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Sérgio Paulo Silva, O Antuã no seu acabar, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs., ISBN 978-989-95333-0-1

O Antuã

Pequeno olho de água ali para o vale de Cambra e Arouca, rebentando da rocha serrana e caindo de pedra em pedra, mansozinho sobre o tapete de musgo, pinga que pinga, cristalino, boa linfa para os campos, hulha branca nas turbinas e azenhas, e, já antes disto, ambrosia que alimenta e consola o pegureiro daquelas paragens ou um qualquer viageiro ousado, fugido bravamente do seu conforto, esquecido da companhia animosa de amigos, do aturdimento das festas virilmente abandonadas em troca de ar salubre, rijeza comunicativa da flora rústica, bando sadio das coisas da natureza – olho de água nas serras, depois ribeiro e finalmente rio, assim se forma de uma bela, vasta e fértil bacia hidrográfica este Antuã que banha Estarreja e vai depois cansado, mole já, da moleza que lhe empresta a planície, espojar-se entre os milhos, o arroz e os juncais, na Marinha, até à Ria.

Quem o subir da foz às nascentes, tem de ser lampeiro e seguro das quedas, que o Antuã, já por Estarreja, dominado às mãos do homem aqui bastante industrioso, deforma-se em açudes e azenhas, não altos nem feios, mas que, soberbos da sua importância, se opõem ao trânsito do mais delicado barquinho. / 64 /

Subi-lo com felicidade e préstimo, só a pé, mochila bem carregada para a manduca, manta e uma tenda; e, como por ali não há feras, leve por uma arma a cana e o anzol, que é bordão e serve para o peixe – boa truta irisada, bom barbo gordo e talvez lampreia, se houver pulso calmo e forte para a fisga e for tempo.

Uma vez por outra, se quiser, acolhe-se à mansarda do moleiro: em cada açude há um moinho, morada e fábrica deste cristão homem, de serviço antiquíssimo e cristão, que logo contente vos abraça e convosco reparte candura e fartura de sua alma e sua casa.

Assim se passarão três dias, três meses ou três anos: quanto mais demorar, mais são fica e mais feliz. São trinta quilómetros, ou sessenta ou noventa; parece perto, mas porque se abstrai, voa o tempo, nada se sentindo, a não ser que a natureza prenhe, formosa, nos prenda inebriados em seus úberes e delícias.

Por aqui, junto aos açudes, se irá a gente inspirado para alucinações ou memória de chalet suíço, com o lago e o jardim, o cantar amoroso de cucos e rolas, fragrância deleitosa de rosmaninho e pinheiros, vida feliz de ar livre, fresco, varrido a brisa, luz irisada e macia entre folhas, mansa água reverberando no rio calmo, que levemente desliza para mais além, até outro açude... / 65 /

E em algures espertam nervos e coração alvoroçados na vida nova que os toca. A água canta nas quebradas, rijo gargalhar feliz, de quem partiu grades de cadeia e se libra chapiscando ribas e alcantis, dando mais luz à luz, nas camarinhas que caem e vão depois, fortes da força do rio a que se deitaram, ser motor à central eléctrica que o homem impôs ao rio para que se torne menos sofredora a vida que sofre.

E em redor, as courelas, ricas de rico húmus, toucam-se de verde e árvores e de gado amigo a tosar que, à nossa vista, inquieto, a balir, a berrar, nos ergue a fronte, em atenção.

Depois as casas, três ou trinta, fazendo sinal de povoação, brancas de gaivota, telhadinhos vermelhos por Estarreja, e fumentos, graníticas e colmeadas, sem janela ou postigo e só uma porta, se é mais acima, rumo à Espanha, lá por Azeméis, Cambra e Arouca.

Toda a orquestração da natureza viva, crepitando ao tempo, dando em parto rico o negro mineral, o pão, o leite e a fruta, sinfoniza com o viver feliz do homem do sítio que moureja e à vista do viandante se detém, chapéu na mão, enxada quieta, recebendo os bons dias civilizados a diluir-se pálidos entre o buzinar / 66 / do Ford ovante, singrando coleante, no arvoredo da estrada, recachia ao Vale do Vouga, comboio da montanha, serpente em chamas, contorcendo-se fulo, na vertigem que pisa o ar em assobio estrídulo contra a inocência bela, salubre e comunicativa desta paisagem soberba por onde passa o Antuã...

Dr. Joaquim Soares Rodrigues da Silva

 
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