para meter as roupas que hão-de vestir na festa. Tinha de ficar tudo pronto, porque no dia seguinte de manhã deviam seguir para o barco. Era chegada a véspera da festa e logo de manhã cedo aparece a Elvira já pronta, moça muito reinadia e amiga da casa, que ficou surpreendida por ver que ainda não estavam prontos, pois a Maria não tinha arranjado a cestada com o farnel no dia anterior e logo espalhafatou: Oh quechopas!... Seus stipores, num tem bregonha de num stardes prontas? Responde lá de dentro a Maria: stamos a caije eu já bô, stô a labar as pernas; olha tu a mais o Manele metam aí isso bem dentro do açafáti. Logo a Elvira, toda mexida: mexe-te Manele, ajuda.. .aqui, o tigelão das fatias, o galo, a febra; pega na choiriça Manele, met'aqui ó pé da febra, anda a ber se cabe... intala bem hómi, quisto é munta coisa e tem de sarrumar a caber tudo. O pão bai por cima. Oh Maria, num tens uma toalha mais linda pra cobrir diabo? Aquela dos bicos de renda grandes, candaste a pedir os Reis coela? Ah pois, esta mesma. Pronto... bamos lá imora. O Manel pôs a viola e a borracha nova do vinho a tiracolo, o Chico fez o mesmo com a outra borracha e o corno, as moças puseram os cestos à cabeça, a esteira nova lá foi também debaixo do braço e lá foram todos a caminho do barco, que devia estar acostado à Ribeira ou proximidades.

Clicar para ampliar.
Outra imagem da festa fixada por Guilherme Ferraz de Abreu.

A festa começava ao chegar ao barco. A mocidade aliviava-se dos seus carregos, dançava e cantava enquanto esperavam a maré propícia à partida dos seus barcos. Tempos houve em que, de Cacia, saíam 6 e mais barcos carregados de povo para o S. Paio da Torreira, rio abaixo até à ria e daqui à Torreira. O marinhão que alugara o barco para esta festa, já sabia que tinha de o apresentar estradado e limpo, porque o povo sentado em esteiras no, chão, tomava a refeição do meio-dia, enquanto o barco seguia a sua rota e os moços e moças dançavam ao som da viola nos paneiros do barco. Chegados à Torreira e acostado o barco ao cais, lá iam todos com os seus carregos a caminho do palheiro (pequena casa de madeira), já de antemão alugada e aí se instalavam até ao dia seguinte. Esteiras estendidas no chão, aí comiam, dançavam e dormiam parte da noite, no regresso da noitada. Mas nem todos preferiam os palheiros, alguns grupos combinavam ficar instalados nos seus barcos e então estes eram cobertos com oleados (muitas vezes a vela do barco servia de toldo) para lhes proporcionar melhor agasalho e diziam eles: isto é que é S. Paio! No dia seguinte todos se preparavam com os seus trajes suplentes para gozarem a festa em beleza.

Clicar para ampliar.
Postal antigo mostrando a festa do S. Paio, vista do lado sul.

Além de gozarem o extenso arraial, que vai da ria até à praia, nunca deixavam de ir molhar os pés ao mar e brincar na areia da praia, deitando abaixo uns aos outros ou sentando-se na areia em grupos a entreterem-se com o jogo do anel, o jogo das prendas e outros. Eu também adorava ir ao S. Paio e sempre que estava na terra nessa altura, nunca faltava. Já em catraio eu lá fui um ano e assisti na praia, aonde também fui com o meu grupo (com pessoas que, se ainda vivessem, rondariam hoje os 100 anos), a casos cheios de humor e linguado bem azedo, como este: um moço pôs­-se no rasto duma rapariga, uniu-lhe os pés pelos tornozelos, atirando com ela ao chão. Mas outra moça que topou o intento, seguiu-lhe no encalço e mal a outra caiu no chão, fê-lo cair também a ele e por cima da primeira moça. Como esta se virou de frente para cima logo a seguir à queda, aconteceu que o moço ao cair ficou escarranchado e estendido em cima dela, mesmo em posição que, presenciada noutro local, se tornaria suspeita. Isto provocou gargalhada geral e estrondosa de todos os presentes.

O moço pôs-se repentinamente de pé, muito comprometido e ela reagiu: Olhe queu num andaba na folia cum bocê, seu pantomineiro... s'eu Ih’agarro nos fundilhos bocê nim é hóme nim é nada!...Logo ele: Nos furdilhos não, pro que não tinha und’agarrar, só s'agarrase noitro lado. Ela: (Já de pé) Bocê arrede-se lá pro largo...num m'agoire... Ele não se fica: Num s'arrenegue cachopa... olhe qu'eu num fiz isso pro trabessura! A moça que fez cair o rapaz, adverte: Ó quechopa! Num t'azangues tanto... stás praí sganiçada e toda ancha, u... credo!?.., Isto é Sampaio... e olha co Jaquim inté num se scarranchô cum ronha, pro caté é um moço recatado; eu é co botê ó chão e ele trambolhô pra riba de ti! Responde a outra: Que stás tu pràí a grunhir? Sume-te tu tamêm daqui!... O que tu és é uma inculcadeira. Virou­-lhe as costas e afastou-se. E a coisa ficou por aqui. Mas depois passou-se mais outro caso, originando num castigo dado a uma moça num jogo das prendas: a moça foi castigada a ir desatar as fitas do avental a uma velhinha, o que ela cumpriu; uma breve satisfação à velhota e as fitas ficaram desatadas, mas a velhota também desatou logo a língua: sua desabregonhada! In bês de me desapertares o abintal proque num fostes desapartar aí a braguilha de calquer figurão da tua súcia? Ela: Stá toda arrenegada tiazinha? Num foi pra fazer poico; isto foi um mando que me calhô, pro môr do jogo das prendas! A mãe da moça: Que stá bocê praí a boquejar sua belha peçonhenta?... Olhe quela é minha filha e, demo seja surdo..., num tem nada que se Ih'apônti!... Cando Deus quer se calhar bocê no seu tempo é qu'estaba acostumada á'garrar a braguilha dos homes!... A velhota ameaçadora, arrancando de um tamanco: Tamêm tu me queres desinquetar grande bácora! Ora anda pra cá!... A outra avançou, todos se levantaram para acomodar as mulheres e o caso não foi mais longe.

Começámos a sair da praia em direcção à ria, quando aparece uma mulher do nosso grupo muito esbaforida, que se nos dirige: Oh gente! Ando há ca tempos à cata de bocês... maneiem-se que stá chegada a maré pró barco ir inmora... Um do grupo pergunta-lhe: Antão qu'horas são? Resposta: Bós num oibiram, as quatro já são dadas! Lá fomos todos a correr para o palheiro, pegámos no que era nosso e acelerámos a caminho do barco. Meia hora depois já o barco iniciava a largada para Cacia, com estalido de foguetes no ar e a mocidade cantando e dançando até ao Murçainho, onde os esperavam familiares e amigos; desembarcaram para continuar aqui a festa: comiam e bebiam o que restava, mais umas danças. Era aqui o S. Paio pequenino. No caminho para casa era sempre festa, com foguetes no ar, exibindo as pandeiretas e as enfiaduras de regueifas compradas na festa.

Bartolomeu Conde, in "Cacia e Baixo Vouga"
 

 
Página anterior Página inicial Página seguinte