No
norte de Moçambique, junto ao aquartelamento onde estive colocado, havia
um aldeamento onde eu ia frequentemente. Numa dessas deambulações, vi
um velho que não falava português e que, portanto, pouco pude conhecer,
que me intrigou. O velho, andrajosamente vestido, descalço, ia amiúde
para o mato caçar passarinhos. Via-o regressar pela tardinha com a
molhada e estranhava, porque não tinha ratoeiras, um pauzinho misterioso
que fosse, nada que não fossem as suas mãos. Acabei por arranjar um
intérprete de ocasião para decifrar o mistério. Lá falaram, riram-se
muito e o velho foi buscar uns ervanços com que, apenas com o gume das
unhas e a mobilidade dos dedos, enquanto o diabo esfregava um olho, fez
uma data de laços corrediços, simulando com a ponta dos dedos as cabeças
dos infelizes pássaros, tentando explicar-me o que eu não entendia e o
intérprete não traduzia no meio da risota. Como era possível um tipo
como eu, que lhes curava febres e doenças, que lhes cozia as feridas,
não saber apanhar passarinhos? No dia seguinte presenteou-me com uma
variedade deles, mas
vivos,
para enriquecer uma grande gaiola que tínhamos na parada, envolvendo uma
árvore. Notei-lhes nas patas restos de goma e soube que, para além das
forcas, o nosso artista recorria ao suco de uma árvore que os prendia
quando pousavam em raminhos estratégicos. Visgo: essa mala-arte não
tinha fronteiras...
Se não
fosse a barreira da língua, eu teria dito àquele velho que, no meu país,
também se caçavam passarinhos e que eu tinha passado a infância a
enegrecer a minha alma com a passarada.
Um
dia, o meu pai lembrou-se de ir à terra da mãe (muito longe: Póvoa de
Midões, Tábua) que ele já não chegou a conhecer, visitar uns primos. Fui
com ele. Tenho uma vaga ideia de que apenas o meu irmão ia também. Não
sei. Fomos pela única estrada possível, em direcção a Coimbra, cortando
depois no Luso, onde se subia, subia sempre por curvas e contracurvas
acentuadíssimas, para depois prosseguir rumo a Mortágua, por aí fora
numa viagem que queimava longas horas.
Em
qualquer ponto do percurso um pardal embateu no carro. Meu pai parou,
apanhou-o e deu-mo. Já em Tábua, o pardal foi assado no fogareiro e eu
comi-o sem saber que estava a saborear todo aquele passeio que não mais
se me apagou.
E
porque (não, não é porque: eu sei lá o ou os porquês!) eu gostava de
comer passarinhos, caçava-os. Esse era o tempo em que à porta das tascas
de qualquer cidade punham lousas: "Há passarinhos fritos"... Caçava-os,
apanhava-os com ratoeira (costelos lhes chamam noutros sítios), que
outro meio não tinha. A inveja que eu sentia dos filhos dum doutor da
minha aldeia que tinham uma pressão-de-ar; e a inveja que eu senti num
domingo em que fui à Branca (concelho de Albergaria-a-Velha) a casa de
um amigo do meu pai! Enquanto eles tratavam do que tinham a tratar, eu
andei com os filhos, rapazes rondando a minha idade, pelas ruas próximas
e, casualmente, encontrámos um conhecido deles que trazia uma molhada de
pássaros e uma fisga. Vi-o matar mais três ou quatro com seixos
pequeninos, que colheu do chão. E eu, que também tinha uma fisga com que
não acertava no sino duma igreja, fiquei basbaque, invejoso de tamanha
destreza.
Havia
quem tivesse molhadas de ratoeiras, verdadeiros arsenais. Eu tinha
pouquinhas (e sabe Deus!), mas entretinha-me com elas, sobretudo aos
Domingos. Ia a casa do senhor Antoninho, aos cabanais, e tirava as
lagartas das canas de milho, que metia numa caixinha de fósforos.
Depois, amarrava-as com uma linha e armava onde melhor me parecia.
Ali
pelo Outono arrastado, onde se juntavam mais pardais, era onde houvesse
que ciscar, sobretudo nas casas dos lavradores que faziam terras de
arroz, por causa do milhão. Também nas terras altas, nos cortes de erva
frescos, caíam às vezes bátegas de lavercas, de ciotos e de piscos,
quando vinham os frios e a cigarra ia pedir batatinhas à sua vizinha
formiga.
Já
mais espigadote, também eu os apanhei às molhadas; mas isso não era eu,
era antes um conluio de banditagem. Passado o Verão, a pardalada,
sentindo as árvores a despirem-se, refugiava-se nos poços mais velhos,
mais abandonados, que tinham criado vegetação interior e buracos nas
paredes. Passávamos palavra e lá nos juntávamos, normalmente num sábado
à noite, e íamos pelas terras e quintais conhecidos. Tapávamos a boca do
poço com uma rede e acendíamos um foco (se o tínhamos ou se o tivéssemos
levado), atirando lá para dentro um pedregulho. Espantada, a passarada
atirava-se à rede, aos magotes, fugindo para a sertã... O pior eram os
cães que davam fé dos meliantes quando a função se fazia em quintais
adormecidos...
Mas as
lavercas eram um nadinha maiores que pardais, faziam arregalar mais os
olhos.
– Avô,
um tiro p'rá mancha ficava um alqueire delas. Que cartucho vais
carregar?
– Tem
que ser um cartucho de escumilha.
– ?
– Para
as codornizes carrego chumbo 10 ou até mesmo o 12. A escumilha é o
número 14, como cabeças de alfinetes. Guarda um pouco num frasco para
recordação. Quando passarem os anos, já não haverá desse chumbo. Também
não será necessário, porque haverá poucos pássaros, serão cada vez menos
numerosos, algumas variedades desaparecerão mesmo e tu próprio não
quererás fazer parte dos grandes destruidores, dos grandes matadores que
nunca caçaram.
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