Terçámos armas pela primeira vez há muitos anos. Então eu era muito novo
e ele queria-se e queria-me ao largo, por desconfianças naturais,
compreensíveis, mas que eu, naturalmente, enjeitava. Eu estava no grupo
a convite do meu futuro cunhado e galgávamos montes sobranceiros ao rio
Caia, para mim então desconhecido. Já pela tarde, eu via o "velho" a
atirar pedras aos silvados e, de vez em quando, a Francotte cantava.
Pensava serem coelhos e continuei pelos girassóis. Soube, mais tarde,
para meu espanto, que eram codornizes. E ele nem cão tinha! Codornizes
nos silvados!...
Num
dia do passado mês de Dezembro fui sozinho para o meu sítio, no Sabugal.
De manhãzinha, no momento de sair com as minhas cadelas para o monte,
encontrei-me com o engenheiro Gaspar, amigo novo e outra alma que
costuma andar desamparada por aqueles montes com os seus cães.
Desafiou-me e lá fomos os dois.
Talvez
porque a época se aproximava já do fecho, as perdizes não se revelavam e
alguma que se via era já ao longe, furtada aos cães e aos barulhos do
nosso caminhar.
Já ia
principiando a tarde quando, depois de atravessar uns lameiros,
descortinei umas covinhas na terra ao abrigo de um giestal. Se as
perdizes tinham estado ali a tomar o seu banho, não andariam longe.
Pois
sim! Bem me meti com as cadelas no giestal! Bem andei por ali a
caracolear, como ensinava o Tragacete, mas de perdizes nem cheiro. Lá
para os fundos, o Gaspar fazia pela vida, concerteza já sem saber onde é
que eu me teria metido; mas, a julgar pelo silêncio, com sorte igual à
minha.
À
saída do giestal havia, junto a um muro derrubado, um silvado antigo.
Joguei para lá uma pedra e da fortaleza de espinhos espirrou um
perdigão, que só consegui matar na emenda.
Muitas
horas depois, já em casa, recebi um telefonema de um amigo. Falámos de
coisas várias e já na despedida perguntou-me como me tinha corrido o dia
de caça. Falei-lhe no perdigão e deu-me os parabéns. Despedimo-nos.
Apesar
da fadiga, nessa noite, o sono tardou a chegar. No escuro, eu via a
pedra a cair no silvado e a arma a encaixar-se-me na cara para um
disparar chofrado. No dia seguinte escrevi-lhe isto:
Outra
jornada com a Estrela e a Florentina
Matei
ontem outro perdigão
Que
escondi no bornal
com as
pressas de um ladrão
sem
alegria sem o entusiasmo
que
tiveram as minhas cadelas
Mas
com enlevo as acarinhei
Sim,
eu também fui assim
Quando
tinha a idade delas...
Felizmente a Estrela e a Florentina são analfabetas e creio que
eternamente insensíveis à poesia.
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