1.
Evocando o passado
Uma
velha fotografia, tirada no centro da Vila de Estarreja pelo escritor Tomaz de Figueiredo, em que se vêem umas peixeiras esperando talvez a
camioneta da carreira que as levaria de volta à vizinha Murtosa ou à
Torreira, fez-me lembrar a Laurinda e outras peixeiras de que jamais
soube o nome e de cujos rostos não pude guardar memória.
Esperando a camioneta.
Fotografia de Tomás de Figueiredo. |
Como
aquelas que a foto mostra, a Laurinda vinha, canastra à cabeça,
vender peixe pelas portas, peixe da Torreira ou do rio, que é como as
gentes de lá chamam à Ria, pelas freguesias de todo o concelho,
chegando a alcançar, nos seus comércios, as freguesias de Soutelo,
Albergaria-a-Nova... O carrego era quase sempre de sardinhas, de
muges, de tainhas, carapaus e, sobretudo, de enguias. Às vezes, algum
peixe fino: linguados, lulas, robalinhos. Mas também o desvalioso
camarão-bruxo. Tudo cabia nessas canastras já que os compradores eram
também de paladares e recursos vários. |
Na
fotografia, que tem perto de meio-século, percebe-se o abatimento
físico das mulheres no final da jornada (as canastras já estão
vazias), a roupa que usavam e o calçado – todos os figurantes estão
descalços, inclusivamente o homem que empurra o carro de mão. Se
adregava a camioneta já ter passado ou se o apuro era menos que um
migalho, lá iam aquelas almas a pé, gândara de Veiros fora...
Normalmente, as peixeiras faziam sempre a mesma volta. Era importante o
conhecimento da freguesia e a sua fidelização.
A
nossa casa estava na rota da Laurinda, embora outras nos batessem à
porta. Por isso, pelas vezes sem conta que passou por nossa casa, ao
longo dos anos, a Laurinda tornou-se familiar; e ouvi-la a negociar com
minha mãe era escutar uma cantilena puída de tão martelada. É que a
peixeira conhecia a cliente, os gostos da casa, e esta as manhas
daquela. Às vezes, os preços ditavam a opção de compra. Hoje, podia ser
uma tainha para assar no forno; amanhã, umas petingas para
fritar.
Uma
das coisas que a Laurinda vendia regularmente à minha mãe eram enguias
que o meu pai muito apreciava.
No
Distrito de Aveiro, em todo o baixo Vouga, as enguias estavam para a
classe dos peixes como os pardais estão para a das aves (leia-se
pássaros), que se encontram um pouco por toda a parte. Para que a
minha mãe as comprasse, a peixeira tinha que as amanhar, o que
invariavelmente fazia, protestando, pela falta de vagar, as horas da
camioneta, o preço então desajustado. Amanhava-as à pressa,
embrulhando-as previamente em areia, com um canivete afiadíssimo que
entrava pelo umbigo e cortava, deslizante, até à cabeça, para depois
voltar abaixo um pouco, até onde ficara um resto de tripa. Vivas,
debatiam-se, e dificultavam a tarefa que em mãos inexperientes se
tornava mais demorada, porque se escapavam sucessivamente das mãos,
deixando-as pegajosas do seu ranho.
Conheci-as assim, enfarinhadas com areia nas canastras de muitas
Laurindas e depois, ao acaso por toda a minha aldeia (Salreu), pela
Murtosa, pela Torreira. Era, de resto, inevitável dado que, mal saído
do berço, fui acometido de forte carga de bicho-carpinteiro e agia em
consequência. Faltava à escola para ir apanhar grilos ou ir para o rio
Antuã, para andar aos ninhos e não foi preciso esperar que a barba me
despontasse para arranjar uma cana de pesca e uma Flaubert de fabrico
artesanal, que disparava por uma patilha, tudo à sorrelfa e sempre com
parceiros que sofriam da mesma virose. Nas crises mais agudas,
davam-me xarope de marmeleiro e, também com arreliadora frequência,
manteiga de sobreiro. E tudo para nada, já que viroses dessas só se
curam com o tempo e nada resolvem as sopas de urso.
Uma chincha (tipo de rede)
de poucas braças a secar num pátio murtoseiro.
