Memórias de um pescador – pp. 155-162.


X. Sapateiros a tocar rabecão

Por mais que me tenha esforçado ser simples, consequente e correntio no que vou dizendo, reconheço nada disto ter conseguido, antes pelo contrário, inconsequente no que vou memorizando, sem método nem razão. E isto a descrever aspectos de uma vida acidentada, rica e iniciada de aprendiz de pescador para, depois de o ser, acabar tal actividade passando a orientador e dirigente empresarial, de um grupo daqueles profissionais.

Confesso-me invejoso de quem com pouco ou quase nada vivido para recordar, é capaz de preencher laudas e resmas de papel, a darem para contos e romances publicar.

Mas enfim cada um só dá o que tem e pode.

Escrevo, primeiro sem qualquer pretensão de fazer literatura e segundo, apenas a deixar à posterioridade a experiência do que vi e observei em pleno oceano, durante a segunda metade do século XX, que ali vivi.

Aconteceu-me chegado a este ponto das memórias, ao recordar os convites que entretanto me foram formulando, por me julgarem um pescador especial, como já referi, prontos a pagar contos de reis, como nas feiras antigas se compravam os porcos à arroubar, enquanto outros por mais melífluos, ditos de educados, como fora o caso do Luís Ferreira de Carvalho, a confessar-me não estar autorizado a fazê-lo, por razões já aqui anteriormente expostas.

Este homem que era ao tempo administrador da SNAB e segundo se dizia, um dos braços de Henrique Tenreiro, de seu ar e tom de voz e palavras, a denunciar um certo pretensiosismo, procurava-me assiduamente, à hora do almoço no restaurante do Corpo Santo, para em especial, conversar. Isto era lhe facilitado por um amigo comum, dele por ser seu braço direito e meu, procurador de interesses imobiliários que ainda hoje mantenho em Almada.

O grande desejo de Ferreira de Carvalho, como gostava de ser tratado, nestes encontros, era saber o que a seguir irei contar, não obstante no desenrolar desses almoços, fosse dizendo a iludir-me, dar gosto ouvir-me por, em assuntos de pesca, eu ser catedrático. / 156 /

No decurso de meados da década de sessenta, Salazar decidira não conceder mais alvarás para navios da pesca de bacalhau, admitindo no entanto, novas construções baseadas nos alvarás já então concedidos, o que veio atingir e prejudicar sobre maneira, a EPA e a SNAB, empresas de grande capacidade económica devido à exploração dos arrastões.

Ora Egas Salgueiro, espírito obstinado e independente, só a fazer o que lhe dava na gana, não se conformando com tal determinação, desatou a magicar a sós com os seus botões, a maneira de contornar tal lei.

Obcecado e alheio, pela sua total ignorância das questões em que se estava a meter, e sem o menor senso que o levasse a desabafar com alguém que, a seu lado e a suas expensas, como era o meu caso, de pescador rotulado de bom e ao seu dispor, deu-lhe para, ruminando uma qualquer habilidade, talvez lida ou ouvida a algum diletante, em absoluto secretismo, requerer ao governo três alvarás para outros tantos navios polivalentes, destinados à pesca longínqua nas modalidades de arrasto a demersais e de cerco, aos tonídeos.

Curiosamente este homem, que no seu tempo era tido como um grande armador de navios da pesca longínqua, não tinha nem fazia a menor ideia e noção, do que era o oceano, os navios e pesca, o que não invalida, não tivesse sido um grande empresário no âmbito de Portugal.

Ora enquanto eu fechado e embebido nos meus afazeres, atendendo à exploração dos navios do bacalhau, suas necessidades e movimentos, a passar as manhãs nos escritórios centrais em Aveiro e de tarde, no meu gabinete nas instalações da Gafanha, afastado dos locais e meios onde se cochichavam quezílias e novidades, certo dia, Hernâni Salgueiro, na sua simplicidade e modéstia, embora filho do patrão e ele também administrador, em surdina a parecer receoso de ser ouvido, soprou-me o que o pai andava a intentar sigilosamente.

Peguei no telefone a solicitar ao nosso presidente, uma reunião para tratar de questões de interesse que logo, como sempre acontecia, a marcou para esse mesmo dia depois de encerrado o escritório.

