A
Imagem do Santo (Foto Guedes) |
...Para obterem autorização dos pais para ir a uma festa,
tinham de pôr a sua habilidade à prova, usando de certos rodeios com
antecedência, pois já contavam com as condições e exigências a que
teriam de se sujeitar: maior rendimento e boa vontade na execução
dos trabalhos, obediência, pontualidade, etc., pois que tratando-se
de uma festa que obrigava a perder dois dias de trabalho, como era a
romaria ao S. Paio da Torreira, que se efectua anualmente a 8 de
Setembro, mesmo na época das colheitas e das vindimas, os trabalhos
teriam de ser adiantados, facto que os jovens compreendiam e
cumpriam. E assim, obtida a autorização para ir à festa, os moços e
as moças, dando pulos de contentes, entregavam-se a cochichar e a
planear uns com os outros os preparativos para fazerem festa rija. |
Passava-se isto, em geral, em cada agrupamento de cachopas
que acamaradavam no mesmo serão, que logo davam parte aos rapazes seus
conversados e aos tocadores (que os havia sempre) também frequentadores
dos seus serões.
Fazendo um esforço de memória, vou tentar reconstituir,
aproximadamente, várias passagens de uma narrativa de meu avô, que eu
achei interessante. Ele massacrava-me a ter de ouvir factos passados no
seu tempo de rapaz. Era este o assunto: ele era muito amigo de uma
família, onde havia quatro filhos já espigadotes, sendo até companheiro
do Manel, o mais velho, em Lisboa; passava-se isto em 1860. O pai deles
era muito severo e os filhos, que se empenhavam em ir nesse ano ao S.
Paio da Torreira, redobravam esforços no desempenho dos vários
trabalhos, pois já contavam com as condições que o pai ia impor.
A capela reconstruída.
Frontaria singela sineira do ângulo da empena. (Foto Guedes)
Atiraram-se à vindima que ficou feita em dois dias, já tinham
apanhado o milho temporão e, finalmente, veio a autorização do pai.
Palavras do meu Avô: Antes da festa, eu e o Manel viemos de Lisboa a
tempo de pisar o vinho e eu fui ajudá-los. Aquilo é que era andar! Todos
se maniabam coma ratos! Cando sandaba no lagar a pisar o binho, já se
fazia festa. O Chico, qu'era o mais nobo, andada à rasca pra mijar e o
Manel só dezia: ó stipor .., tu num mijes no binho olha qu'eu mato-te!
De repente apraceram à porta d'adega as duas irmãs do Manuel cum ôtras
cachopas do sarão delas e antão eu cá disse logo: Oh cachopas!...Ólhim
lá s'estão im modos destaró pé do lagar, ólhim que su binho num ferbe,
já num se bai ó Sampaiol E cando uma delas se prantô munto brumêlha e
deitá a varrer pra fora d'adega, foi uma risada... O Manele scangalhô
sarrir pra mim a dezer: Ó Jacintro... ela fugiu pro mor da rabeca.
Segundo o meu avô, trabalharam todos com afinco. Enquanto o
vinho fervia no lagar, viraram-se para o milho e com duas descamisadelas
ao serão, feitas com a ajuda de vizinhos e acompanhadas com festa rija
como era uso, as espigas foram para a eira a secar e com duas malhadelas
o milho secou e meteu-se nas caixas e o vinho foi também posto nas
pipas.
Instantâneo do S. Paio da
Torreira em 2003. (Foto Ana Alexandra Pereira)
O pai deles andava satisfeito e como estavam na antevéspera
da festa, os filhos foram autorizados a fazer os seus preparativos e até
os deixou levar o corno do vinho. Continuando a narrativa do meu avô, a
coisa passou-se assim mais ou menos: a Maria, a mais velha, era quem
resolvia tudo; meteram-se na casa do forno, o Manel cozeu o pão trigo
para o farnel, a Maria foi ter com a mãe e pediu: nha mãe?. pra nós
todos bô matar o galispo brumêlho, lebâmos uma febra e uma choiriça
grande, stá bem? Resposta: O galo, cachopa? Num s'arremedeiam cum pitos
mais piquenos? A Maria: pitos, nha mãe? Só um num chega pró Manel!
