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Sérgio Paulo Silva, No rasto da memória, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs.

À laia de proémio

Um prefácio é sempre uma honra irrecusável, embora também uma responsabilidade para o prefaciador; mas é, sobretudo, as mais das vezes, uma inutilidade, porque como já escrevi algures (e a ideia não é só minha), é algo que se escreve no fim, depois da obra concluída, se imprime por definição antes e não se lê nem antes nem depois. Uma inutilidade completa. E mais inútil se revela quando, como neste caso, não vai melhorar em nada o escrito nem conseguirá retirar-lhe o valor. De mais inutilidade, se possível, se reveste ainda na presente conjuntura por não ter sequer aqui lugar. O prefácio tem lugar numa obra com princípio, meio e fim. A esta não se lhe conhece o princípio; e não pode ter meio, porque também não tem fim. NO RASTO DA MEMÓRIA não nasceu. Brotou. Brotou dos longes. Brotou dos tempos. Brotou séculos antes, muitos, antes mesmo do perfume das penas de perdiz se capacitar que tinha de entrar numa bola para ensinar a Florentina a trazer à mão e outros tantos antes das velhas marquises dos ainda mais velhos nossos antepassados, enevoadas de teias de aranha, se atreverem a tornear, agora de pó, o pauzinho já torneado pelo uso, as buchas, os fulminantes, o rebordador, a balança e os velhos cartuchos de papelão a ressoarem, como no velho búzio, nos ouvidos a saudade dos tiros e a soprarem para o nariz a felicidade do aroma da pólvora há já tanto tempo queimada. NO RASTO DA MEMÓRIA brotou e corre, tal rio, em leito firme, há séculos consolidado na mente e hábitos de gerações e gerações, clareando as águas turvas da primária luta pela sobrevivência, sucessivamente, na imperiosa procura de afirmação tribal, delimitação de território, manutenção e alarde de pujança física, reivindicações revolucionárias, embates político-sociais e depois desporto, lazer e comércio. Alongou-se como que entre formosas margens por onde havia indícios de molicinho mastigado ou penugem encostada pela aragem nas praias do Amadeu, covinhas de espolinho na Tapada da Perdiz, rapadinhos frescos nas bordas do caminho... das sortes do tio Zé Faixinha, esfocinho de javali no... Cabeço do Pisão, olhar cativo na cauda do cão no meio do monte ralo de tojos e de estevas,... no cansaço que se enroscava nos passos dentro do vasto lugar onde pisavam as uvas do desalento..., em bem desenhados meandros, a ouvir a voz das coisas que não têm voz. Desviou-se dos traiçoeiros rápidos do dia em que não fomos por temer o tempo, ou dos do Agnelo, dos do furão, dos do gosma de Estarreja, dos do Brás do "reclamo" e dos outros ainda piores. Deslizou nos declives das prazenteiras cascatas do tempo das descobertas dos laços corrediços, do visgo, da fisga, da carabina de pressão de mira zarolha e da pitada de Diamantina sobre o fulminante antes da medida da Nacional 1... Deliciou-se nos remansosos pegos do acomodar da arma e dos cães logo ao chegar a casa (... há sempre uma poalha de ternura nas minhas mãos...),... no caminhar por montes que sentiram os passos de quem carregava nas mãos a sua tão gasta como querida Francotte, no reencontro de amigos, o partilhado alvoroço de sentimentos... e até na poesia que, isto de poesia tem que se lhe diga... irmanado num desabafo... eu não sei se isto são poemas, se só saudades da caça..., sem ter que se agitar nas vascas dos remorsos... em nenhum cartucho ou equipamento encontrei qualquer nódoa ou vestígios de monstruosidade, só na ansiedade renovada de vencer os montes, beber nos regatos, de me embrenhar nos giestais, de romper a navalha dos ventos e continuar caminhando sempre... em busca de novas penas enfeitiçadas... De começo hesitante num fio de água envergonhado, (pedi a minha mulher para me guardar as penas de umas perdizes...), sente o apelo dos caniços dançando ao vento no paul mas... levando às costas um fardo de pensamentos e de emoções. Coisas do velho, do meu velho..., encosta aos ouvidos os velhos cartuchos e entrega o coração aos tojos, aos rosmanos, às giestas, aos amores que o Padre diz que se podem comprar e às armas, às velhas armas que já não são armas, são filhas, esposas, amantes... E então o rio engrossa. ... Eu gostava de comer passarinhos, caçava-os... o Tuno ficou marrado... matei ontem outro perdigão... olha para estes esporões... e era o rei do bando... Ganha mais turbulência e corre para a foz. Mas não há foz. NO RASTO DA MEMÓRIA não tem foz. O rasto da memória não tem fim.

E sem fim, não há prefácio!

Só há um grande abraço, atento,

admirador, grato e amigo.

Ângelo Sequeira

Medrões, Setembro de 2007.

 

 
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