Ecoou
o tiro e a perdiz caiu numa rodilha. Senti o êxito do tiro e com breves
vagares substituí o cartucho vazio, enquanto a cadela, incendiada pelo
disparo, se desmandava na procura da perdiz abatida.
Tínhamos procurado aquele bando desde manhãzinha. Sabíamos da sua
existência por anteriores caçadas feitas, uma primeira vez por acaso, e
outra com horas já apertadas, num regresso doutra aventura. Tinham-se
então levantado demasiado largas, sem esperar os cães e escapando-se em
voos largos que não nos permitiram ver a ponta do arco-íris onde estaria
o pote das libras. Desta vez tínhamo-las caçado ao contrário, contra a
crença conhecida de voo, mas saltaram quando menos o esperávamos,
furtadas aos cães, nas nossas costas. Alarmados pelo meu tiro, tanto o
Artur como o André voltaram-se, mas já só puderam ver o resto do bando
desaparecer ao longe, confundido com os penedos e o arvoredo.
– Caiu
alguma?
– Uma.
A
cadela cruzava o mato, cheia de vício mas incapaz de encontrar a perdiz.
Já com a arma recarregada, procurei orientá-la para o sítio da pancada
que identifiquei pelas penas semeadas no acaso da vegetação. Não foi
preciso muito para eu perceber que a perdiz tinha caído de asa e que
estava perdida. As minhas certezas iniciais deixavam-me agora a boca
perra e a mastigar a demora em ter corrido ao sítio.
–
Artur, traz cá o cão.
– O
quê?
– Anda
aqui! Não dou com a perdiz... Traz cá o cão.
A
cadela procurava ainda ou talvez andasse apenas por ali esperando afagos
ou a mostrar-se como as cachopas novas. O Artur foi-se aproximando.
– Onde
caiu?
– Está
aqui o depenadouro. Dá cá... Qui... Qui.. .Qui... Dá cá, dá cá...
O
Artur atirou uma pedra para o sítio e incitou o cão.
–
Busca Nero! Dá cá Nerinho, dá cá.
– Não
distraiam os cães...
O cão
bombava saracoteando a cauda pelo meio dumas carquejas, onde a cadela já
se tinha prendido, mas voltou e começou a descer, desaparecendo entre a
vegetação. Levava, claro que levava, o rumo da perdiz e não demorou
muito a dar com ela e a trazê-la, todo dengoso, desviando o focinho da
cadela, que teimava em lhe roubar a perdiz.
– Dá
cá Nero... lindo cão! Dá cá, lindo...
A
perdiz tinha a asa partida pelo cotovelo e não aparentava mais
ferimentos. Tinha sido, afinal, um mau tiro, um tiro de sorte.
Examinou-a o Artur antes de ma entregar viva, debatendo-se nas suas
mãos.
– É um
perdigão, um perdigão velho, pá. Olha para estes esporões... E era o rei
do bando. Vês aqui estas pintas na cauda? Agora o bando está órfão. Se
não tiverem a lição estudada... Para onde foram?
– Na
direcção do costume, para lá daqueles barrocos.
Dei o
perdigão a cheirar à cadela sem deixar que ela o abocanhasse. Enfiei-o
numa das sacas do colete e seguimos em linha em direcção aos barrocos.
Tínhamos surpreendido o bando num alto cheio de carquejas e pinhos.
Agora caminhávamos p'ró baixo mas, à medida que descíamos, ora nos
aproximávamos uns dos outros, ora nos afastávamos, tal era a profusão de
barrocos de granito. Ao fundo, uns lameiros estreitos; depois crescia
outra vez o monte infestado de penedias. No alto, os penedos pareciam
naus medonhas e havia maquinaria a trabalhar na extracção de blocos. As
perdizes estariam certamente próximas do lameiro, no final dum monte ou
no começo do outro.
Mas
não estavam. Esquadrinhámos tudo e nada. Não estavam em lado nenhum. Por
gestos assinalámos os sítios mais prováveis onde espirrariam na subida
do monte. O voo não podia ter sido tão longo, mas talvez fosse o último
refúgio aprendido com o seu rei agora deposto. Olhava os cães e avançava
como podia. De vez em quando, sentia nas minhas costas o perdigão
agitado. Os cães, tirando alguns falsos sinais, nada assinalavam e os
relógios avançavam...
–
Vamo-nos abrir mais e voltar para trás.
– Mas,
se já batemos todo o terreno...
–
Nunca se sabe! Abrimos. O Braz não tem cão, vem para o meio.
A
passo cada vez mais pesado, fomos batendo o terreno; mas, pela terceira
vez, aquelas perdizes iam escapar-nos. Tombara o perdigão por mera
casualidade ou porque, como dizia João Guimarães Rosa, todo o homem tem
a sua hora e a sua vez. E essa hora tinha-se conjugado num segundo.
Noutro dia voltaríamos...
Mas
não voltámos. Por vontades que prevaleceram, fomos caçar para outros
sítios, onde vaticionávamos melhor sorte, êxitos que afinal não lográmos
significativamente; e assim se foi aproximando o final daquela época.
O
perdigão resistira e vivia agora numa jaula. Chegámos a falar disso no
café. Eu mimava-o como podia. Dava-lhe pequenos gafanhotos, areia,
ninhos de formigas... Contudo, sabia bem que não lhe podia dar as folhas
tenras das semeaduras e uma infinidade de coisas que não comeria com
gula, mas apenas naturalmente. Nas paparicas, para além das sementes, eu
sabia bem que mais não lhe dava que pequenos nadas que o aguentavam
preso à corda da sobrevivência. Talvez tivesse sido melhor dar-lhe, na
crista da coronha ou no pedregulho mais à mão, uma pancada seca na
cabeça, como sempre fiz para não prolongar o sofrimento dos bichos. Mas
tinha-o posto na gaiola para o ver e ouvir; e agora o bem ou o mal
estava feito.