À hora aprazada no seu gabinete em Aveiro, ele, o Hernâni e / 157 / eu, sem mais ninguém ali à vista, disparei-lhe a pergunta do que eu pensava e pretendia, com vistas ao futuro da EPA e qual o procedimento a seguir na sua evolução e progresso.

Ele, sentado à sua secretária na posição que lhe era característica e habitual quando a conversar, com os joelhos juntos e fincados na orla do tampo da mesa de trabalho, de ar calmo e sorriso aberto, a dar-me a impressão de imaginar ter descoberto a pólvora, ao mesmo tempo que relatava o despacho de Salazar, fora comentando as consequências para a Empresa de Pesca de Aveiro e o que já estava a fazer então, para contornar e contrariar a disparatada lei.

Entretanto sorridente, anunciou-me a sua inconcebível polivalência, que a ignorância não lhe admitia ser irrealizável.

Como todo o cuidado, fui-o elucidando da impossibilidade de, no mesmo protótipo de navio, conjugar os caracteres específicos ao arrasto e ao cerco. Enquanto o primeiro exige, linhas de casco que imerso no mar, ajudem a manter a força de tracção uniforme para arrastar, o segundo, contrariamente, requer pouca imersão para poder rápido rodopiar, a fazer cerco.

Além disto interiormente, enquanto as espécies de fundo, os demersais, de elevado valor comercial, são tratados e congelados, um a um manualmente, em porções reduzidas e em seco, contrariamente os tonídeos do cerco, por o seu valor ser relativamente baixo, o tratamento é feito em conjunto, arremessados para o porão onde depois de cheio, é atestado com salmoura arrefecida para o congelar, após o que, depois desta operação, a salmoura é retirada e o atum ali ficar armazenado, a secar.

Com estas explicações a conversa, notava-se ter ido azedando, de contestação em contestação da minha parte, e ele, mudo e quedo, só a parecer calmo. Quando a certa altura o Hernâni, que estando o pai presente, nunca dava qualquer opinião, resolveu só perguntar, dizendo: «E agora o que iremos fazer a todos os equipamentos e motores já comprados?»

A isto o Egas, pondo-se de pé enraivecido e de cabeça perdida, face à pergunta do filho, num «enchorrilho» de impropérios que a mim próprio também chocaram, embora só dirigidos ao Hernâni, que, se levantou a soluçar, retira-se para não mais aparecer. / 158 /

A sós, com ele empalidecido, cabisbaixo e mudo, decerto, espera que eu dissesse alguma coisa, não me fiz rogado a dizer. O que acabo de presenciar, se por um lado o considero a norma de um pai para um filho que já é pai também, na presença de um estranho, mais grave e intolerante é, saído da boca do presidente de conselho de administração dirigido a um seu par, presenciado por um subalterno de ambos!

E já agora, que o presidente desta empresa perdendo as estribeiras me deu azo a dizer-lhe duas verdades, permita-me que lhe diga: Primeiro, que a sua polivalência revela uma ignorância sem nome! E segunda é, já ter idade para ter juízo e não se meter em aventuras de rapaz!

Segundos depois, com ele calado e meio acabrunhado prossegui: Depois do que acabo de dizer, não me resta outra alternativa senão demitir-me e não esperar que o faça..., porém quase não me deixara terminar a frase, pois logo me respondeu: Isso não! Você continua no seu trabalho como até aqui e deixe os polivalentes comigo.

Ora isto mesmo assim acontecera, comigo totalmente afastado e sem nada querer saber do tal processo. Não obstante ter passado muitas noites de insónias, a pensar em e como iria acabar tamanha parvoíce, a custar tantas centenas de milhares de contos de reis, porém a nada comentar fosse com quem fosse, pois a vivência isolado no mar ensinara-me que, mesmo em solilóquio devemos os lábios cerrar.

Ao tempo que isto decorria e Egas Salgueiro descobrira o modo de trocar as voltas ao despacho ministerial, com a suposta polivalência, andava eu por Lisboa a apoiar o despacho dos navios bacalhoeiros a saírem para a pesca e dai, à hora do almoço, frequentar assiduamente o restaurante do Corpo Santo, aonde o meu amigo Abílio Ramos me procurava com frequência para me relatar o que se ia passando com as minhas casas e inquilinos em Almada, pelo que ele era responsável e meu procurador.