Cozinhou o galo, a chouriça, a febra e fez fatias O Chico
preparou as borrachas para ir encher o vinho à adega e a Maria ordenou:
Oh Chico! Leba tamêm o corno do pai quêle já deixô e até testô bem.
Instantâneo do S. Paio da
Torreira em 2003. (Foto Ana Alexandra Pereira)
A Rosa, a irmã mais nova, trouxe o açafate para acondicionar
o farnel e a condessa grande para meter as roupas que hão-de vestir na
festa. Tinha de ficar tudo pronto, porque no dia seguinte de manhã
deviam seguir para o barco. Era chegada a véspera da festa e logo de
manhã cedo aparece a Elvira já pronta, moça muito reinadia e amiga da
casa, que ficou surpreendida por ver que ainda não estavam prontos, pois
a Maria não tinha arranjado a cestada com o farnel no dia anterior e
logo espalhafatou: Oh quechopas!... Seus stipores, num tem bregonha
de num stardes prontas? Responde lá de dentro a Maria: stamos a caije eu
já bô, stô a labar as pernas; olha tu a mais o Manele metam aí isso bem
dentro do açafáti. Logo a Elvira, toda mexida: mexe-te Manele,
ajuda.. .aqui, o tigelão das fatias, o galo, a febra; pega na choiriça
Manele, met'aqui ó pé da febra, anda a ber se cabe... intala bem hómi,
quisto é munta coisa e tem de sarrumar a caber tudo. O pão bai por cima.
Oh Maria, num tens uma toalha mais linda pra cobrir diabo? Aquela dos
bicos de renda grandes, candaste a pedir os Reis coela? Ah pois, esta
mesma. Pronto... bamos lá imora. O Manel pôs a viola e a borracha
nova do vinho a tiracolo, o Chico fez o mesmo com a outra borracha e o
corno, as moças puseram os cestos à cabeça, a esteira nova lá foi também
debaixo do braço e lá foram todos a caminho do barco, que devia estar
acostado à Ribeira ou proximidades.
Outra imagem da festa fixada
por Guilherme Ferraz de Abreu.
A festa começava ao chegar ao barco. A mocidade aliviava-se
dos seus carregos, dançava e cantava enquanto esperavam a maré propícia
à partida dos seus barcos. Tempos houve em que, de Cacia, saíam 6 e mais
barcos carregados de povo para o S. Paio da Torreira, rio abaixo até à
ria e daqui à Torreira. O marinhão que alugara o barco para esta festa,
já sabia que tinha de o apresentar estradado e limpo, porque o povo
sentado em esteiras no, chão, tomava a refeição do meio-dia, enquanto o
barco seguia a sua rota e os moços e moças dançavam ao som da viola nos
paneiros do barco. Chegados à Torreira e acostado o barco ao cais, lá
iam todos com os seus carregos a caminho do palheiro (pequena casa de
madeira), já de antemão alugada e aí se instalavam até ao dia seguinte.
Esteiras estendidas no chão, aí comiam, dançavam e dormiam parte da
noite, no regresso da noitada. Mas nem todos preferiam os palheiros,
alguns grupos combinavam ficar instalados nos seus barcos e então estes
eram cobertos com oleados (muitas vezes a vela do barco servia de toldo)
para lhes proporcionar melhor agasalho e diziam eles: isto é que é S.
Paio! No dia seguinte todos se preparavam com os seus trajes suplentes
para gozarem a festa em beleza.
Postal antigo mostrando a
festa do S. Paio, vista do lado sul.
