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Sérgio Paulo Silva, Enguias, 2001, 64 págs.

Enguias

À memória de

José da Silva Valente Neto

2. Arte da pesca vista por Egas Moniz

Desconheço se isto está arreigado noutras povoações ribeirinhas (na Lagoa de Óbidos ou na Ria Formosa, por exemplo). Sei é que isto faz parte de nós e tanto assim que mereceu ao professor Dr. Egas Moniz, nosso querido prémio Nobel da Medicina, algumas páginas do seu belíssimo livro "A Nossa Casa":

Fisgas de solhas e linguados. Clicar para ampliar.
Fisgas de solhas e linguados.

«Os velhos, aposentados do trabalho da Ria, mas apreciando ainda as distracções da pesca, ali aparecem nas tardes invernosas, quando as águas andam turvas, com o cesto de vime e o novelo das minhocas a dar satisfação ao seu antigo prazer. Mesmo no estreito há enguias em abundância para a saitela e, quando há sorte, vêm umas atrás das outras, de maneira que, em pouco tempo, se arranja a caldeirada. São pequenas, mas bem preparadas fazem óptima ceia.

Os mais novos, mesmo sem serem da arte, vão ao candeio, à pesca do peixe branco. A colheita só é, porém, importante quando entram pescadores de ofício, bons manejadores da fisga, arte de pesca que é agora proibida. Continua, todavia, a praticar-se a ocultas da polícia marítima. Esta, não raro, surpreende os infractores, que trata com desmedida severidade.

Não pude ainda compreender o malefício do uso da fisga, visto que o peixe não aumentou na Ria com tal proibição; mas o assunto não é para este relato.

O candeio do meu tempo era um rendoso processo de pesca e um curioso divertimento para os que assistiam ao espectáculo. Só podia fazer-se em noites calmas e sem luar. Umas achas de cerne de pinho, com abundante resina para dar boa luz e encadear o peixe, e dois homens, sabedores da arte, numa pequena bateira, ou caçadeira, são equipagem suficiente. Um conduz o barco, o outro atiça o fogo sobre a trempe e realiza a pesca. O peixe passa, às vezes, com velocidade, à luz rubra do candeio, mas a fisga de um bom pescador segura-o e passa-o ao barco.

Nas noites negras de Inverno, quando o vento não assobiava do norte nem a chuva vinha toca da da barra, e também nas escuridões nocturnas das outras estações do ano, viam-se da eira da antiga vivenda de meu tio, em Pardilhó, por onde passei os anos da minha infância e adolescência, dezenas de luzes a deslocarem-se na Ria em todos os sentidos, como pequenos farolins de navios invisíveis, na evolução de desconhecida táctica.

Outras vezes, devido à inconstância da visibilidade dos luzeiros, pela interposição dos pescadores, lembravam um bando de pirilampos a movimentarem-se no fundo escuro que fechava o horizonte.

Mais tarde, o candeio civilizou-se. Em vez da fogueira do pinho resinado, passou a usar-se o candieiro de acetilene com um simples reflector.

Começavam a pescar pelo esteira fora. O peixe aparecia: a solha, o palmeiro, a tainha, este, de todos os peixes da Ria, o mais apreciado. E com razão. Quando grande é saborosíssima, especialmente frita, embora se arranje de muitas maneiras e até a recheiem com carnes variadas.

A tainha salta, às vezes, fora da água. Consta, em Pardilhó, que o Leonardo e o Vendaval, as têm fisgado no voo, de dia, coisa que não vi, mas não deixo de o relatar, em abono das qualidades dos dois mais hábeis, pescadores do meu tempo.

O Leonardo andou comigo na escola do Padre José Ramos. Era dos mais velhos. Magro, de boa estatura, de músculos retesos, moreno, a quem a maresia dera um tom discreto de mouro, era pescador exímio. Quando fazíamos passeios pela Ria, ele sabia o esconderijo das enguias grossas, nas pequenas regueiras dos juncais. Não falhava nunca!

– Além, deve estar uma!

Daí a pouco, aparecia, apertando na mão uma enguia grossa, enroscada no braço e que ele, na gíria piscatória local, classificava de "bom chicote ".

Ainda há meses, no Verão passado, me encontrei com o Leonardo, a quem falta agora a luz da vista para poder pescar.

Falámos, entre outras coisas, das enguias, machos e fêmeas e da criação. São os peixes misteriosos daquelas paragens e assunto muito da sua predilecção.

Ainda há na região quem defenda, a pés juntos, que a enguia nasce espontaneamente do lodo. A maioria porém, mesmo sem conhecer as doutrinas de Pasteur, afirma que estes peixes provêm de geração, como os outros animais. Somente ignoramos ainda muitas particularidades da sua propagação.

