Perdigão perdeu a pena
Não há
mal que lhe não venha
(Camões) (1)
Cirandam penas de perdiz no meu espaço e já são cacos. Quando estavam
dispostas como as telhas de um telhado, tinham outra harmonia, eram
infinitamente mais belas, apesar do animal estar já sem vida. E tiveram
sempre peculiar beleza desde a nascença.
São
bonitos os pintainhos quando saem dos cascarrões. Sem os olhos
deslumbrados dos pirilampos-mágicos, têm a mesma ternura de bonequinhos
animados esgueirando-se por entre os ervanços à cata dos primeiros
insectos. São assim também os javalis, quando nascem, raiados,
disfarçados pelos matos atrás da marrana. Vai-se a beleza na muda da
pena, na muda do pelo. Se soubessem que são rapazolas cheios de acne e
parvoíce, nem com barba nem sem ela mas sempre presumidos e parvos...
Mas a sua realidade diária é outra, a sua luta é bem outra. Na mudança
da pena todas as aves são vulneráveis, não há mal que lhes não venha...
A feia
lagarta, a comilona lagarta, o asqueroso verme "morre" e ressuscita numa
borboleta que encanta o mundo. O homem, com todos os vícios e defeitos,
o ser imperfeito ganha asas de anjo e purifica com a sua beleza
metamorfoseada, se não o mundo, pelo menos o imaginário. Os franganotes
mudam a voz e as vestes como os javalis o riscado. Agora, que podem
singrar no desamparo, a beleza renasce, mais resplandecente. No final do
Verão, quando o Outono emitir os primeiros sinais, todos terão já as
suas definitivas túnicas, que farão deles a ave mais bela e cobiçada de
toda a península ibérica.
Imóvel
Prolongando em ave o granito
A
perdiz contempla o montado sem fim
À hora
em que o sol mostra os vermelhos
Os
breves
Os da
despedida
Amanhã
é dia de caça
Adeus
princesa
Este
belo e perturbador poema cacei-o no livro de Joaquim Palma “Viagem ao
Alentejo Mais Longe". Aos vermelhos solares das suas penas se
referia, sobrepondo-lhe os cinzentos da angústia. Outro poeta, Fausto
José, já tinha
esgotado o que havia a dizer dos vermelhos das pernas:
Como o
senhor Bispo, o bom Bispo velho
Calça
meia fina de cetim vermelho
Restando apenas o coral do bico e o timbre do seu canto, que também tem
cambiantes solares, e o barro do dorso crestado pelo sol de infindáveis
séculos.
Por
tantas vezes ter demorado o olhar no movimento penoso da sombra que o
toco calcinado de ferro arrastava sobre as marcas maceradas que outros
ponteiros tinham gravado no granito, imaginei que, naquele instante,
quem passasse pelo adro e olhasse a torre, notaria que o dia estava a
meio. Pela posição do sol, pelo cansaço dos cães, pelo pasmo dos montes,
eram horas de terminar a aventura, de voltar uma página que tinha sido
adversa.
Desafogada a cintura do cilício da cartucheira, metemos os cães no
atrelado e fomos almoçar. Agora, a sombra do velho toco viajaria
apressada pelo musgo da pedra e a volta da tarde já pouco mais seria que
lançar nas cartas negras as derradeiras moedas.
De
retorno à liberdade do monte, os cães recuperavam o ânimo, mas era
indisfarçável o seu cansaço, que se enroscava nos nossos passos dentro
do vasto lagar onde pisávamos as uvas do desalento. Ao fundo, lá bem ao
fundo, o sol ia mostrando os vermelhos, os breves, os da despedida nos
contrafortes da vigorosa serra da Malcata. Não tardaria muito a ser
noite.
Quando
já encetávamos o caminho de regresso, num esforço insensato, alarguei a
volta, afastando-me dos companheiros e assim deles me perdendo.
Recuperei a rota subindo e atalhando caminho por um carvalhal que
envolvia uma área de lameiros. Tresmalhados entre os carvalhos,
despontavam alguns penedos que ajudavam a escurecer o dia. Subitamente,
por entre os diferentes recantos das giestas e dos fetos, alguns
perdigões começaram a cantar como se me desafiassem, ora a descer, ora a
subir, tentando desorientar-me e ludibriar como se ludibria uma raposa
velha de passagem pelas cercanias do local elegido para a pernoita. As
cadelas, espevitadas pelas emanações e pelo timbre dos seus cantos,
recobravam ânimos anquilosados, mas as perdizes fugiam a pés,
furtando-se-Ihes, sem arriscarem voos fatais. Fazia-se noite e não me
permitia a luminosidade muitos lances de capote. Urgia prosseguir a
caminhada.
Um
perdigão (o mais velho? O mais afoito? O mais inexperiente?) saltou, por
instantes, para o cocuruto dum penedo como se fosse um navio a
espreitar, na crista da vaga, a súbita tormenta. Um encare rápido, um
tiro no crepúsculo e aquele perdigão teria pago com a vida a valentia ou
o atrevimento. Mas os vermelhos do poente tinham-me ofuscado a vontade
e permiti que voasse encoberto pelo granito: Boa Noite, Princesa!
Prossegui a urgente caminhada ao encontro dos meus companheiros, que
estariam já em sobressalto. A serra mergulhou no silêncio. Ganhou a
carta vermelha.
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(1)
Perdigão perdeu a pena
Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.
Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.
Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.
Luís de Camões
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