Ora este primoroso homem, sendo funcionário superior da Mútua dos Bacalhoeiros, era também ao mesmo tempo, confidente e braço direito de Luís Ferreira de Carvalho, administrador da SNAB, do que resultava este, quando lhe interessava, também ali aparecer e almoçar. / 159 /

Naquela altura, Ferreira de Carvalho ansioso em saber coisas da EPA, a sua presença era quase diária, com as conversas dirigi das aquele fim, embora comedidas pois ele era além de correcto, educado e prognóstico, incapaz de grosserias.

Nesta situação, fui-lhe dando uma no cravo e outra na ferradura, para não entrar em esclarecimentos, até pelo desentendimento havido comigo e o meu chefe, além de estar também à espera de ver, onde a polivalência da EPA iria parar.

Mas os homens como seres vivos que são, a cada hora variam e mudam os seus sentires, pensares e reacções.

Ora fora exactamente o que comigo acontecera, um dia, perante uma pergunta directa de Ferreira de Carvalho, esclareci-o da minha opinião sobre qualquer suposta polivalência, apenas admitindo-a num protótipo de arrasto, capaz de com redes de fundo pescar demersais de elevado preço comercial, e arrasto pelágico, aos peixes de superfície, de muito menos valor e usualmente só destinados à conserva enlatada. Além disto, a confundir quem superiormente viesse a apreciar a polivalência, ainda se poderia e devia considerar os vários tratamentos do pescado, respeitante aos demersais como o bacalhau, salgado ou congelado e ainda inteiro ou fraccionado em filetes, embalados em porções de vários tamanhos e pesos, o que já era corrente nos Fairtry ingleses, assim como nos alemães, a chamarem-se de navios fábricas.

Com base, no que Ferreira de Carvalho me ouvira sobre a polivalência, é que a SNAB requerera então dois alvarás para esta nova modalidade, cujos navios vieram seguir na carreira do estaleiro de Viana do Castelo, após o Santa Isabel da EPA, ali em construção, a substituir o Santa Isabel naufragado na Costa do Lavrador.

No mesmo estaleiro e antes deste arrastão da EPA, estava então e ainda na carreira, porém já em acabamentos um outro navio semelhante, dito João Álvares Fagundes para substituir um outro com este nome e do mesmo armamento, porém clássico que se afundara nos bancos da Terra Nova.

Entretanto, subitamente acontecera o Ferreira de Carvalho adoecer de mal grave e galopante, de que rápido falecera.

Fora então que a SNAB, em homenagem ao seu administrador, / 160 / trocou o nome ao Fagundes, ainda no estaleiro, e lhe dera o de Luís Ferreira de Carvalho, deixando a construção dos dois polivalentes, a seguir ao Santa Isabel, o primeiro dos quais recebera o nome de João Álvares Fagundes e o último de Elisabeth, nome que já em 1945 tinha sido dado a um navio motor de madeira e dóris, também da SNAB e naufragado, baptizado pela esposa de Henrique Tenreiro, de nome Elisabeth.

Mas voltando aos três polivalentes da EPA, os quais conforme combinado passei afastado a ignorá-los, especialmente ao projecto, nas mãos de dois medíocres indivíduos, um dos quais engenheiro dito de construção navais e militar, apenas bom homem, e o outro, um oficial maquinista de marinha mercante que, além de medíocre, era maldoso e mal formado.

Eu, não só afastado por mútuo acordo, como especialmente por meu receio de, à aproximação ao que estava a ser concebido e traçado, logo me manifestaria em total desacordo a tudo quanto estivesse projectado, na medida a que em minha opinião, não ser possível em uma mesma embarcação, destinada à exploração comercial, integrar dois sistemas tão diferentes e até opostos para operar, como são o arrasto e o cerco. Para além do que, alguém com o mínimo de conhecimentos e bom censo, dada a situação estar no começo, bastaria só separar os equipamentos inerentes a cada uma destas modalidades previstas, juntá-las num navio e trabalhá-las separadamente. Mas nenhum dos supostos projectistas tinha a menos noção do que são navios a manobrar no alto mar, nem tão pouco o que respeitava às modalidades de pesca que pretendiam juntar.

De desenho em desenho, ou melhor dito, de boneco em boneco desenhado que iam enviando ao estaleiro de Viana, aonde já havia um contacto firmado para a construção, logo era devolvido por incompreensivo e impróprio de concretizar, até que o suposto engenheiro se afastou, ou fora afastado, e Egas Salgueiro em momento de ponderação, fora a Concarneau, França, solicitar à CHEVANE MARCERON BALERY, empresa esta por intermédio da qual, tinha adquirido todos os equipamentos, ajuda para concretizar o projecto.

