Por mais que me tenha esforçado ser simples, consequente e correntio no
que vou dizendo, reconheço nada disto ter conseguido, antes pelo
contrário, inconsequente no que vou memorizando, sem método nem razão. E
isto a descrever aspectos de uma vida acidentada, rica e iniciada de
aprendiz de pescador para, depois de o ser, acabar tal actividade
passando a orientador e dirigente empresarial, de um grupo daqueles
profissionais.
Confesso-me invejoso de quem com pouco ou quase nada vivido para
recordar, é capaz de preencher laudas e resmas de
papel, a darem para contos e romances publicar.
Mas enfim cada um só dá o que tem e pode.
Escrevo, primeiro sem qualquer pretensão de fazer literatura
e segundo, apenas a deixar à posterioridade a experiência do que vi e
observei em pleno oceano, durante a segunda metade do século XX, que ali
vivi.
Aconteceu-me chegado a este ponto das memórias, ao recordar os convites
que entretanto me foram formulando, por me julgarem um pescador
especial, como já referi, prontos a pagar contos de reis, como nas
feiras antigas se compravam os porcos à arroubar, enquanto outros por
mais melífluos, ditos de educados, como fora o caso do Luís Ferreira de
Carvalho, a confessar-me não estar autorizado a fazê-lo, por razões já
aqui anteriormente expostas.
Este homem que era ao tempo administrador da SNAB e segundo se dizia, um
dos braços de Henrique Tenreiro, de seu ar e tom de voz e palavras, a
denunciar um certo pretensiosismo,
procurava-me assiduamente, à hora do almoço no restaurante do Corpo
Santo, para em especial, conversar. Isto era lhe facilitado por um amigo
comum, dele por ser seu braço direito e meu,
procurador de interesses imobiliários que ainda hoje mantenho em Almada.
O grande desejo de
Ferreira de Carvalho, como gostava de ser tratado,
nestes encontros, era saber o que a seguir irei contar, não obstante no
desenrolar desses almoços, fosse dizendo a iludir-me, dar gosto ouvir-me
por, em assuntos de pesca, eu ser catedrático.
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No decurso de meados da década de sessenta, Salazar decidira não
conceder mais alvarás para navios da pesca de bacalhau,
admitindo no entanto, novas construções baseadas nos alvarás já
então concedidos, o que veio atingir e prejudicar sobre maneira, a EPA
e a SNAB, empresas de grande capacidade económica devido à exploração
dos arrastões.
Ora Egas Salgueiro, espírito obstinado e independente, só a fazer o que
lhe dava na gana, não se conformando com tal determinação, desatou a
magicar a sós com os seus botões, a
maneira de contornar tal lei.
Obcecado e alheio, pela sua total ignorância das questões em que se
estava a meter, e sem o menor senso que o levasse a
desabafar com alguém que, a seu lado e a suas expensas, como
era o meu caso, de pescador rotulado de bom e ao seu dispor, deu-lhe
para, ruminando uma qualquer habilidade, talvez lida ou ouvida a algum
diletante, em absoluto secretismo, requerer ao governo três alvarás para
outros tantos navios polivalentes, destinados à pesca longínqua nas
modalidades de arrasto a demersais e de cerco, aos tonídeos.
Curiosamente este homem, que no seu tempo era tido como um grande
armador de navios da pesca longínqua, não tinha nem fazia a menor ideia
e noção, do que era o oceano, os navios e
pesca, o que não invalida, não tivesse sido um grande empresário no
âmbito de Portugal.
Ora enquanto eu fechado e embebido nos meus afazeres, atendendo à
exploração dos navios do bacalhau, suas necessidades e movimentos, a
passar as manhãs nos escritórios centrais em
Aveiro e de tarde, no meu gabinete nas instalações da Gafanha, afastado
dos locais e meios onde se cochichavam quezílias e
novidades, certo dia, Hernâni Salgueiro, na sua simplicidade e modéstia,
embora filho do patrão e ele também administrador, em surdina a parecer
receoso de ser ouvido, soprou-me o que o pai andava a intentar
sigilosamente.
Peguei no telefone a solicitar ao nosso presidente, uma reunião para
tratar de questões de interesse que logo, como sempre acontecia, a
marcou para esse mesmo dia depois de encerrado o escritório.
À hora aprazada no seu gabinete em Aveiro, ele, o Hernâni e
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eu, sem mais ninguém ali à vista, disparei-lhe a pergunta do que eu
pensava e pretendia, com vistas ao futuro da EPA e qual o procedimento
a seguir na sua evolução e progresso.