Chegámos a falar disso no café, quando nos juntávamos para combinar as
últimas caçadas do calendário. O Brás sugeria antigos sítios conhecidos,
ao contrário do Artur, que queria voltar às pedras. Para o Brás tinham
sido três grades e era perfeitamente compreensível que lá não quisesse
voltar, apesar de saber, como todos nós, da existência do bando. Eu
próprio apetecia outros terrenos, onde pudesse encontrar alguma
galinhola, peça que melhor serviria à aprendizagem da cadela que lugar
onde as perdizes não esperavam e que bem poderiam ficar para semente de
mais um chão de ilusões agendadas.
Tínhamos somente duas jornadas para cumprir. Depois, até porque o tempo
corria macio, as perdizes começariam a andar aos pares, antecipando o S.
Sebastião, a furtar-se a pés, recusando o mais possível o voo, cada vez
mais difíceis, mais verdes como as uvas da manhosa.
Fraquejavam já vontades e sobejavam desculpas. Para o penúltimo dia não
consegui arranjar parceiros, e sozinho também não me apetecia ir. Ainda
me bruxuleou a esperança quando, no dia seguinte, o Brás me apareceu à
noite lá em casa. Mas ele vinha afinal por outro assunto. Apareceu para
me pedir o perdigão emprestado. Ia comprar um casal de perdizes para
tirar ovos para a chocadeira, mas queria testar a reacção das de aviário
num lado qualquer que nem percebi bem. Apanhado desprevenido, argumentei
mal e, contra vontade, emprestei-lhe o rei de bando.
Fiquei
furioso comigo mesmo, danado. Ainda por cima ao Brás, tipo indefinido
que não era como os outros. O André ou o Artur, esses sim, parceiros
antigos, amigos provados. Foi uma gatilhada que me tirou o sono e até
com a família me indispôs. Mas outro dia nasceu e o assunto ficou,
senão sanado, pelo menos sepultado pelos meus afazeres; e assim ficaria
se o Artur não me tivesse telefonado, no dia seguinte, para a fábrica
para me encomendar uns queijos. Soubera, por qualquer acaso, que o Brás
tinha metido um dia de férias e ocorreu-lhe que não seria para outra
coisa senão para me acompanhar, uma vez que eu lamentara não haver uma
alma caridosa que quisesse ir mesmo sem pagar nada. Reiterei a minha
desolação. Não havia relação nenhuma, pelo que os queijos teriam que
ficar para melhor ocasião. E por aí nos ficámos com mais uns trocos de
conversa fiada pelo meio. Só que, pouco depois de desligar o telefone,
fiquei em sobressalto, a magicar, a ver fantasmas no escuro.
Presa
fácil das minhas fantasias, cedi e avisei a minha mulher que afinal
sairia cedo para a caça. Não levaria cães, porque iria aos tordos e
dava-me mais jeito levar o carro que o jeep, o que a aborreceu, como
sempre, pelas dificuldades que tinha em conduzir o autocarro, como ela
lhe chamava. Mas, desta vez, tinha que ser assim. À cautela, o jeep
tinha que ficar.
Noite
cerrada, meti-me à estrada, levando a arma e dois cartuchos de chumbo
grosso no bolso, dos que me tinham sobrado das batidas às raposas, por
prevenção.
Quando
o dia começou a despontar, vi os caminhos serem devassados pelas luzes
de motociclos e de camiões a caminho da pedreira. Depois, voltava o
sossego. Era já dia claro, tinha já os meus fantasmas quase exorcizados,
quando vi os reflexos dum carro a estacionar, onde semanas antes eu
deixara o jeep, e de seguida o caminhar disfarçado dum vulto em direcção
às
pedras. A raposa vinha ao meu encontro tomando ventos, escolhendo o
terreiro, confiada. Afinal, o meu imaginário era a cauda, o rumor duma
realidade que eu não soubera perceber com nitidez, quando emprestei o
pássaro.
O sol
aquecia as giestas, que fumegavam, e a maquinaria da pedreira
estrebuchava, abafando os passos com que eu me abeirava, sem me revelar,
do palco onde o meu amigo Brás preparava o drama. Ajeitou a gaiola com o
meu perdigão num penedo, toscamente disfarçada com ramagens e ervanços,
e foi-se entocar entre duas fragas.
O rei
do bando cirandava na jaula, tacteando as grades com o bico, e
pareceu-me que tinha reconhecido o seu espaço, a vastidão do seu lar.
Encrespou ligeiramente as penas do pescoço e iniciou um canto meigo,
Ti-Ti... TiTi... Tititi voltado para um canto da jaula. Não tardou muito
que uma fêmea acudisse, vinda dos lados da pedreira, apalpando as ervas
com passos receosos. Mas um outro canto timbrado subiu no ar e o velho
perdigão emproou-se, a gola matizada inchada de raiva, e um vigoroso
Tchá-Trrchá-Tchá desafiador fendeu a serra. Em torno do penedo, as
perdizes cirandavam, enquanto, da minha fresta, eu observava o Brás e os
canos da sua arma. Por instantes, temi que ele adiantasse o tiro mas,
completamente senhor do engodo, o Brás esperava que se cruzassem, para
envolver mais que uma no disparo. O drama precipitava-se e não era
possível prolongá-lo mais. Disparei em simultâneo os dois canos sobre a
gaiola, que voou do penedo completamente estilhaçada, e desapareci a
coberto das penedias e protegido pelo barulho das máquinas da pedreira
que, insensíveis, continuavam a mastigar o granito e a cobrir de poeira
as cercanias subitamente pasmadas.
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