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Sérgio Paulo Silva, No rasto da memória, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs.

 

Ecoou o tiro e a perdiz caiu numa rodilha. Senti o êxito do tiro e com breves vagares substituí o cartucho vazio, enquanto a cadela, incendiada pelo disparo, se desmandava na procura da perdiz abatida.

Tínhamos procurado aquele bando desde manhãzinha. Sabíamos da sua existência por anteriores caçadas feitas, uma primeira vez por acaso, e outra com horas já apertadas, num regresso doutra aventura. Tinham-se então levantado demasiado largas, sem esperar os cães e escapando-se em voos largos que não nos permitiram ver a ponta do arco-íris onde estaria o pote das libras. Desta vez tínhamo-las caçado ao contrário, contra a crença conhecida de voo, mas saltaram quando me­nos o esperávamos, furtadas aos cães, nas nossas costas. Alarmados pelo meu tiro, tanto o Artur como o André voltaram­-se, mas já só puderam ver o resto do bando desaparecer ao longe, confundido com os penedos e o arvoredo.

– Caiu alguma?

– Uma.

A cadela cruzava o mato, cheia de vício mas incapaz de encontrar a perdiz. Já com a arma recarregada, procurei orientá­-la para o sítio da pancada que identifiquei pelas penas semeadas no acaso da vegetação. Não foi preciso muito para eu perceber que a perdiz tinha caído de asa e que estava perdida. As minhas certezas iniciais deixavam-me agora a boca perra e a mastigar a demora em ter corrido ao sítio.

– Artur, traz cá o cão.

– O quê?

– Anda aqui! Não dou com a perdiz... Traz cá o cão.

A cadela procurava ainda ou talvez andasse apenas por ali esperando afagos ou a mostrar-se como as cachopas novas. O Artur foi-se aproximando.

– Onde caiu?

– Está aqui o depenadouro. Dá cá... Qui... Qui.. .Qui... Dá cá, dá cá...

O Artur atirou uma pedra para o sítio e incitou o cão.

– Busca Nero! Dá cá Nerinho, dá cá.

– Não distraiam os cães...

O cão bombava saracoteando a cauda pelo meio dumas carquejas, onde a cadela já se tinha prendido, mas voltou e começou a descer, desaparecendo entre a vegetação. Levava, claro que levava, o rumo da perdiz e não demorou muito a dar com ela e a trazê-la, todo dengoso, desviando o focinho da cadela, que teimava em lhe roubar a perdiz.

– Dá cá Nero... lindo cão! Dá cá, lindo...

A perdiz tinha a asa partida pelo cotovelo e não aparentava mais ferimentos. Tinha sido, afinal, um mau tiro, um tiro de sorte. Examinou-a o Artur antes de ma entregar viva, debatendo-se nas suas mãos.

– É um perdigão, um perdigão velho, pá. Olha para estes esporões... E era o rei do bando. Vês aqui estas pintas na cauda? Agora o bando está órfão. Se não tiverem a lição estudada... Para onde foram?

– Na direcção do costume, para lá daqueles barrocos.

Dei o perdigão a cheirar à cadela sem deixar que ela o abocanhasse. Enfiei-o numa das sacas do colete e seguimos em linha em direcção aos barrocos. Tínhamos surpreendido o bando num alto cheio de carquejas e pinhos. Agora caminhávamos p'ró baixo mas, à medida que descíamos, ora nos aproximávamos uns dos outros, ora nos afastávamos, tal era a profusão de barrocos de granito. Ao fundo, uns lameiros estreitos; depois crescia outra vez o monte infestado de penedias. No alto, os penedos pareciam naus medonhas e havia maquinaria a trabalhar na extracção de blocos. As perdizes estariam certamente próximas do lameiro, no final dum monte ou no começo do outro.

Mas não estavam. Esquadrinhámos tudo e nada. Não estavam em lado nenhum. Por gestos assinalámos os sítios mais prováveis onde espirrariam na subida do monte. O voo não podia ter sido tão longo, mas talvez fosse o último refúgio aprendido com o seu rei agora deposto. Olhava os cães e avançava como podia. De vez em quando, sentia nas minhas costas o perdigão agitado. Os cães, tirando alguns falsos sinais, nada assinalavam e os relógios avançavam...

– Vamo-nos abrir mais e voltar para trás.

– Mas, se já batemos todo o terreno...

– Nunca se sabe! Abrimos. O Braz não tem cão, vem para o meio.

A passo cada vez mais pesado, fomos batendo o terreno; mas, pela terceira vez, aquelas perdizes iam escapar-nos. Tombara o perdigão por mera casualidade ou porque, como dizia João Guimarães Rosa, todo o homem tem a sua hora e a sua vez. E essa hora tinha-se conjugado num segundo. Noutro dia voltaríamos...

Mas não voltámos. Por vontades que prevaleceram, fomos caçar para outros sítios, onde vaticionávamos melhor sorte, êxitos que afinal não lográmos significativamente; e assim se foi aproximando o final daquela época.

O perdigão resistira e vivia agora numa jaula. Chegámos a falar disso no café. Eu mimava-o como podia. Dava-lhe pequenos gafanhotos, areia, ninhos de formigas... Contudo, sabia bem que não lhe podia dar as folhas tenras das semeaduras e uma infinidade de coisas que não comeria com gula, mas apenas naturalmente. Nas paparicas, para além das sementes, eu sabia bem que mais não lhe dava que pequenos nadas que o aguentavam preso à corda da sobrevivência. Talvez tivesse sido melhor dar-lhe, na crista da coronha ou no pedregulho mais à mão, uma pancada seca na cabeça, como sempre fiz para não prolongar o sofrimento dos bichos. Mas tinha-o posto na gaiola para o ver e ouvir; e agora o bem ou o mal estava feito.

