Isto
da poesia tem que se lhe diga. Que poesia se poderá encontrar nos bolsos
camuflados duma equipa de amigos que parou numa área de serviço, alta
madrugada, para tomar café, a caminho dos tordos? Ou de um caçador
qualquer que tem os olhos cativos na cauda do cão ou na nesga de céu que
o bailado da canízia o deixa vislumbrar na espera das narcejas? Muitos
serão os chamados e poucos, muito poucos os escolhidos. Talvez que haja
poesia, um resto de poesia nas gravuras rupestres do Alto Côa ou nas
grutas de Altamira. Acontece que o olhar tem instantes que se fundem
mais com a fantasia que com a realidade áspera. Eu, pessoalmente,
tacteei a poesia que encontrei no bronze dumas esculturas cinegéticas em
Gata (Sierra de Gata, Cáceres) e senti-me bem; eu, pessoalmente,
caminhando no acaso da charneca, escutei o choro dos ralos e fiquei
aflito.
Nos
parcos limites da nossa courela ninguém como Fausto José, matador de
javalis, ceifeiro de perdizes, andarilho nas fragas e nos montes
pintados de que falava João de Araújo Correia, o soube ciciar. Só lendo
a sua poesia se poderão perceber as palavras de Agustina, recordando os
seus encontros com o caçador de Armamar na casa poveira de Florbela
Espanca. Caçador de alma e coração, Fausto pairava e Agustina,
prestidigitadora de palavras, não percebeu. Agustina divisou surdez onde
deveria ter imaginado o planar duma águia que predava apenas para que
fosse mais cristalina a sua poesia. Teixeira de Pascoaes tê-lo-ia
percebido e franqueado as portas do seu reduto de fantasmas, abrindo os
braços ao discípulo.
Tem
que se lhe diga esta coisa da poesia, sobretudo quando mete o mundo dos
bichos e a sua caça. Sabemos como os árabes foram a isso sensíveis e,
talvez pela grande herança, os espanhóis. Por aqui, nem tanto, mas
alguns, mesmo que, ao de leve, afloraram esse bordão. Fernando Assis
Pacheco foi um deles. Disso dei notícia num outro trabalho, mas insisti
num serão de acaso em casa do Carlos Eurico. O Carlos Eurico penou em
Angola. O Assis Pacheco também, em Zala. Depois, muitos anos depois, o
Assis escreveu Walt e o Eurico não gostou e fez uma daquelas cruzes ao
Assis como as que faziam antigamente. Claro, eu sei que o Assis lhe
tinha pregado uma desfeita noutras batalhas em idade em que o espelho
nos enfeitiça e talvez residisse aí alguma explicação do enjoo... Gabei
ao Eurico a poesia do Fernando e ofereci-lhe dois livros, chamando-lhe
particularmente a atenção para alguns poemas, alguns sonetos dos livros
em questão (Variações Em Sousa e Respiração Assistida) mas ele pô-los
de lado. Na altura, o Carlos Eurico andava enfronhado na escrita do seu
livro, As Horas Vagas da Guerra, e eu não dei significativo valor
ao desprezo a que ele votara a oferta. Passaram algumas semanas e, um
dia, o Carlos Eurico telefonou-me à tarde:
– É só
para te dizer que tens razão, que o Assis Pacheco é, na verdade, muito
bom, que dou o braço a torcer...
O
Carlos Eurico era um leitor compulsivo, mas atento. Ao longo da vida
gastámos serões sem conta falando do que vinha à rede, D. Segundo Sombra
ou Aquilino, AI Redor deI Caballo Español ou da Lolita. Tudo tinha
cabimento no entrelaçar dos nossos copos, mesmo a política em que
éramos contrários.
Algumas vezes o acompanhei na caça. Não muitas, porque a minha equipa
era outra. Algumas. Medelim, Rosmaninhal, Sabugal, Idanha, Ouguela, por
aí andámos. Particularmente recordarei uma madrugada, com ele e o Zé
Manel Rodrigues, aos patos. Fomos caçar com negaças para perto da Ilha
dos Ovos, junto ao Monte Farinha, e saímos para a função de madrugada
(duas? três da manhã?). Na estrada para S. Jacinto não se via viva alma.
Arriámos a canoa e, enquanto cortávamos uns ramalhos, começaram a ver-se
very-lights verdes e vermelhos serpenteando pelo céu. Era malta
da Base de S. Jacinto que andava em manobras e de que apenas se
descortinou um pneumático deslizante. Metemo-nos à ria, também nós em
manobras, e atravessámos o canal. O Zé Manel dispôs, camuflou-se a
canoa numa regueira e instalámo-nos com a descrição possível.
Os
primeiros raios da manhã começavam a despontar muito ao longe, no
Caramulo. O silêncio flutuava, misturado com a névoa fria com que a ria
ia despertando. Passado um bocado, o Zé Manel pôs-se a berrar, com o
chamariz que dava um som atrevido de gaita ferrugenta. Comentei em voz
baixa para o Eurico, de quem estava próximo, que com tal chinfrineira
não viria um. Estás enganado, disse-me, e assinalou-me, nos confins do
horizonte, um bando pequeno.
Efectivamente, os patos começaram a voltear, dirigindo-se a esquadrilha
para o nosso poiso. Passou então o chamariz a ser outro, de fole.
Aproximaram-se os patos, rodaram, rodaram mas não baixaram. E lá se
foram pelo céu fora. Após alguma espera, o Zé Manel voltou a berrar com
o chamariz. Na lonjura nova romaria de adens alterou a rota,
comportando-se como os primeiros. Nessa altura eu caçava com uma SKB de
canos sobrepostos que ia buscar a caça onde ela se julgava já a salvo.
