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Sérgio Paulo Silva, Enguias, 2001, 64 págs.

Enguias

À memória de

José da Silva Valente Neto

3. A propósito do que disse Egas Moniz

Interessantíssimas, não são? Revelam um pouco da personalidade do catedrático, mostram uma pessoa muito humana assaz diferente do rosto férreo do cientista que as pessoas conhecem das fotografias. Há pessoas assim. Como o professor Rodrigues Lapa, Aquilino, Torga, tantos outros de semblante assustador, mas incapazes de esconder, nesta ou naquela curva da vida, a poderosa carga telúrica e a bondade mansa de animal doméstico. Atente-se no carinho com que Egas Moniz chamou para esse seu livro o Leonardo e o Vendaval deixando em indelével esquecimento a multidão de notáveis com que privou sobretudo depois que a Academia Sueca o distinguiu.

Data de 1950 a publicação de A Nossa Casa. Foi, pois, escrito há já mais de meio século. Não evoluíram entretanto as tropelias dos marinheiros, mas pelas palavras do professor ficámos a saber da sua simpatia pela arte do candeio, que era um processo rendoso de pesca (o que era extremamente importante, porque então as famílias eram muito numerosas) e sobretudo o processo como era praticado: primeiro com achas de cerne de pinheiro, depois com candeeiro de acetileno. Depreende-se que a memória de escrita do professor havia recuado muito no tempo uma vez que o petromax já era utilizado na década de cinquenta. Hoje em dia, há quem recorra a baterias e holofotes eléctricos...

Consoante a dádiva à leitura do seu texto se poderão notar outros pormenores, desde a referência a outros métodos de pesca, o cesto de vime e o novelo de minhocas, a referências culinárias, a hábitos do peixe, o esconderijo das enguias grossas, ao seu ciclo de vida...

Na pesca com o candeio, quem maneja a fisga escolhe o peixe que quer arpoar, poupando as enguias excessivamente miudeiras. Assim também as outras variedades de peixes. O pior é que um candeio que ande a trabalhar na Mamaparda é visto em S. Jacinto ou na Varela, é extremamente vulnerável à acção dos marinheiros que vêem à sorrelfa, navegando às escuras e, quando são percebidos, já não há nada a fazer.

O cesto de vime, a varinha e o novelo das minhocas.
O cesto de vime, a varinha e o novelo das minhocas.

Aos poucos, os amantes da fisga, uns por terem ficado escaldados, outros por terem visto as barbas do vizinho a arder, passaram a trabalhar de dia, às cegas.

O que o professor relatava dos dotes do Leonardo não é treta. Há artistas que lêem melhor o fundo da ria que um padre a cartilha.

No Verão, andam pela ria veraneantes que, volta e meia, vão, na maré baixa, para os bancos da Pousada aos burriés e aos cricos. Andam para aqui, andam para acolá, deixando na areia e no lodo as marcas dos pés, e são capazes de jurar que o que lá há são apenas cascas velhas, as suas pegadas e nada mais. Mas, eis que aparece um mal-vestido qualquer que com uma varetazinha enche, num abrir e fechar de olhos, uma bacia de caralhoses...

Nas enguias que estão metidas no lodo não é tão fácil, mas os artistas sabem distinguir a casa da enguia, o lote, e quando espetam a fisga raramente se enganam. Devo dizer, talvez, que são raros. A generalidade trabalha às cegas, nas regueiras, em alguns poceiros de moliço, onde lhes cheira. Espeta-se muita vez, seguidinho, seguidinho como a música do Soito, e lá vai calhando... quando calha. E, no final, o que se tem por certo são umas valentes bolhas nas mãos e o corpo a pedir descanso.

Como se percebe facilmente, não se escolhe, nesta prática, o peixe. A fisga tanto dá em grado como em miúdo: vai tudo a eito. Sobretudo na picareta é cruel.