Chegámos a falar disso no café, quando nos juntávamos para combinar as últimas caçadas do calendário. O Brás sugeria antigos sítios conhecidos, ao contrário do Artur, que queria voltar às pedras. Para o Brás tinham sido três grades e era perfei­tamente compreensível que lá não quisesse voltar, apesar de saber, como todos nós, da existência do bando. Eu próprio apetecia outros terrenos, onde pudesse encontrar alguma galinhola, peça que melhor serviria à aprendizagem da cadela que lugar onde as perdizes não esperavam e que bem poderiam ficar para semente de mais um chão de ilusões agendadas.

Tínhamos somente duas jornadas para cumprir. Depois, até porque o tempo corria macio, as perdizes começariam a andar aos pares, antecipando o S. Sebastião, a furtar-se a pés, recusando o mais possível o voo, cada vez mais difíceis, mais verdes como as uvas da manhosa.

Fraquejavam já vontades e sobejavam desculpas. Para o penúltimo dia não consegui arranjar parceiros, e sozinho também não me apetecia ir. Ainda me bruxuleou a esperança quando, no dia seguinte, o Brás me apareceu à noite lá em casa. Mas ele vinha afinal por outro assunto. Apareceu para me pedir o perdigão emprestado. Ia comprar um casal de perdizes para tirar ovos para a chocadeira, mas queria testar a reacção das de aviário num lado qualquer que nem percebi bem. Apanhado desprevenido, argumentei mal e, contra vontade, emprestei-lhe o rei de bando.

Fiquei furioso comigo mesmo, danado. Ainda por cima ao Brás, tipo indefinido que não era como os outros. O André ou o Artur, esses sim, parceiros antigos, amigos provados. Foi uma gatilhada que me tirou o sono e até com a família me indis­pôs. Mas outro dia nasceu e o assunto ficou, senão sanado, pelo menos sepultado pelos meus afazeres; e assim ficaria se o Artur não me tivesse telefonado, no dia seguinte, para a fábrica para me encomendar uns queijos. Soubera, por qualquer acaso, que o Brás tinha metido um dia de férias e ocorreu-lhe que não seria para outra coisa senão para me acompanhar, uma vez que eu lamentara não haver uma alma caridosa que quisesse ir mesmo sem pagar nada. Reiterei a minha desolação. Não havia relação nenhuma, pelo que os queijos teriam que ficar para melhor ocasião. E por aí nos ficámos com mais uns trocos de conversa fiada pelo meio. Só que, pouco depois de desligar o telefone, fiquei em sobressalto, a magicar, a ver fantasmas no escuro.

Presa fácil das minhas fantasias, cedi e avisei a minha mulher que afinal sairia cedo para a caça. Não levaria cães, porque iria aos tordos e dava-me mais jeito levar o carro que o jeep, o que a aborreceu, como sempre, pelas dificuldades que tinha em conduzir o autocarro, como ela lhe chamava. Mas, desta vez, tinha que ser assim. À cautela, o jeep tinha que ficar.

Noite cerrada, meti-me à estrada, levando a arma e dois cartuchos de chumbo grosso no bolso, dos que me tinham sobrado das batidas às raposas, por prevenção.

Quando o dia começou a despontar, vi os caminhos serem devassados pelas luzes de motociclos e de camiões a caminho da pedreira. Depois, voltava o sossego. Era já dia claro, tinha já os meus fantasmas quase exorcizados, quando vi os reflexos dum carro a estacionar, onde semanas antes eu deixara o jeep, e de seguida o caminhar disfarçado dum vulto em direcção às

pedras. A raposa vinha ao meu encontro tomando ventos, escolhendo o terreiro, confiada. Afinal, o meu imaginário era a cauda, o rumor duma realidade que eu não soubera perceber com nitidez, quando emprestei o pássaro.

O sol aquecia as giestas, que fumegavam, e a maquinaria da pedreira estrebuchava, abafando os passos com que eu me abeirava, sem me revelar, do palco onde o meu amigo Brás preparava o drama. Ajeitou a gaiola com o meu perdigão num penedo, toscamente disfarçada com ramagens e ervanços, e foi-se entocar entre duas fragas.

O rei do bando cirandava na jaula, tacteando as grades com o bico, e pareceu-me que tinha reconhecido o seu espaço, a vastidão do seu lar. Encrespou ligeiramente as penas do pescoço e iniciou um canto meigo, Ti-Ti... TiTi... Tititi voltado para um canto da jaula. Não tardou muito que uma fêmea acudisse, vinda dos lados da pedreira, apalpando as ervas com passos receosos. Mas um outro canto timbrado subiu no ar e o velho perdigão emproou-se, a gola matizada inchada de raiva, e um vigoroso Tchá-Trrchá-Tchá desafiador fendeu a serra. Em torno do penedo, as perdizes cirandavam, enquanto, da minha fresta, eu observava o Brás e os canos da sua arma. Por instantes, temi que ele adiantasse o tiro mas, completamente senhor do engodo, o Brás esperava que se cruzassem, para envolver mais que uma no disparo. O drama precipitava-se e não era possível prolongá-lo mais. Disparei em simultâneo os dois canos sobre a gaiola, que voou do penedo completamente estilhaçada, e desapareci a coberto das penedias e protegido pelo barulho das máquinas da pedreira que, insensíveis, continuavam a mastigar o granito e a cobrir de poeira as cer­canias subitamente pasmadas.

 

 
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