Os patos rodavam, rodavam, rodavam e quando se percebeu que também não
se fariam às negaças estive para atirar. Poderia ter arriado um ou dois,
mas já a festa não seria de todos; e não atirei. Entretanto, fez-se dia
claro e pudemos ver, a descoberto, um pouco ao largo, um artistão aqui
de Estarreja, gosma conhecido a quem teriam chegado notícias das
anteriores caçadas do Zé Manel e do Eurico. Tinha vindo às sobras. Ficou
explicado o comportamento dos patos e pusemo-nos logo ao fresco,
provavelmente para desgosto do indesejável confrade, que talvez ainda
alimentasse esperanças de ver funcionar melhor as negaças nesse dia dum
mês em que os patos andavam tão compostos de plumagem e de gordura.
Lutando contra a doença, no isolamento e na solidão, o meu amigo Carlos
Eurico escrevia o seu livro. Em melhores tempos ele tinha ousado uns
contos que envolviam figuras locais e episódios vulgares como fio da
meada. Foram talvez um bom treino de mão. Passaram anos e pedi-lhe que
escrevesse qualquer coisa sobre caça. Quando lhe fiz esse desafio, tinha
em ideia a caça menor que ele tinha praticado intensamente e de que,
como ocasional companheiro, eu conhecia matéria para moldar. Contudo,
foi para Angola que se virou o seu pensamento e assim nasceu o seu livro
As Horas Vagas da Guerra, que escreveu apaixonadamente.
Acompanhei a elaboração desde o início e continuámos como no passado:
na leitura e discussão dos capítulos; de repente já estávamos a falar da
política local, da garupa duma conhecida qualquer, de veleiros ou de
compotas de pêra... Acabado o livro, enveredou pela poesia. Talvez
porque tivesse a campainha do meu pedido inicial a zunir-lhe nos
ouvidos, telefonou-me e anunciou-me ter escrito uma coisa para mim. À
noite, lá estava eu para o copo e para a poesia. Eis o que nessa noite
me ofereceu:
Calendário
Eu não
sei se isto são poemas
Se só
saudades da caça, estes os temas
Acerca
dos tempos melhores que já gastei...
Não
sei
Sei
que lembro
As
rolas e as codornas nos milhos de Setembro
E os
carros de bois, nos seus vagares
Com as
dornas e os primeiros cachos
P'rós
lagares
Depois, Outubro entrado, às perdizes
Com o
Red, setter de esplêndidos narizes
Elas
de bico abaixo, bólidos de penas
Caídas
redondas com tiros de poemas,
Ou
vindas de papo, mortas pela lei
De ser
ao prumo esse tiro que é de rei
Ou
arrancadas de largo cada para seu lado
A
emoção do tiro bem doblado
E
depois, lá pelo meio de Novembro,
Vindas
do norte ao inicial nevão
As
damas do bosque. Elas aí estão
Que as
primas, as narcejas ziguezagueantes
Tinham
já chegado pelo fim do Verão
Com
seus voos inesperados. Fulgurantes
A
deixar-nos um beijo na veloz partida
E
voando até às nuvens na pânica subida...
Essas,
se as não conseguia com um tiro bem chofrado
Emendava-as com o segundo, mais esperado.
E as
noites de Verão, sob milhares de estrelas
À
espera dos patos, no campo adormecido
O
sibilar das asas a mostrar aos olhos do ouvido
Os
reais em bandadas sobre nós e nós sem vê-las
Três
ou quatro, um casal, outra bandada,
As
contas se fariam no voltar da madrugada...
Pelo
piado assobio distinguindo os alfanados
Dos
lavancos dos poderosos voos sibilados
Mais
agudo e rápido se fossem arrabíos
Esses
vindos mais tarde com os primeiros frios
Juntos
com cerrados bandos de velozes marrequinhas
Rasando os voos e, como foguetes, subindo as marinhas
Depois, quando a cheia enchia o campo enregelado
E
havia o luar encoberto e cheio, desejado,
Na
caçadeira a vogar silenciosa
Ao
levante dos patos no lento procurar
A pôr
à vara o Parraco, que o fazia
Sem se
ouvir um som no navegar
Até à
proa saltar a pataria!...
Noites
de poucas vezes, mas a recordar,
Por
estas jóias singulares de fantasia!
E nas
manhãs de neblina, às damas de veludo
Nunca
me esquecia do pinhal miúdo
Onde
vi a primeira
Aí,
sempre, ano após ano, não falhava,
Uma
galinhola se acoitava
No
eleito e denso bastio da valeira
Ah,
tantas boas lembranças, tantas...
E
quantas saudades da caça, ai quantas, quantas!...
Alguns
tiros errados, alguns dias adversos,
Não
serão lembrados.
Más
recordações, não cabem nestes versos!...
Para o
Sérgio Paulo Silva com a amizade
do Carlos Eurico, Outubro 2006
Poucos
meses depois desta noite o filho telefonou-me dizendo-me que a vela se
tinha apagado...
Nós,
caçadores, não penduramos na trela os amigos que se vão. São antes tiros
que nos saem pela culatra e para os quais não temos ganchos, que
queríamos que fossem, como uma galinhola ou uma perdiz especial,
devolver à vida mas que não somos capazes.
Acabou-se. Posso apenas numa leitura ainda titubeante dos seus versos
reinventar boas lembranças. Tiros errados, dias adversos não podem ser
lembrados. Sobretudo em momentos em que a poesia não presta para nada,
não serve para nada.
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