A picareta é uma fisga com o aspecto de um pente com algum espaço entre dentes. A fisga das enguias é como uma mão. Se se afastarem os dedos muito levemente, mantendo os dedos quase a tocar uns nos outros, é de enguias; se se abrirem bem os dedos, transforma-se em picareta, sobretudo para trabalhar a pé, quando as águas já estão tão baixas, que a bateira não navega. Embora a picareta possa apanhar uma por outra enguia (praticamente só as mais grossas), o seu fim é a apanha das solhas e dos linguados. Nunca é utilizada com o lampião, mas sempre e só às cegas. E, quer pelo espaço entre dentes, quer pela sua grossura, corta as enguias miudeiras, matando-as, desaproveitando-as e, de igual modo, nas solhas e nos linguados arpoa-os por vezes do tamanho dum relógio de pulso.

Enquanto utilizei a picareta, doía-me a alma de cada vez que um dente apanhava alguma solha ou linguado que não servia nem para a cova de um dente de gato e devo honestamente reconhecer que, ao contrário do candeio, esta prática deveria ser rigorosamente proibida.

O cesto de vime e o novelo das minhocas: para ir a saitela, dizia o Professor. Eu, na ignorância dos dicionários, chamar-Ihe-ei sertela. Às vezes, minha mãe, outras vezes irmãos, às vezes amigos mais atentos chamam-me a atenção de termos que uso no meu falar despreocupado. Ora, quem sai aos seus não degenera, também nem sempre regenera e eu prefiro o léxico aqui e além sujo dos lodos, desta minha feira de vaidades, ao vocabulário moldado como os pezinhos das chinesas.

Adiante e voltando às palavras do professor, dizia ele que eram os velhos, aposentados, que iam à sertela. De facto, constato nas minhas andanças que, salvando um caso aqui, outro além, são efectivamente homens de meia idade ou já velhotes que se dedicam a esta singular forma de apanhar enguias. No que me diz respeito não fui mais que umas escassas vezes (como lamento terem sido tão poucas!) com o meu sogro e, quanto sei, dele o colhi.

Um colega meu de fábrica, que trabalha nas oficinas, tem essa paixão. Como não tem outros recursos, pesca na margem do Antuã, quando vê o rio de feição ou, mesmo que sem ilusão, para estar entretido já que tem a casa a dois passos. Já o tenho visto, com um guarda-chuva velho, ultimamente uma bacia.

A sertela faz-se com uma varinha, de madeira leve, fininha, normalmente uma caninha da Índia, na ponta da qual se amarra um novelo de minhocas (também se pode fazer o minhoqueiro com caranguejo de larga, para a ria) que previamente se coseram com uma linha forte, como quem faz um extenso colar. Metem-se as minhocas na água aflorando o fundo, oscilando levissimamente a vara a sentir, a tentar o peixe.

Um apaixonado à sertela.
Um apaixonado à sertela.

Quando as enguias mordem e fixam os dentes nas minhocas é preciso puxar para fora rápida, decididamente, sacudindo de imediato para dentro do guarda-chuva, para o gigo, para a bateira.

Ora essas línguas de prata que sempre são os companheiros de trabalho foram, há anos, incansáveis a narrar a memorável pescaria que o colega tinha feito numa noite. Aquilo era uma enguia atrás da outra. Foi-as amealhando para o velho guarda-chuva, nem se dando ao cuidado de ir cear. Quando finalmente sentiu que eram horas, tirou a última e puxou para cima o guarda-chuva... vazio. Virou-o ao céu e viu luzir o buraco por onde lhe fugira a última enguia. Que era sempre a mesma, no dizer cáustico dos colegas. Tenho para mim que vestiram com a sua roupa o corpo da anedota. Mas o que é certo é que nunca mais o vi com nenhum guarda-chuva e a rapaziada deixou-o em paz.

O meu sogro, a quem este livro se dedica, teve toda a vida a paixão da caça e da pesca às enguias e foi, em ambas, exímio. Com ele partilhei momentos das paixões comuns que me é penoso recordar. Conhecia profundamente toda a região e dedicava-se às coisas com inteligência, com sentido de observação e força de vontade.