Ele, sentado à sua secretária na posição que lhe era característica e
habitual quando a conversar, com os joelhos juntos e fincados na orla do
tampo da mesa de trabalho, de ar calmo e sorriso aberto, a dar-me a
impressão de imaginar ter descoberto a pólvora, ao mesmo tempo que
relatava o despacho de Salazar, fora comentando as consequências para a
Empresa de Pesca de Aveiro e o que já estava a fazer então, para
contornar e contrariar a disparatada lei.
Entretanto sorridente, anunciou-me a sua inconcebível polivalência, que
a ignorância não lhe admitia ser irrealizável.
Como todo o cuidado, fui-o elucidando da impossibilidade de, no mesmo
protótipo de navio, conjugar os caracteres específicos ao arrasto e ao
cerco. Enquanto o primeiro exige, linhas de casco
que imerso no mar, ajudem a manter a força de tracção uniforme
para arrastar, o segundo, contrariamente, requer pouca imersão para
poder rápido rodopiar, a fazer cerco.
Além disto interiormente, enquanto as espécies de fundo, os demersais,
de elevado valor comercial, são tratados e congelados, um a um
manualmente, em porções reduzidas e em seco, contrariamente os tonídeos
do cerco, por o seu valor ser relativamente baixo, o tratamento é feito
em conjunto, arremessados para o porão onde depois de cheio, é atestado
com salmoura arrefecida para o congelar, após o que, depois desta
operação, a salmoura é retirada e o atum ali ficar armazenado,
a secar.
Com estas explicações a conversa, notava-se ter ido azedando, de
contestação em contestação da minha parte, e ele, mudo e quedo, só a
parecer calmo. Quando a certa altura o Hernâni, que estando o pai
presente, nunca dava qualquer opinião, resolveu só perguntar, dizendo:
«E agora o que iremos fazer a todos os equipamentos e motores já
comprados?»
A isto o Egas, pondo-se de pé enraivecido e de cabeça perdida, face à
pergunta do filho, num «enchorrilho» de impropérios que a
mim próprio também chocaram, embora só dirigidos ao Hernâni, que, se
levantou a soluçar, retira-se para não mais aparecer.
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A sós, com ele empalidecido, cabisbaixo e mudo, decerto, espera que eu
dissesse alguma coisa, não me fiz rogado a dizer.
O que acabo de presenciar, se por um lado o considero a norma
de um pai para um filho que já é pai também, na presença de um estranho,
mais grave e intolerante é, saído da boca do presidente
de conselho de administração dirigido a um seu par, presenciado
por um subalterno de ambos!
E já agora, que o presidente desta empresa perdendo as
estribeiras me deu azo a dizer-lhe duas verdades, permita-me que
lhe diga: Primeiro, que a sua polivalência revela uma ignorância
sem nome! E segunda é, já ter idade para ter juízo e não se meter em
aventuras de rapaz!
Segundos depois, com ele calado e meio acabrunhado
prossegui: Depois do que acabo de dizer, não me resta outra
alternativa senão demitir-me e não esperar que o faça..., porém
quase não me deixara terminar a frase, pois logo me respondeu:
Isso não! Você continua no seu trabalho como até aqui e deixe os
polivalentes comigo.
Ora isto mesmo assim acontecera, comigo totalmente afastado
e sem nada querer saber do tal processo. Não obstante ter passado
muitas noites de insónias, a pensar em e como iria acabar
tamanha parvoíce, a custar tantas centenas de milhares de contos
de reis, porém a nada comentar fosse com quem fosse, pois a
vivência isolado no mar ensinara-me que, mesmo em solilóquio
devemos os lábios cerrar.
Ao tempo que isto decorria e Egas Salgueiro descobrira o
modo de trocar as voltas ao despacho ministerial, com a suposta
polivalência, andava eu por Lisboa a apoiar o despacho dos
navios bacalhoeiros a saírem para a pesca e dai, à hora do almoço,
frequentar assiduamente o restaurante do Corpo Santo, aonde o
meu amigo Abílio Ramos me procurava com frequência para me
relatar o que se ia passando com as minhas casas e inquilinos em
Almada, pelo que ele era responsável e meu procurador.
Ora este primoroso homem, sendo funcionário superior da
Mútua dos Bacalhoeiros, era também ao mesmo tempo, confidente
e braço direito de
Luís Ferreira de Carvalho, administrador da
SNAB, do que resultava este, quando lhe interessava, também
ali aparecer e almoçar.