O nosso Leonardo é também desse parecer.

– Contudo, objecta, onde estão as ovas de tal peixe? – Mas existem, embora de volume reduzido.

– Em Pardilhó, encontrou-se uma vez uma enguia com grandes ovas.

Examinei-a. Não podia haver dúvidas. Mas nunca mais tal coisa se viu!

– Foi pena não mandarem esse peixe, acrescentei, para um Instituto   de zoologia a fim de ser convenientemente examinado.

– Não foi lembrado...

Disse-lhe que as enguias, como outras espécies aquáticas emigradoras, vão desovar longe, muito longe da costa. As enguias vão ao chamado Mar do Sargaço. Pelo que li, deve ser durante a viagem que as ovas se enchem para darem milhões de ovos.

– E como é que os filhos das enguias vêm para a nossa Ria?

– É um problema. Dizem que vêm em parte pelas suas próprias forças. Mas estas são muito fracas, pois os filhos das enguias, já de feitio comprido, são pequenos e transparentes. As correntes do mar, mais do que as suas habilidades natatórias, arrastam-nos até às costas europeias. Invadem os mares mais recônditos, como o Báltico, as numerosas lagunas ligadas ao oceano e os rios e riachos da Europa. Assim chegam à nossa Ria onde se desenvolvem e onde se sentem bem.

O bom Leonardo acreditava no que eu lhe ia dizendo, mas como lhe fosse apresentando algumas dúvidas e certas reservas, ele, por fim, comentou:

– Quer dizer, as nossas enguias não nascem dos pais que foram da nossa Ria; vêm de toda a parte, lá do mar do Sargaço que faz abrigo à criação. As enguias de todo o mundo lá vão pôr os ovos e as correntes do mar é que distribuem as que nascem. Tenho encontrado essas enguias pequenas, ainda sem cor e, pelo visto, com uma viagem de muitas milhas. Olhe que custa a crer!

– Na Ribeira da fonte do Moinho, disse-lhe eu, vi, em criança, rodilhas de enguias muito pequeninas, mas já com alguma cor.

– Tenho-as encontrado, muitas vezes, aos montes, acrescentou o Leonardo. Os sábios ainda têm que comer muitos alqueires de sal antes de saberem ao certo como se geram e criam esses peixes. De Inverno, saem de noite dos rios e vêm passear pelos pastos encharcados. É nessas passeatas que vão para os poços. Já ali as tenho encontrado, sem que ninguém lá as tivessem posto.

– E dos poços é que não voltam a sair, disse-lhe eu.

– Não voltam, não. Faltam-lhe pernas para trepar. Ali vivem e crescem até que, em ano de seca, se escoa o poço e vão para a sertão Para mim não há peixe como a enguia!

E prosseguindo:

– É também aquele que mais gosto de apanhar. E a sopa que ele dá!

Nem de galinha!

E mudando de tom:

– Não me sai da cabeça, sr. Doutor, porque é que a lampreia vem do mar, para desovar na água doce...

– E o sável e o salmão...

– O sável conheço, o salmão sei que é um peixe de carne vermelha mas não vem à nossa ria. Mas como ia dizendo, não posso compreender como esses peixes vêm desovar às águas doces, enquanto a enguia salta dos nossos rios para o tal mar do Sargaço que, pelo que me conta, é muito longe daqui. Nem se contenta com a água salgada da nossa Ria!

– Salgada de Verão...

– E de Inverno, atalhou. Menos, é certo, mas sempre salobra. Então pr'á Barra, mesmo de Inverno, a água da Ria é muito salgada.

– As enguias, para procriarem precisam de outra temperatura e de outras condições por nós ignoradas... Acrescentei.

– Tudo o que queira. Mas elas tão bem se dão na água salgada como na doce. Para que raio vão para tão longe desovar?! A razão dessa viagem é que eu queria que me dissessem. E quantas ficarão pelo caminho nas bocas de peixes maiores! Além desse perigo, a lonjura da viagem... As enguias embora nadem bem, hão-de precisar de muitos meses ou anos para chegar ao tal mar do Sargaço! E isto, se não se perderem no caminho. Ainda se sabe muito pouco sobre a vida das enguias!

Eu, sem garantir as fracas informações dadas, nada mais podia adiantar sobre o assunto.

Mudando de conversa perguntei-lhe se ainda pescavam à fisga.

– Ainda se pesca; eu é que já não o posso fazer por falta de vista. Contudo, é preciso cautela, que os marinheiros têm feito para aí tropelias de seiscentos diabos!»
 

 
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