Cabeçalho da página de Sérgio Paulo Silva e hiperligação para a hierarquia superior.

Sérgio Paulo Silva, O Antuã no seu acabar, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs., ISBN 978-989-95333-0-1

O Antuã e seus Moinhos


Açude da Quinta da Costa (1886). Óleo sobre tela de D. Amélia Mattos.

Quem segue pelas margens do rio Antuã encontra, a pequena distância uns dos outros, açudes e canhotas, à semelhança de reduzidas catadupas que o homem utiliza para a moagem.

Cada uma dessas presas de água tem ao lado um casinhoto de estranho aspecto, construído com pedra e cal e coberto de telha.

Ali, entre aquelas paredes toscas, desguarnecidas, mói-se milho e centeio de cuja farinha se faz o pão de boroa, primeiro alimento dos habitantes desta região.

Ali vive, ali passa metade da sua existência, numa vida de trabalho e amor, a figura típica do moleiro.

Ali, naquele casinhoto, cheio de cavernas, onde, noite e dia, rolam, forçados pela água que espadana e farfalha, enormes rodas de madeira, que por sua vez pro­vocam o movimento pesado de outras rodas – as mós de pedra – há vidas simples, almas cândidas, criaturas impolutas, que levam a existência trabalhando e sonhando, de corpo feito às dores e acidentes, e alma temperada em sonhos de um mundo mais farto, e mais lindo, sonhos ingénuos, mas esplêndidos de inocente beleza. / 57 /


O Antuã na zona do actual mercado em frente ao tribunal. Óleo de J. Mendonça.

Os moinhos e os moleiros do Antuã!... Imaginai as delícias que gozará o curioso que se meta a seguir, de montante a jusante, pelas margens deste rio estreito, mas farto de águas, que ora desliza mansinho, carregado e negro, ora se precipita, galgando seixos, abraçando areais, esgueirando-se na sombra dos sal­gueiros, para surgir além, triunfante, numa corrida fragorosa, alegre e bela.

As margens, atapetadas de verdura, ostentam virentes amieiros, austrálias e salgueiros, que se vergam para o rio, num voluptuoso capricho de tocarem seus longos ramos no manto opalino que passa em baixo.

É o Antuã e a plenitude da sua beleza; o Antuã longe dos invernos tempes­tuosos em que as águas se tornam barrentas, galgam as margens, alagam o vale, e, na sua fúria destruidora, parece querer levar com elas, para um mundo ignoto, a encantadora habitação do moleiro.

Mas nada!... Não temais, porque o moinho não sairá do seu pé! Forte, edifi­cado por mão de mestre, ele está ali como glorificação das montanhas que o ladeiam. As suas paredes são filhas dessas montanhas; jamais cederão aos elementos! Venham águas, ventos ou raios, que nada os abaterá.

Firmes no seu posto, escravas dum único senhor, que é o homem que as possui, a / 59 / ele só, estão sujeitas, apenas se curvam à vontade dele!...


Faina agrícola nas margens do Antuã. Pintura de Luís Alberto.

E a pedra violácea torna-se negra, as madeiras caruncham, as telhas acas­tanham; a cal desfaz-se, desaparece!... Há buracos no moinho. Há sopros de raiva ganindo naquelas bocas! A poética mansão é já um velho pardieiro!... Mas os seus habitantes ainda não são fantasmas ou corujas, são antes criaturas vigorosas, trabalha­doras, honradas e bondosas.

Que fecundo enlevo para o artista, deparar-se em frente dum destes moi­nhos castigados do tempo, alcandorados num açude, imponentes de beleza e rus­ticidade!

Que salutar convivência, que doce companhia a deste moleiro que, mal rompe a aurora, já se ergue, assobiando e rindo, numa franca saudação ao dia que nasce, num mavioso e fecundo desafio ao trabalho que se oferece!

E é vê-lo, num saracotear cativante, simpático, dirigir-se à levada, e, sem qualquer cerimónia, despir a camisa, dilatar o peito, retesar os músculos e lavar-se com afã e civilidade, consolado, feliz da sua perfeita saúde.


Campos de arroz de Salreu. Pintura de Luís Alberto (1976)

A mulher, um curioso tipo de aldeã, corpo roliço, peitos fecundos, faces coradas, sobrecenhos fartos, cabelos vastos, há muito que fizera acender na lareira / 61 / um luminho bom, que há-de preparar uma comida a preceito.

O nosso moleiro não toma café, nem leite, nem chá. Mas ceva o seu apetite em largas tigelas de sopas bem adubadas com boroa. – Nem as suas carnes se cria­vam doutra forma!

Entretanto, o sol foi subindo esplendoroso, vivificante! No céu anil correm vapores branquinhos, transparentes. Há perfumes subtis; hortelãs, madressilva, musgo, ervilhas mansas, lançam no ar estranhas essências, aromas doces, paradisía­cos.

A criançada revolta, mal coberta de roupa, jovial como passaritos, acla­ma ruidosamente a partida do pai, cuja presença tanto a contraria. E enquanto o moleiro vai à marinha e volta, no tempo que ele demora a distribuir as fornadas e receber o grão para outras, as crianças pulam e disparatam à vontade, e a mãe colhe as pastagens para o gado, vai à lenha, arranja a casa, lava a roupa.

Como tudo isto é pitoresco! Que melhores quadros, mais curiosos e be­los, pode copiar um artista?! Nem eu, que faleço de aptidão e méritos, deixarei de exprimir todo o meu enlevo a lugares tão aprazíveis e fecundos de emoção.

Dr. Joaquim Soares Rodrigues da Silva

 
Página anterior Página inicial Página seguinte