Açude da Quinta da Costa
(1886). Óleo sobre tela de D. Amélia Mattos.
Quem
segue pelas margens do rio Antuã encontra, a pequena distância uns dos
outros, açudes e canhotas, à semelhança de reduzidas catadupas que o
homem utiliza para a moagem.
Cada
uma dessas presas de água tem ao lado um casinhoto de estranho aspecto,
construído com pedra e cal e coberto de telha.
Ali,
entre aquelas paredes toscas, desguarnecidas, mói-se milho e centeio de
cuja farinha se faz o pão de boroa, primeiro alimento dos habitantes
desta região.
Ali
vive, ali passa metade da sua existência, numa vida de trabalho e amor,
a figura típica do moleiro.
Ali,
naquele casinhoto, cheio de cavernas, onde, noite e dia, rolam, forçados
pela água que espadana e farfalha, enormes rodas de madeira, que por sua
vez provocam o movimento pesado de outras rodas – as mós de pedra – há
vidas simples, almas cândidas, criaturas impolutas, que levam a
existência trabalhando e sonhando, de corpo feito às dores e acidentes,
e alma temperada em sonhos de um mundo mais farto, e mais lindo, sonhos
ingénuos, mas esplêndidos de inocente beleza.
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O Antuã na zona do actual
mercado em frente ao tribunal. Óleo de J. Mendonça.
Os
moinhos e os moleiros do Antuã!... Imaginai as delícias que gozará o
curioso que se meta a seguir, de montante a jusante, pelas margens deste
rio estreito, mas farto de águas, que ora desliza mansinho, carregado e
negro, ora se precipita, galgando seixos, abraçando areais,
esgueirando-se na sombra dos salgueiros, para surgir além, triunfante,
numa corrida fragorosa, alegre e bela.
As
margens, atapetadas de verdura, ostentam virentes amieiros, austrálias e
salgueiros, que se vergam para o rio, num voluptuoso capricho de tocarem
seus longos ramos no manto opalino que passa em baixo.
É o
Antuã e a plenitude da sua beleza; o Antuã longe dos invernos
tempestuosos em que as águas se tornam barrentas, galgam as margens,
alagam o vale, e, na sua fúria destruidora, parece querer levar com
elas, para um mundo ignoto, a encantadora habitação do moleiro.
Mas
nada!... Não temais, porque o moinho não sairá do seu pé! Forte,
edificado por mão de mestre, ele está ali como glorificação das
montanhas que o ladeiam. As suas paredes são filhas dessas montanhas;
jamais cederão aos elementos! Venham águas, ventos ou raios, que nada os
abaterá.
Firmes
no seu posto, escravas dum único senhor, que é o homem que as possui, a
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ele só, estão sujeitas, apenas se curvam à vontade dele!...
Faina agrícola nas margens
do Antuã. Pintura de Luís Alberto.
E a
pedra violácea torna-se negra, as madeiras caruncham, as telhas
acastanham; a cal desfaz-se, desaparece!... Há buracos no moinho. Há
sopros de raiva ganindo naquelas bocas! A poética mansão é já um velho
pardieiro!... Mas os seus habitantes ainda não são fantasmas ou corujas,
são antes criaturas vigorosas, trabalhadoras, honradas e bondosas.
Que
fecundo enlevo para o artista, deparar-se em frente dum destes moinhos
castigados do tempo, alcandorados num açude, imponentes de beleza e
rusticidade!
Que
salutar convivência, que doce companhia a deste moleiro que, mal rompe a
aurora, já se ergue, assobiando e rindo, numa franca saudação ao dia que
nasce, num mavioso e fecundo desafio ao trabalho que se oferece!
E é
vê-lo, num saracotear cativante, simpático, dirigir-se à levada, e, sem
qualquer cerimónia, despir a camisa, dilatar o peito, retesar os
músculos e lavar-se com afã e civilidade, consolado, feliz da sua
perfeita saúde.
Campos de arroz de Salreu.
Pintura de Luís Alberto (1976)
A
mulher, um curioso tipo de aldeã, corpo roliço, peitos fecundos, faces
coradas, sobrecenhos fartos, cabelos vastos, há muito que fizera acender
na lareira
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um luminho bom, que há-de preparar uma comida a preceito.
O
nosso moleiro não toma café, nem leite, nem chá. Mas ceva o seu apetite
em largas tigelas de sopas bem adubadas com boroa. – Nem as suas carnes
se criavam doutra forma!
Entretanto, o sol foi subindo esplendoroso, vivificante! No céu anil
correm vapores branquinhos, transparentes. Há perfumes subtis; hortelãs,
madressilva, musgo, ervilhas mansas, lançam no ar estranhas essências,
aromas doces, paradisíacos.
A
criançada revolta, mal coberta de roupa, jovial como passaritos, aclama
ruidosamente a partida do pai, cuja presença tanto a contraria. E
enquanto o moleiro vai à marinha e volta, no tempo que ele demora a
distribuir as fornadas e receber o grão para outras, as crianças pulam e
disparatam à vontade, e a mãe colhe as pastagens para o gado, vai à
lenha, arranja a casa, lava a roupa.
Como
tudo isto é pitoresco! Que melhores quadros, mais curiosos e belos,
pode copiar um artista?! Nem eu, que faleço de aptidão e méritos,
deixarei de exprimir todo o meu enlevo a lugares tão aprazíveis e
fecundos de emoção.
Dr.
Joaquim Soares Rodrigues da Silva |