Ali se nota o fervor
religioso. A procissão vista lá do alto pela objectiva da Foto Guedes.
Se calha tempo bom, céu azul, sol quente, ar levemente
agitado, não há passeio fluvial que rivalize com este que se dá na ida
para o São Paio.
De Mira ao Furadouro, por toda a orla dessa vasta laguna que
é a Ria de Aveiro, seguem de velas enfunadas e enfeitadas com
galhardetes, flâmulas, bandeiras e mil variados panos muito garridos –
flutuando ao vento, tremeluzindo na água, as cambiantes como em
caleidoscópio centenas e centenas de barcos moliceiros e mercanteis.
Partem de Mira, Costa Nova, Barra, S. Jacinto e Furadouro,
modestíssimas praias ribeirinhas, homens e mulheres de todas as idades,
pescadores na maioria, que levam seus trajes domingueiros (heterogéneos,
mas curiosos!) e a alma como pura alegria, sã expansividade, para saltar
nas areias da Torreira, saltar infantilmente, mas saltar de vontade, rir
e cantar e beber à farta, comer um pouco mais e melhor, comer
desafogadamente, reinar, gozar a vida no que ela tem de espiritual e
material, de poético e prosaico.
Armações do arraial:
grosseiras e simultaneamente graciosas. (Foto Guedes)
De Ílhavo, Aveiro, Estarreja, Murtosa e Ovar acorrem pessoas
de todas as classes, que vão ao São Paio para verem a festa e se
refastelarem nas areias contemplando a vastidão do Mar e admirando a
Ria, sempre com novos encantos, cada vez mais bela!
E é vê-los então, a 7 e 8 de Setembro, encobertos nas dunas –
vulgo, cordeirinhos – ou sobranceiros a elas, como se juntam aos
magotes, às rachadas, pitorescos e animosos, de corpo e alma, em
dilatada alegria, sacrificando o interesse; prestando um culto franco à
vida!...
Ali se nota o fervor religioso, o fanatismo dos velhos que
algum dia temeram as maleitas – sezões! – e, agora, livres delas, trazem
oferendas ao Santo que os agraciou.
Surpreende-se a irreligiosidade dos novos, que tomam a festa
como foco de diversões, e dão largas aos instintos mais soezes,
cevando-os em gozo irreverente, maligno, que lhes avilta a alma e
arruína o corpo.
A multidão na Avenida Hintze
Ribeiro. (Foto Guedes, década de 1940)
Encontram-se, na sua quase pureza nativa, no seu maior
encanto, primores de arte rústica, revelada na forma, pintura e dísticos
das embarcações, nos cantares do povo, na música das violas, pífaros e
harmónios, nas danças regionais, chulas mas admiráveis, dignas da maior
atenção, na procissão com seus anjinhos de face tisnada e pé descalço, e
até nas armações do arraial, grosseiras e ao mesmo tempo graciosas.
Tipos curiosíssimos, bêbados, embriagados, toldados de vinho
e alegria; almas sentimentais, que, por estranhos mistérios, ficam
tristes; tanto mais tristes quanto maior vai a alegria a seu lado; caras
singulares tipo único, mas sem pinturas! – formosas na sua rusticidade,
corpo vigoroso de trabalhador, e indumentária velha, antiquíssima,
desencantada naquele dia «que será o derradeiro das idas ao São Paio»;
fazem desta festa um precioso manancial de motivos artísticos!
Mas nem os poetas, nem os amigos do folclore, nem os
pintores, nenhuns desses artistas e devotos da arte, tantas vezes tão
pobres de originalidade, e tantos outros falhos de valor, somente por
falta de imaginação, nem uns nem outros se entregam à exploração de mina
tão rica!...
E a Comissão de Turismo, que tanto promete, e tanto poderia
fazer, essa também não toma a seu cargo uma propaganda intensa da Ria de
Aveiro e do São Paio da Torreira, local mais característico e mais belo
destes sítios...
Pobreza de iniciativas!... Exiguidade de gente esforçada!...
Mina soberba, que ficará desprezada!
E, contudo, não há do Norte ao Sul, da Espanha ao Mar, praia
e arraial mais ricos de originalidade, de mais característicos e mais
encantadores do que a Torreira e o São Paio.
Dr. Joaquim Soares Rodrigues da Silva in Amor à Terra
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