Abeirava-se já dos oitenta anos e enchia-nos de preocupações e sobressaltos por causa das enguias. Ia sozinho com a carrinha de caixa aberta Peugeot, o bote atrás, para onde calhava. De marcha-atrás aproximava a carrinha da borda e arriava o bote. Para baixo, todos os santos ajudam. Pois! Mas carregava-o para cima igualmente sozinho e sempre em locais ermos. Nunca dizia para onde ia, enfadava-se quando lho perguntavam e creio que só comigo se confessava. Conhecia-lhe os sítios e algumas vezes lhe apareci de surpresa só porque sim. Ficava então contente. Mas era realmente uma aflição porque, se estava a dar, ele deixava-se estar, se não dava nada, insistia ainda na esperança que o evoluir da maré modificasse o peixe. Faziam-se horas da ceia, tantas vezes em feias noites de invernia, e o mestre não aparecia... E tanto podia estar em Canelas, como no Bunheiro, em Pardilhó ou em Válega.

Uma noite de Verão (os milhos estavam verdes mas altos) eu acabava de jantar quando ele chegou a casa. Vinha aborrecido por ter perdido a vara do minhoqueiro. Recordo que apesar da altura do ano estava mau tempo com vento e chuva. O rio andava emborralhado e a função até nem tinha corrido mal. A chatice era a vara ter-se perdido. Quis saber onde e como. Que devia ter caído abaixo da carrinha com qualquer solavanco, sabia-se lá onde. Não valia a pena. Insisti e lá fui, de motorizada, sempre devagar e apalpando todo o chão do caminho com os olhos. O sítio da pescaria tinha sido no Antuã, perto da ponte do comboio, por um caminho entre milheirais. Fui andando devagar, mas acelerando sempre para aumentar o foco de luz. Quando me aproximei da margem, a motorizada iluminou um vulto negro que não virou a cara à luz. Dei as boas-noites, mas não respondeu. Acelerando com a motorizada parada dei mais luz e esquadrinhei o chão onde percebi os rodados da carrinha. Quando pensava já retroceder, o homem diz-me do seu canto:

– O que você procura tenho-o eu aqui.

Reconheci-o então pela voz. Era o velho António "polícia" de quem eu era conhecido e amigo e que tinha também o vício. Tratei-o pelo nome e fui ao seu encontro. Tinha visto a varinha cair da carrinha e estava-se já a servir dela com mais proveito do que obtivera com a sua.

Quando voltei a casa, o silêncio feliz com que o meu sogro pegou na varinha, pagou-me de sobejo a aventura.

– Onde estava?

Antes que alguém deduza que a varinha fosse de condão, quero desfazer qualquer equívoco e dizer que se tratava duma simples caninha da Índia. Das pretas e nascida defeituosa, grossa e cheia de nódulos na base, mirrada no seu crescimento, portanto afunilando logo, como um florete. Mas era por tudo isso que era especial. Pauzinhos de Austrália, caninhas da Índia, ai o que há disso por aí! Nas mãos dum bom moleiro tudo se transforma em farinha, mas (e sabem-no tão bem os caçadores!) há varinhas de minhoqueiro, canas de pesca, armas, fisgas que se casam com o nosso braço, com a nossa mão, com a nossa alma. Quem faz a panela faz o testo para ela, não é?

Claro, a varinha só resultará se tiver na extremidade um bom minhoqueiro e, nisso estava um dos grandes "segredos" do meu sogro.

Dantes viam-se por aqui, nas noites de tempo virado do avesso, homens com uma lanterna e uma lata, pelas bermas dos caminhos, à procura de minhocas. Porque, sobretudo na Primavera e no Verão, nem sempre as há em quantidade e qualidade para tecer o minhoqueiro.

Ao contrário dos aflitos e dos improvisadores, meu sogro manteve sempre uma espécie de viveiro, que cuidava com desvelo – viveiro que custava arrelias e cuidados à minha sogra – para ter sempre recurso a minhocas finas, saborosas e odorosas. Era o seu segredo da pólvora! Algumas vezes o testemunhei: podia haver várias bateiras na mesma zona que o fieiro era sempre dele. Os outros apanhavam, com certeza que sim, mas o seu minhoqueiro tinha o condão da flauta...

Barricas de enguias outrora em madeira, hoje de lata.
Barricas de enguias outrora em madeira, hoje de lata.