A
banhos na Torreira, eu andava sempre a fazer sombra aos pescadores
desportivos e a estorvar as companhas das pequenas chinchas. As
enguias lá estavam sempre. Passando o S. Paio, colhia-se o arroz nas
marinhas de Salreu e, onde tinha sobrado um resto de lama húmida, os
lavradores apanhavam ainda um bom balde de enguias. Sobretudo os que
iam escoar valas apanhavam-nas às sacadas, literalmente. E tanto se
propalou a notícia do ouro que um dia pedi à minha mãe autorização
para ir para o campo às enguias. Tive que explicar longamente que não
era para o rio, que era nas valas das praias de arroz, água só pelos
joelhos, com baldes... Lá me deixou! Na manhã seguinte, o nascer do
dia já me encontrou a caminho com um parceiro de escola, o Figueiredo,
enxada às costas, balde na mão e um saco de serapilheira, que talvez
não fosse suficiente para o que sonhávamos apanhar...
Caminho fora, íamos olhando as valas. Esta não que já foi mexida, esta
também. Esta outra não deve ter nada. Nenhuma nos parecia de feição
até que a possibilidade de escolha se foi limitando. Finalmente,
elegida uma vala, pusemos mãos à obra. Tirámos sapatos e meias,
pusemo-nos em cuecas e, já dentro da água, costas contra costas, à
força de cortar com as enxadas nas ombreiras da valacha, íamos fazendo
uma tapada. Mordia-nos o cabo da enxada as mãos mimosas, mordiam-nos
os mosquitos e as moscas, no suor que o calor do sol ia tornando mais
copioso, e mordiam-nos as sanguessugas que tínhamos que estar
constantemente a arrancar das pernas. Mas tanto batalhámos que
lográmos fazer a primeira tapada.
Entretanto, a manhã tinha crescido. Os patos já não cruzavam os
arrozais, nem as galinhas-da-água agitavam as canízias com os seus
piados guturais. Pairavam milhafres e silêncios quietos como as águas.
Na
nossa inexperiência não tínhamos levado nem pão, nem água.
Mas
o que nos desesperava era não ter ainda uma só enguia ao cabo de
tantas horas. A vala, porém, regorgitava delas. Tínhamo-las sentido
sob os pés. Faltava apenas fazer a segunda tapagem e escoar a água do
meio com baldes.
Saímos, andámos um pedaço e voltámos à vala, caminhando, como quem
pisa uvas num lagar, para as enxotar de encontro à barreira. A poucos
metros parámos e iniciámos a edificação da tapada que as aprisionaria.
Quando finalmente o conseguimos, demo-nos pressa em tirar a água do
meio. O pior é que a água de fora começou a fazer pressão e arrombou
em segundos o trabalho de tantas horas...
Destruídos, encetámos o regresso e, no caminhar penoso, demos com uma
terra de arroz já cegado onde havia uns poceiros de água. Foi nesses
poceiros que salvámos a honra do convento: meio balde de enguias e
três ou quatro pimpões meio atonados.
A
tarde já declinava quando regressámos. Para encurtar caminho, deixei o
Figueiredo depois da linha do comboio e subi pelas terras para
desembocar num cancelo que havia ao lado da minha casa. Não entraria
com um saco cheio mas, de qualquer maneira, com enguias e pimpões.
Abri o portão e mal tive tempo de dar um pulo para o lado, largando
tudo. O cabo de vassoura que minha mãe brandia despedaçou-se no chão e
o falhanço do golpe deu-me asas para voar até à casa de banho, onde me
aferrolhei só saindo depois da minha mãe prometer que não me batia. E
não mais soube das enguias ou dos pimpões.
Sublinho que a abundância de enguias no campo não era uma fantasia de
miúdo, mas antes uma realidade daqueles tempos em que a Ria
desconhecia ainda o terrível assoreamento de hoje e em que as
invernias traziam sempre cheias avassaladoras do Vouga (sobretudo), do
Antuã e de quantos riozinhos e ribeiras vertem as suas águas na grande
laguna. As enguias subiam (sobem sempre) e depois ficavam em tudo o
que fossem valas, poços, fios de água que depois o verão minguaria.
Nos
anos sessenta, na ribeira da Enxurreira, em qualquer manhã de verão
das primaveras que tive algures, no açude onde as mulheres lavavam a
roupa, apanhei, mais o rapazio, várias centenas de enguias e de
lampreias. Eram tão finas que as devolvíamos à corrente. Hoje, esse
riozinho continua a correr mas, talvez por ser vazadouro de
cisternas de vacarias e tanta merda das gentes civilizadas, já só
tem água que, em alguns anos mais secos, estagna longamente à espera
das primeiras chuvas outonais, antes de conhecer a vastidão da ria. |
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Velhos
galrichos |
Esses
juvenis de lampreia e essas enguias que se assemelhavam a restos duma
cabeleira semeada no acaso das águas, ainda os encontrei noutras
ocasiões pelo rio Antuã.