Curiosamente, fora ali que encontrou e conhecera o director técnico daquela organização, MADEC, um capitão de Marinha / 161 / Mercante e antigo capitão pescador do arrasto e também de cerco, que se prontificou a atender o solicitado, porém a informar e aconselhar, projectar-se apenas um protótipo para arrasto, já que os dois no mesmo casco e navio, serem de todo impossível conjugar, na medida em que, um ser a antítese do outro.

Fora então que mister Salgueiro, como me contara mais tarde, lhe solicitou que no protótipo de arrasto, integrasse o maior número possível de artefactos de cerco, já comprados.

A isto o Madec avisou-o que aquele tipo de navio com tais equipamentos ou sem eles, jamais capturaria um único atum. Porém com eles instalados, iria condicionar ad eternum, a sua exploração económica.

Tudo isto me fora narrado pelo próprio Madec em 1978, em Concarneau, em resposta à minha censura ao responsável, por aquele trabalho e projecto. Respondeu-me que como profissional, primeiro esclareci e avisei e só depois albardei o burro à vontade do dono. Ao que lhe contrapus, que embora sendo seu directo colaborador, me neguei a fazê-lo e me afastei.

Ora corria o ano de 1976, quando atendi um telefonema dos Estaleiros de Viana com um pedido bizarro, do meu jovem amigo engenheiro Carlos Pimpão a solicitar os meus bons ofícios para o ajudar à entrega e fazer sair daquele porto, o primeiro polivalente acabado, com o nome de Murtosa, por o representante da EPA ali, o tal maquinista que já referi, não o querer receber sem que lhe fosse paga a comissão em dinheiro, a que se considerava com direito.

No primeiro impulso, ainda pensei recusar, por razões e história passada, porém eram os interesses da EPA que, servi uma vida inteira, estavam em jogo, e reconsiderei.

Constituí um grupo comandado por um capitão da Marinha Mercante feito já pescador, que enviei a Carlos Pimpão, recebera o Murtosa, saindo de Viana e entrou em Aveiro.

Daqui, depois de equipado e municiado, fi-lo seguir para os mares da Namíbia a pescar merlúcios capensis, fazendo base em Cape Town.

Aos três navios, Murtosa, seguido pelo Pardelhas e Calvão, tendo sido imaginados para a pesca longínqua, mercê dos atropelos e disparates sofridos na sua construção e montagem, / 162 / ficara-lhes apenas porte e consumo diários, que os tornaram só exploráveis, na pesca costeira.

Dos quatro jovens capitães da Marinha Mercante que, como pescadores os comandaram, não posso deixar de os enaltecer e até louvar, por ter sido com eles que aprendi a explorá-los, num período de grandes perturbações sociais, não só em Portugal, como também em Cape Town, onde sozinhos quase tudo resolviam.

Por serem três navios, embora degenerados mas iguais, constituí quatro tripulações, para obviar às grandes paragens impostas pelo Contrato de Trabalho, onde anos antes pontifiquei, a que dera em paragens dos navios, incomportáveis economicamente.

Assim, quando um dos navios parava, para a respectiva tripulação regressar de avião a Portugal, cruzava-se no ar com outra, a ir para Cape Town a substituí-la, e o navio continuar a pescar.

Por mais de 12 anos, neste vai e vem, houve médias anuais entre 10.000 e 12.000 toneladas de pescada, chegadas Aveiro em transportes frigoríficos comerciais, ajudando a manter e dar continuidade à Empresa de Pesca de Aveiro, SA.

Até que em 1989 me afastei da direcção destes serviços na EPA, além da Namíbia, ao conquistar a sua independência, proibir a pesca nas suas águas adjacentes.

Ainda em 1990, fazendo parte de uma Comissão chefiada pelo Secretário de Estado das Pescas, viajamos a Pretória e a Windhock a tentar negociar a nossa continuação ali, como até então.

Porém como sempre, a nossa única missão era pedir, sem quaisquer contra partidas a dar ou trocar, acabando de lá regressarmos de mãos vazias e abatê-las uma na outra, à moda do que antigamente faziam os brasileiros.