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Naquela altura,
Ferreira de Carvalho
ansioso em saber coisas da EPA, a
sua presença era quase diária, com as conversas dirigi das aquele fim,
embora comedidas pois ele era além de correcto, educado e prognóstico,
incapaz de grosserias.
Nesta situação, fui-lhe dando uma no cravo e outra na ferradura, para
não entrar em esclarecimentos, até pelo desentendimento havido comigo e
o meu chefe, além de estar também à espera de ver, onde a polivalência da
EPA iria parar.
Mas os homens como seres vivos que são, a cada hora variam e mudam os
seus sentires, pensares e reacções.
Ora fora exactamente o que comigo acontecera, um dia, perante uma
pergunta directa de Ferreira de Carvalho, esclareci-o da minha opinião
sobre qualquer suposta polivalência, apenas admitindo-a num protótipo de
arrasto, capaz de com redes de fundo pescar demersais de elevado preço
comercial, e arrasto pelágico, aos peixes de superfície, de muito menos
valor e usualmente só destinados à conserva enlatada. Além disto, a
confundir quem superiormente viesse a apreciar a polivalência, ainda se
poderia e devia considerar os vários tratamentos do pescado, respeitante
aos demersais como o bacalhau, salgado ou congelado e ainda inteiro ou
fraccionado em filetes, embalados em porções de vários tamanhos e pesos,
o que já era corrente nos Fairtry ingleses, assim como nos alemães, a
chamarem-se de
navios fábricas.
Com base, no que Ferreira de Carvalho me ouvira sobre a polivalência, é
que a SNAB requerera então dois alvarás para esta nova modalidade, cujos
navios vieram seguir na carreira do
estaleiro de Viana do Castelo, após o Santa Isabel da EPA, ali em
construção, a substituir o Santa Isabel naufragado na Costa do Lavrador.
No mesmo estaleiro e antes deste arrastão da EPA, estava então e ainda
na carreira, porém já em acabamentos um outro navio semelhante, dito
João Álvares Fagundes
para substituir um outro com este nome e do mesmo
armamento, porém clássico que se afundara nos bancos da Terra Nova.
Entretanto, subitamente acontecera o Ferreira de Carvalho
adoecer de mal grave e galopante, de que rápido falecera.
Fora então que a SNAB, em homenagem ao seu administrador,
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trocou o nome ao Fagundes, ainda no estaleiro, e lhe dera o de Luís
Ferreira de Carvalho, deixando a construção dos dois polivalentes, a
seguir ao Santa Isabel, o primeiro dos quais recebera o nome de João
Álvares Fagundes e o último de Elisabeth, nome que já em 1945 tinha sido
dado a um navio motor de madeira e dóris, também da SNAB e naufragado,
baptizado pela esposa de Henrique Tenreiro, de nome Elisabeth.
Mas voltando aos três polivalentes da EPA, os quais conforme combinado
passei afastado a ignorá-los, especialmente ao projecto, nas mãos de
dois medíocres indivíduos, um dos quais engenheiro dito de construção
navais e militar, apenas bom homem, e o outro, um oficial maquinista de
marinha mercante que, além de medíocre, era maldoso e mal formado.
Eu, não só afastado por mútuo acordo, como especialmente por meu receio
de, à aproximação ao que estava a ser concebido e traçado, logo me
manifestaria em total desacordo a tudo quanto estivesse projectado, na
medida a que em minha opinião, não ser possível em uma mesma embarcação,
destinada à exploração comercial, integrar dois sistemas tão diferentes
e até opostos para operar, como são o arrasto e o cerco. Para além do
que, alguém com o mínimo de conhecimentos e bom censo, dada a situação
estar no começo, bastaria só separar os equipamentos inerentes a cada
uma destas modalidades previstas, juntá-las num navio e trabalhá-las
separadamente. Mas nenhum dos supostos
projectistas tinha a menos noção do que são navios a manobrar no alto
mar, nem tão pouco o que respeitava às modalidades de pesca que
pretendiam juntar.
De desenho em desenho, ou melhor dito, de boneco em boneco desenhado que
iam enviando ao estaleiro de Viana, aonde já havia um contacto firmado
para a construção, logo era devolvido por incompreensivo e impróprio de
concretizar, até que o suposto
engenheiro se afastou, ou fora afastado, e Egas Salgueiro em
momento de ponderação, fora a Concarneau, França, solicitar à CHEVANE
MARCERON BALERY, empresa esta por intermédio da qual, tinha adquirido
todos os equipamentos, ajuda para concretizar o projecto.