Já o
disse: faltava à escola para ir para esse rio, misturado com a canalha.
Gastávamos tardes à pesca dos robacos com bolinhas de pão ou
simplesmente à mão, nas tocas. Jamais me tentou a proibida coca.
Tentavam-me os galrichos e tentavam-me as palmas dos mais velhos, artes
para que se esbugalhavam os olhos dos meus bolsos vazios. E eu roído...
Para atiçar a chama lá estavam igualmente as bateiras. Para ir botar os
galrichos, para ir às lampreias.
Uma
ocasião, um dos parceiros de galdéria, abafou meia-dúzia de galrichos ao
pai e lá os fomos armar. A boca para o mar, debaixo das ervas para que o
peixe na procura da sombra e do abrigo fosse melhor à armadilha e
igualmente para não serem roubados. Depois era só preciso dar tempo...
Mas,
fosse porque a camuflagem deixasse a desejar, fosse porque alguém nos
tivesse observado, os galrichos levaram sumiço e, em vez de enguias, o
meu companheiro deve ter comido da canja, já que eu lavei logo ali, na
água corrente, as mãos, como Pilatos.
Na
mesa, nesse viajar do tempo, apareciam, volta e meia, as enguias da
Laurinda. E outras, agulhas em palheiro, que eu apanhava quando já em
plenas férias, na Torreira, andava ao tim-tim. Da borda, sempre da borda
com a cana e um carreto Luxor, que recebi da minha mãe como prémio pelo
exame do 2º ano do liceu. Uma só vez, nesses tempos, fui de barco e
deixou cicatriz na memória. O meu pai tinha pedido a amigos que me
levassem e num qualquer dia de férias da Páscoa se combinou a pescaria.
Partimos sete, sendo eu o único miúdo, numa bateira grande, à vela
(motor fora de borda: o que era isso?), do cais do Bico e lá fomos pela
ria fora. O pesqueiro seria talvez lá para o Gramatal ou para o Cabeço
da Cruz, onde lançámos ferro. Decorria a pescaria, que até nem estava a
ser má, quando uma aragem arreliadora começou a encapelar a ria. Em
pouco tempo a aragem cresceu, as vagas engrossaram e ficámos à mercê dum
temporal medonho que desfez a vela e ameaçava tragar-nos juntamente com
a bateira dum momento para o outro. Arrastámo-nos penosamente com os
remos até que alcançámos a Pousada, onde nos fizeram beber imediatamente
aguardentes, cafés quentes e chamaram um carro para nos levar embora.
Da
borda nunca se apanhava a caldeirada que se conseguia de barco, mas o
vício era na mesma enganado e os robalos, mesmo que fossem esgana-gatos,
vinham sempre. Quando calhava uma por outra solha, linguado ou enguias,
indesejadas pelo serviço que fazem aos estropos: embrulham-se todas,
enroscam-se e, sobretudo quando ainda se não tem experiência e se demora
a recolher, é mais que certo ter que substituir o estropo e ficar a
maldizer a sorte de... ter apanhado peixe!
Era
nesse tempo de férias que, nas noites escuras, quando o ar não bolia, eu
assistia ao espectáculo que era o baile dos candeios pela ria fora. Eram
às dezenas e pareciam-se com pequeníssimas cidades flutuantes.
A ria
sempre foi maravilhosa nas noites de luar, como se à noite o céu
devolvesse às águas toda a luz que o sol tinha emprestado ao seu espelho
diurno. A arte do candeio requer, porém, outra ambiência. É fundamental
que a noite esteja escura e que não haja vento. Qualquer aragem faz
marulhar a água e impede a visibilidade dos fundos, essencial para a
pesca.
A pesca ao candeio. Pintura
de José de Oliveira.
A
vida, decorei-o de qualquer verso ou duma qualquer canção de Vinícius de
Morais, é a arte do encontro... embora haja tanto desencontro. É assim
também o candeio. São raras as noites propícias à sua prática. Há sempre
qualquer coisa que gera o "desencontro": o luar, o vento, a maré, os
afazeres da vida... Quando, porém, tudo se conjuga, colhem-se as tais
noites de magia a que aludi noutras prosas. E então é assim: juntam-se
dois manos à boca da noite. Calha então muito bem que a maré esteja a
vazar. Acende-se o petromax na ré da embarcação e vai-se com a corrente.