Além de gozarem o extenso arraial, que vai da ria até à
praia, nunca deixavam de ir molhar os pés ao mar e brincar na areia da
praia, deitando abaixo uns aos outros ou sentando-se na areia em grupos
a entreterem-se com o jogo do anel, o jogo das prendas e outros. Eu
também adorava ir ao S. Paio e sempre que estava na terra nessa altura,
nunca faltava. Já em catraio eu lá fui um ano e assisti na praia, aonde
também fui com o meu grupo (com pessoas que, se ainda vivessem,
rondariam hoje os 100 anos), a casos cheios de humor e linguado bem
azedo, como este: um moço pôs-se no rasto duma rapariga, uniu-lhe os
pés pelos tornozelos, atirando com ela ao chão. Mas outra moça que topou
o intento, seguiu-lhe no encalço e mal a outra caiu no chão, fê-lo cair
também a ele e por cima da primeira moça. Como esta se virou de frente
para cima logo a seguir à queda, aconteceu que o moço ao cair ficou
escarranchado e estendido em cima dela, mesmo em posição que,
presenciada noutro local, se tornaria suspeita. Isto provocou gargalhada
geral e estrondosa de todos os presentes.
O moço pôs-se repentinamente de pé, muito comprometido e ela
reagiu: Olhe queu num andaba na folia cum bocê, seu pantomineiro...
s'eu Ih’agarro nos fundilhos bocê nim é hóme nim é nada!...Logo ele:
Nos furdilhos não, pro que não tinha und’agarrar, só s'agarrase
noitro lado. Ela: (Já de pé) Bocê arrede-se lá pro largo...num
m'agoire... Ele não se fica: Num s'arrenegue cachopa... olhe
qu'eu num fiz isso pro trabessura! A moça que fez cair o rapaz,
adverte: Ó quechopa! Num t'azangues tanto... stás praí sganiçada e
toda ancha, u... credo!?.., Isto é Sampaio... e olha co Jaquim inté num
se scarranchô cum ronha, pro caté é um moço recatado; eu é co botê ó
chão e ele trambolhô pra riba de ti! Responde a outra: Que stás
tu pràí a grunhir? Sume-te tu tamêm daqui!... O que tu és é uma
inculcadeira. Virou-lhe as costas e afastou-se. E a coisa ficou por
aqui. Mas depois passou-se mais outro caso, originando num castigo dado
a uma moça num jogo das prendas: a moça foi castigada a ir desatar as
fitas do avental a uma velhinha, o que ela cumpriu; uma breve satisfação
à velhota e as fitas ficaram desatadas, mas a velhota também desatou
logo a língua: sua desabregonhada! In bês de me desapertares o
abintal proque num fostes desapartar aí a braguilha de calquer figurão
da tua súcia? Ela: Stá toda arrenegada tiazinha? Num foi pra
fazer poico; isto foi um mando que me calhô, pro môr do jogo das
prendas! A mãe da moça: Que stá bocê praí a boquejar sua belha
peçonhenta?... Olhe quela é minha filha e, demo seja surdo..., num tem
nada que se Ih'apônti!... Cando Deus quer se calhar bocê no seu tempo é
qu'estaba acostumada á'garrar a braguilha dos homes!... A velhota
ameaçadora, arrancando de um tamanco: Tamêm tu me queres desinquetar
grande bácora! Ora anda pra cá!... A outra avançou, todos se
levantaram para acomodar as mulheres e o caso não foi mais longe.
Começámos a sair da praia em direcção à ria, quando aparece
uma mulher do nosso grupo muito esbaforida, que se nos dirige: Oh
gente! Ando há ca tempos à cata de bocês... maneiem-se que stá chegada a
maré pró barco ir inmora... Um do grupo pergunta-lhe: Antão
qu'horas são? Resposta: Bós num oibiram, as quatro já são dadas!
Lá fomos todos a correr para o palheiro, pegámos no que era nosso e
acelerámos a caminho do barco. Meia hora depois já o barco iniciava a
largada para Cacia, com estalido de foguetes no ar e a mocidade cantando
e dançando até ao Murçainho, onde os esperavam familiares e amigos;
desembarcaram para continuar aqui a festa: comiam e bebiam o que
restava, mais umas danças. Era aqui o S. Paio pequenino. No caminho para
casa era sempre festa, com foguetes no ar, exibindo as pandeiretas e as
enfiaduras de regueifas compradas na festa.
Bartolomeu Conde, in "Cacia e Baixo Vouga"
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