Curiosamente, fora ali que encontrou e conhecera o director técnico
daquela organização, MADEC, um capitão de Marinha
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Mercante e antigo capitão pescador do arrasto e também de
cerco, que se prontificou a atender o solicitado, porém a informar e
aconselhar, projectar-se apenas um protótipo para arrasto, já que os
dois no mesmo casco e navio, serem de todo impossível conjugar, na
medida em que, um ser a antítese do outro.
Fora então que mister Salgueiro, como me contara mais tarde, lhe
solicitou que no protótipo de arrasto, integrasse o maior número
possível de artefactos de cerco, já comprados.
A isto o Madec avisou-o que aquele tipo de navio com tais equipamentos
ou sem eles, jamais capturaria um único atum. Porém com eles instalados,
iria condicionar ad eternum, a sua exploração económica.
Tudo isto me fora narrado pelo próprio Madec em 1978, em
Concarneau, em resposta à minha censura ao responsável, por aquele
trabalho e projecto. Respondeu-me que como profissional, primeiro
esclareci e avisei e só depois albardei o burro à vontade do dono. Ao
que lhe contrapus, que embora sendo seu directo colaborador, me neguei a
fazê-lo e me afastei.
Ora corria o ano de 1976, quando atendi um telefonema
dos Estaleiros de
Viana com um pedido bizarro, do meu jovem amigo engenheiro
Carlos Pimpão
a solicitar os meus bons ofícios para o ajudar à entrega e fazer sair
daquele porto, o primeiro polivalente
acabado, com o nome de Murtosa, por o representante da EPA ali, o tal
maquinista que já referi, não o querer receber sem que lhe fosse paga a
comissão em dinheiro, a que se considerava com direito.
No primeiro impulso, ainda pensei recusar, por razões e história
passada, porém eram os interesses da EPA que, servi uma vida inteira,
estavam em jogo, e reconsiderei.
Constituí um grupo comandado por um capitão da Marinha Mercante feito já
pescador, que enviei a Carlos Pimpão, recebera o Murtosa, saindo de
Viana e entrou em Aveiro.
Daqui, depois de equipado e municiado, fi-lo seguir para os mares da
Namíbia a pescar merlúcios capensis, fazendo base em Cape Town.
Aos três navios, Murtosa, seguido pelo Pardelhas e Calvão, tendo sido
imaginados para a pesca longínqua, mercê dos atropelos e disparates
sofridos na sua construção e montagem, / 162 /
ficara-lhes apenas porte e consumo diários, que os tornaram só
exploráveis, na pesca costeira.
Dos quatro jovens capitães da Marinha Mercante que, como pescadores os
comandaram, não posso deixar de os enaltecer e até louvar, por ter sido
com eles que aprendi a explorá-los, num período de grandes perturbações
sociais, não só em Portugal, como também em Cape Town, onde sozinhos
quase tudo resolviam.
Por serem três navios, embora degenerados mas iguais, constituí
quatro tripulações, para obviar às grandes paragens impostas pelo
Contrato de Trabalho, onde anos antes pontifiquei, a que dera em
paragens dos navios, incomportáveis economicamente.
Assim, quando um dos navios parava, para a respectiva tripulação
regressar de avião a Portugal, cruzava-se no ar com outra, a ir para
Cape Town a substituí-la, e o navio continuar a pescar.
Por mais de 12 anos, neste vai e vem, houve médias anuais entre 10.000 e
12.000 toneladas de pescada, chegadas Aveiro em transportes frigoríficos
comerciais, ajudando a manter e dar continuidade à Empresa de Pesca de
Aveiro, SA.
Até que em 1989 me afastei da direcção destes serviços na EPA, além da
Namíbia, ao conquistar a sua independência, proibir a pesca nas suas
águas adjacentes.
Ainda em 1990, fazendo parte de uma Comissão chefiada pelo Secretário de
Estado das Pescas, viajamos a Pretória e a Windhock a tentar negociar a
nossa continuação ali, como até então.
Porém como sempre, a nossa única missão era pedir, sem quaisquer contra
partidas a dar ou trocar, acabando de lá regressarmos de mãos vazias e
abatê-las uma na outra, à moda do que antigamente faziam os brasileiros.
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