Um parceiro, com a fisga, junto ao petromax, o outro à vara atrás,
vogando, como se depreende, a embarcação ao contrário. Ao longo da
pescaria, revezam-se, se ambos forem habilidosos, porque, de contrário,
é sempre preferível que o mais azelha vá com a fisga. A manobra da
bateira tem que ser de artista para a deixar ir com a corrente, com
souplesse (perdoem-me a expressão, mas é necessária), volteando nos
sítios de crença do peixe. Uma vara mal manejada, que se enterra no lodo
e que é arrancada de supetão, pode mandar o camarada para a água num já.
A
melhor posição, indubitavelmente, é a da fisga, já que é quem a manobra
que assiste ao espectáculo dos fundos iluminados pelo potente candeio
(geralmente 500 velas, ajudados por uma chapa espelhante, reflectora)
que vê o peixe e o arpoa. Enguias sobretudo, algum peixe chato, que
requer olhar de lince, chocos, douradinhas. As douradinhas parecem
dormir em quieto equilíbrio, as enguias mal oscilam... Fogem do candeio
os robalos e as tainhas velhas. Para caçar alguma é preciso lançar a
fisga para a frente, sem demora no lance, para o passar, um pouco
acreditando no acaso que favorece os artistas e desespera quem não sabe.
Curiosamente as tainhas miudeiras saltam aos montes para dentro da
bateira quando se rema e topa cardume. Assemelham-se a uma girândola de
prata, a acha que crepita à toa lançando fagulhas para dentro do barco.
Fisgas de enguias.
Por
vezes, o parceiro da vara pode usar uma segunda fisga, usando-a quase só
aflorando o fundo para não danificar os dentes e concorrendo para a
caldeirada espetando o peixe à esquerda que ao camarada fugiu à direita.
E assim, duma maneira ou outra, vão andando com a maré, esquecidos do
mundo, esquecidos de tudo, absolutamente de tudo. Na pesca do candeio
perdem-se a noção das horas, do tempo, esquecem-se vontades de comer ou
de beber, esquecem-se cigarros, esquece-se o mundo como se se estivesse
sob poderosa hipnose.
No
alheamento total há, porém, que manter sempre presente o sítio donde se
partiu, onde se terá que chegar. Porque o barco voga para tão longe, dá
tantas voltas e reviravoltas que não são precisos muitos minutos para já
se não saber se se está para o lado do mar ou da serra, para norte ou
para sul. Claro, a água corre, há outras referências. Mas o que nos
sabidos é uma coisa, nos estreantes é outra. E, quando calha de vir
nevoeiro inesperado, então estão perdidos uns e outros...
Uma
ocasião fui com meu sogro ao candeio. Entramos na ribeira do Nancinho,
Pardilhó, e lá fomos pela ria abaixo, rapidamente alheios a outra coisa
que não fosse fisgar o peixe, ripá-Io para a caixa, buscar mais.
A
névoa foi-se instalando entretanto, subreptícia, insidiosamente e quando
a apercebemos já estávamos embrulhados na sua teia. Chegámos a casa às
quatro e tal da madrugada e, mesmo assim, com alguma sorte: umas cristas
de pinheiro que tinham ficado fora da cortina valeram-nos o norte dessa
noite.
Não
conheço casa de pescador de toda a zona em que vivo que não tenha em
qualquer recanto da garagem ou do telheiro uma fisga. E se a mente
viajar pelo Bunheiro, por toda a Murtosa, por Pardilhó, por Válega,
então é quase um sacrilégio não a ter, mesmo que "o ferro" passe meses
ou anos sem ser utilizado, entendido que não me refiro aos
profissionais, mas a todos quantos tenham na vida as mais díspares
profissões, mas gostam de pesca e amem a ria. Muitas vezes as obrigações
profissionais, familiares – tanta coisa da vida de cada um – não nos
permitem ir para a "função", mas é como que uma questão de conforto
pessoal saber que elas estão lá. Em algumas famílias amigas que estão na
América eu tenho reparado em como as deixam enmassadas e quero crer que
em alguns instantes se lembrarão delas sabendo-lhes, nesses instantes, a
vida a desterro.
Utilizei o plural, porque, na realidade, têm-se sempre várias. A começar
pelas das enguias. Nem todos os ferreiros as fazem com a mesma mestria e
há sempre uma que nos agrada mais do que as outras (estou a falar de
fisgas) pelo afiado dos dentes, pelo balanço. Depois há as solheiras, as
picaretas para ir às solhas e aos linguados.
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