Pequeno olho de água ali para o vale de Cambra e Arouca, rebentando da
rocha serrana e caindo de pedra em pedra, mansozinho sobre o tapete de
musgo, pinga que pinga, cristalino, boa linfa para os campos, hulha
branca nas turbinas e azenhas, e, já antes disto, ambrosia que alimenta
e consola o pegureiro daquelas paragens ou um qualquer viageiro ousado,
fugido bravamente do seu conforto, esquecido da companhia animosa de
amigos, do aturdimento das festas virilmente abandonadas em troca de ar
salubre, rijeza comunicativa da flora rústica, bando sadio das coisas da
natureza – olho de água nas serras, depois ribeiro e finalmente rio,
assim se forma de uma bela, vasta e fértil bacia hidrográfica este Antuã
que banha Estarreja e vai depois cansado, mole já, da moleza que lhe
empresta a planície, espojar-se entre os milhos, o arroz e os juncais,
na Marinha, até à Ria.
Quem o subir da foz às nascentes, tem de ser
lampeiro e seguro das quedas, que o Antuã, já por Estarreja, dominado às
mãos do homem aqui bastante industrioso, deforma-se em açudes e azenhas,
não altos nem feios, mas que, soberbos da sua importância, se opõem ao
trânsito do mais delicado barquinho.
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Subi-lo com felicidade e préstimo, só a pé, mochila bem carregada para a
manduca, manta e uma tenda; e, como por ali não há feras, leve por uma
arma a cana e o anzol, que é bordão e serve para o peixe – boa truta
irisada, bom barbo gordo e talvez lampreia, se houver pulso calmo e
forte para a fisga e for tempo.
Uma
vez por outra, se quiser, acolhe-se à mansarda do moleiro: em cada açude
há um moinho, morada e fábrica deste cristão homem, de serviço
antiquíssimo e cristão, que logo contente vos abraça e convosco reparte
candura e fartura de sua alma e sua casa.
Assim
se passarão três dias, três meses ou três anos: quanto mais demorar,
mais são fica e mais feliz. São trinta quilómetros, ou sessenta ou
noventa; parece perto, mas porque se abstrai, voa o tempo, nada se
sentindo, a não ser que a natureza prenhe, formosa, nos prenda
inebriados em seus úberes e delícias.
Por aqui, junto aos açudes, se irá a gente
inspirado para alucinações ou memória de chalet suíço, com o lago
e o jardim, o cantar amoroso de cucos e rolas, fragrância deleitosa de
rosmaninho e pinheiros, vida feliz de ar livre, fresco, varrido a brisa,
luz irisada e macia entre folhas, mansa água reverberando no rio calmo,
que levemente desliza para mais além, até outro açude...
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E em
algures espertam nervos e coração alvoroçados na vida nova que os toca.
A água canta nas quebradas, rijo gargalhar feliz, de quem partiu grades
de cadeia e se libra chapiscando ribas e alcantis, dando mais luz à luz,
nas camarinhas que caem e vão depois, fortes da força do rio a que se
deitaram, ser motor à central eléctrica que o homem impôs ao rio para
que se torne menos sofredora a vida que sofre.
E em
redor, as courelas, ricas de rico húmus, toucam-se de verde e árvores e
de gado amigo a tosar que, à nossa vista, inquieto, a balir, a berrar,
nos ergue a fronte, em atenção.
Depois
as casas, três ou trinta, fazendo sinal de povoação, brancas de gaivota,
telhadinhos vermelhos por Estarreja, e fumentos, graníticas e colmeadas,
sem janela ou postigo e só uma porta, se é mais acima, rumo à Espanha,
lá por Azeméis, Cambra e Arouca.
Toda a
orquestração da natureza viva, crepitando ao tempo, dando em parto rico
o negro mineral, o pão, o leite e a fruta, sinfoniza com o viver feliz
do homem do sítio que moureja e à vista do viandante se detém, chapéu na
mão, enxada quieta, recebendo os bons dias civilizados a diluir-se
pálidos entre o buzinar
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do Ford ovante, singrando coleante, no arvoredo da estrada, recachia ao
Vale do Vouga, comboio da montanha, serpente em chamas, contorcendo-se
fulo, na vertigem que pisa o ar em assobio estrídulo contra a inocência
bela, salubre e comunicativa desta paisagem soberba por onde passa o
Antuã...
Dr.
Joaquim Soares Rodrigues da Silva |