Uma ocasião foi bater uns cantos para os lados de Canelas. Em três excursões apanhou cinquenta e tal kgs de enguias. Não estou a fantasiar. Enguias negras, intragáveis. Negras por terem adquirido a coloração das folhas podres das amieiras, intragáveis pelo gosto acentuado do lodo das valas, que nem o mais carregado escabeche conseguiu disfarçar. Podia ter insistido mas, nessa ocasião, logo se virou para os lados do Bunheiro e Válega, onde a safra era bem mais diminuta mas de fina qualidade. É bem preferível suportar a pressão dos caranguejos (vêm muitos ao minhoqueiro, às vezes estorvam mesmo sem remédio a pescaria) mas colher o que é realmente bom. E as enguias da zona norte da ria são indubitavelmente as melhores e, naturalmente, é sempre preferível beber um bom copo de vinho a uma garrafa de zurrapa.

Na pesca da sertela acontece o que acontece na caça. Quando eu era mais moço, andava por aqui um cego a vender cautelas. Acho que era de Fermelã; e há muito já que deve ter falecido. Exibia a lotaria numa mão e tinha um refrão invariável: "Há horas felizes!; Há horas felizes!..." Nunca falava das outras...

Seja ao robalo à amostra, no chinchorro ou na sertela, há sempre as tais horas de que o cauteleiro não falava. E há as felizes que, na sertela, têm quase sempre um pouco mais de prolongamento no tempo como se, após os sete anos de vacas magras, se tivessem que suceder os mesmos de vacas gordas. Deve-se, então, aproveitar. Tira a família a barriga de misérias, às vezes os amigos, a vizinhança também. Dos dias felizes aproveita também a Comur, a fábrica de conservas de enguias da Murtosa, já que os serteleiros aí as vão vender.

Contaram-me certa ocasião uma história em que um lavrador do Douro recebeu a visita dum Marquês qualquer. Mandou então a um criado que servisse ao senhor Marquês um cálice de vinho fino do que tinha de melhor. O Marquês emborcou o cálice. A um sinal, o criado voltou a encher e o senhor Marquês esvaziou-o com a mesma sofreguidão. O lavrador já não mandou encher terceiro. Virou-se para o criado e disse-lhe apenas:

– Traga um jarro de água, que o senhor Marquês está cheio de sede!

Quem põe enguias na arca congeladora aprecia-as tanto como o Marquês da história. São inúmeros os peixes que se podem conservar no gelo sem que percam o sabor. Nas enguias é crime.

A antiga abundância e a dificuldade da sua conservação estão na origem dessa fábrica, que é um verdadeiro ex-libris da região e, como já sugerido, contribuiu desde a sua fundação para o equilíbrio financeiro de inúmeras famílias, quando não era (ou é) mesmo o único recurso de subsistência de pescadores.

Um resto de caldeirada que sobrou pode-se ainda aquecer no dia seguinte. Depois vai para o lixo. Fritas, comem-se no dia, no dia seguinte e, se as meterem num bom escabeche, continuar-se-ão a comer por vários dias mais.

Num qualquer mês de 73, a monotonia do correio, que nos chegava a um povoado perdido nos confins de Moçambique, foi quebrada por um embrulho que um companheiro de Aguada recebera. Comíamos, então, carne com massa e massa com carne, variando a ementa periodicamente com rações de combate.

O embrulho, preparado com desvelos de mãe, trazia dentro duas barriquinhas de madeira com enguias da Murtosa e a memória de quanto havíamos deixado. Juntaram-se à mesma mesa, por deferência do felizardo, todos os que eram da região de Aveiro; e fomos irmãos, quanto o poderíamos ser na adversidade, por um punhado de enguias.

Compreendi então todo o significado que tem o pipinho (agora são de lata) de enguias de escabeche da Comur na diáspora portuguesa, sobretudo na América e no Canadá, onde estão sediadas as mais significativas comunidades de emigrantes Murtoseiros.

Meu sogro sabia apenas, por ouvir dizer, que vinham do Mar de Sargaços. Por quanto tenho escutado aqui e além, nada sabem deste peixe os que mais o apreciam e sobretudo os que vivem da sua captura. E, afinal, que bicho é este que Aristóteles julgava que provinha do âmago da terra?

 

 
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