Um
prefácio é sempre uma honra irrecusável, embora também uma
responsabilidade para o prefaciador; mas é, sobretudo, as mais das
vezes, uma inutilidade, porque como já escrevi algures (e a ideia não é
só minha), é algo que se escreve no fim, depois da obra concluída, se
imprime por definição antes e não se lê nem antes nem depois. Uma
inutilidade completa. E mais inútil se revela quando, como neste caso,
não vai melhorar em nada o escrito nem conseguirá retirar-lhe o valor.
De mais inutilidade, se possível, se reveste ainda na presente
conjuntura por não ter sequer aqui lugar. O prefácio tem lugar numa obra
com princípio, meio e fim. A esta não se lhe conhece o princípio; e não
pode ter meio, porque também não tem fim. NO RASTO DA MEMÓRIA não
nasceu. Brotou. Brotou dos longes. Brotou dos tempos. Brotou séculos
antes, muitos, antes mesmo do perfume das penas de perdiz se capacitar
que tinha de entrar numa bola para ensinar a Florentina a trazer à mão e
outros tantos antes das velhas marquises dos ainda mais velhos nossos
antepassados, enevoadas de teias de aranha, se atreverem a tornear,
agora de pó, o pauzinho já torneado pelo uso, as buchas, os fulminantes,
o rebordador, a balança e os velhos cartuchos de papelão a ressoarem,
como no velho búzio, nos ouvidos a saudade dos tiros e a soprarem para o
nariz a felicidade do aroma da pólvora há já tanto tempo queimada. NO
RASTO DA MEMÓRIA brotou e corre, tal rio, em leito firme, há séculos
consolidado na mente e hábitos de gerações e gerações, clareando as
águas turvas da primária luta pela sobrevivência, sucessivamente, na
imperiosa procura de afirmação tribal, delimitação de território,
manutenção e alarde de pujança física, reivindicações revolucionárias,
embates político-sociais e depois desporto, lazer e comércio. Alongou-se
como que entre formosas margens por onde havia indícios de molicinho
mastigado ou penugem encostada pela aragem nas praias do Amadeu,
covinhas de espolinho na Tapada da Perdiz, rapadinhos frescos nas
bordas do caminho... das sortes do tio Zé Faixinha, esfocinho de
javali no... Cabeço do Pisão, olhar cativo na cauda do cão no
meio do monte ralo de tojos e de estevas,... no cansaço que se
enroscava nos passos dentro do vasto lugar onde pisavam as uvas do
desalento..., em bem desenhados meandros, a ouvir a voz das
coisas que não têm voz. Desviou-se dos traiçoeiros rápidos do dia
em que não fomos por temer o tempo, ou dos do Agnelo, dos do furão,
dos do gosma de Estarreja, dos do Brás do "reclamo" e dos outros ainda
piores. Deslizou nos declives das prazenteiras cascatas do tempo das
descobertas dos laços corrediços, do visgo, da fisga, da carabina de
pressão de mira zarolha e da pitada de Diamantina sobre o fulminante
antes da medida da Nacional 1... Deliciou-se nos remansosos pegos do
acomodar da arma e dos cães logo ao chegar a casa (... há sempre uma
poalha de ternura nas minhas mãos...),... no caminhar por montes que
sentiram os passos de quem carregava nas mãos a sua tão gasta como
querida Francotte, no reencontro de amigos, o partilhado alvoroço de
sentimentos... e até na poesia que, isto de poesia tem que se lhe
diga... irmanado num desabafo... eu não sei se isto são poemas,
se só saudades da caça..., sem ter que se agitar nas vascas dos
remorsos... em nenhum cartucho ou equipamento encontrei qualquer
nódoa ou vestígios de monstruosidade, só na ansiedade renovada de
vencer os montes, beber nos regatos, de me embrenhar nos giestais, de
romper a navalha dos ventos e continuar caminhando sempre... em busca de
novas penas enfeitiçadas... De começo hesitante num fio de água
envergonhado, (pedi a minha mulher para me guardar as penas de umas
perdizes...), sente o apelo dos caniços dançando ao vento no paul
mas... levando às costas um fardo de pensamentos e de emoções.
Coisas do velho, do meu velho..., encosta aos ouvidos os velhos
cartuchos e entrega o coração aos tojos, aos rosmanos, às giestas,
aos amores que o Padre diz que se podem comprar e às armas, às velhas
armas que já não são armas, são filhas, esposas, amantes... E então
o rio engrossa. ... Eu gostava de comer passarinhos, caçava-os...
o Tuno ficou marrado... matei ontem outro perdigão... olha para estes
esporões... e era o rei do bando... Ganha mais turbulência e corre
para a foz. Mas não há foz. NO RASTO DA MEMÓRIA não tem foz. O rasto da
memória não tem fim.
E sem
fim, não há prefácio!
Só há
um grande abraço, atento,
admirador, grato e amigo.
Ângelo
Sequeira
Medrões, Setembro de 2007.
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