Mas voltemos ao ano de 1970, quando eu já era director do
armamento da EPA.
Certo dia recebo, telefonicamente, do
Ramos de Sousa,
informação de ter sido abordado pela direcção do Grémio dos Armadores, a
saber se o Sindicato estaria disposto a com eles entrar em estudo e
combinação, de um contrato de trabalho para a pesca do bacalhau.
Respondi-lhe que iria estudar o assunto e depois daria uma resposta.
Ora eu deixara de ser aquele pescador independente a não dar satisfações
a ninguém, para passar a ser um trabalhador administrativo por conta
doutrem e obrigado a explicações. Por isto, avistei-me com Egas
Salgueiro, a quem pus o problema da minha posição de sindicalista e nova
situação. E, curiosamente, ele, que usualmente era lacónico a medir os
pensamentos e as palavras, naquela hora fora franco e extrovertido, a
contar-me os armamentos estarem interessados em ligar as tripulações ao
preço do bacalhau, a tentar do primeiro-ministro,
Marcelo Caetano, maior
abertura e autorização ao aumento do valor, de venda ao público.
A primeira coisa que de pronto me ocorreu, fora o
José Rocha, que ao
tempo se encontrava a pescar, e o seu dito premonitório de «só tu João
São Marcos algum dia acabarás com aquelas estúpidas e longas viagens que
tanto me fazem sofrer!»
De imediato, telefonei ao Sindicato em Lisboa, a dizer-lhe estar pronto
a com ele ir a pé ao fim do mundo, como habitualmente me dizia
Ramos de
Sousa.
E fora assim que assentei arraiais no palácio do bacalhau da Praça
Duque da Terceira, onde as comissões, Grémio e Sindicato, passaram a
trabalhar.
Segundo uns quantos pensavam de mim, eu seria o supra sumo das coisas e
problemas da pesca do bacalhau, nanja eu que bem conhecia as minhas
limitações, a levarem-me a ter cuidados redobrados e fugir a atitudes de
Chico esperto, e ficar de pé atrás.
Na primeira reunião, compareceram o
António Duarte Silva, um advogado
muito conhecido nos meios políticos do bacalhau,
/ 142 /
ligado a Henrique Tenreiro e representante do sector na Câmara
Corporativa, além de armador in nomine, e da direcção do Grémio.
De presença sorridente e simpática, era tido de velhaco pelos capitães,
pois sempre os julgara e nomeava responsáveis por tudo quanto ele
considerava de mal para o conjunto da pesca do bacalhau e sua
comercialização, isto é, em relação a tamanhos, porque eram pequenos e a
qualidade, porque trazia muita humidade e falta de sal, ou, contrariamente,
porque vinha muito seco e sal a mais. Enfim, os capitães eram em sua
opinião autênticos bodes expiatórios das suas antipatias.
Ora o Duarte Silva apresentou-nos o Ramos de Sousa e a mim, aos
representantes do Grémio,
Dr. Sena e Silva, professor de economia e
armador da Empresa Bacalhau de Portugal e o seu
colaborador, Dr. Alberto Pontes, funcionário superior do Grémio
e responsável pela sua contabilidade, pessoas que eu já conhecia, mas
superficialmente.
O Sena e Silva era um homem sóbrio e pouco expansivo; e o Alberto
Pontes, contrariamente, expansivo, inteligente e extrovertido.
E ali ficámos em reuniões semanais durante meses, sem da minha parte
levantar quaisquer problemas ou discordâncias, uma espécie de yes man, a
dizer sim a tudo ainda que escalpelizando uma a uma, todas as práticas e
teorias ali utilizadas.
Eu notava haver uma certa estranheza, de modo geral, pela minha
aquiescência a tudo quanto se ia estudando e dado por aceite, e até o
Ramos de Sousa, um pouco estranho e admirado
pela falta de combatividade e polémica do mestre, como ele me chamava,
sobre as coisas da pesca, seus custos e ganhos.
Até que um dia os representantes do Grémio, ou melhor dito, o Sena da
Silva ao abordar a duração de cada viagem dos arrastões, pois era desta
modalidade de pesca que quase sempre e só tratávamos, na medida em que
as condições nos navios de pesca com dóris estavam mais do que tratadas,
sugeriu o tempo de oito meses.
Quase não o deixei completar tal proposta, pois logo contrapus 150 dias
de viagem e o meu pedido para, da parte representante dos armadores,
justificar as razões dos oito meses propostos por eles.
/ 143 /
Como engolindo em seco, por falta de verdadeira noção e argumentos
justificativos dos oito meses propostos, explicaram, no entanto, que a
média das últimas viagens tinha dado nove meses, porém face a esta média
tiraram-lhe trinta dias, uma espécie de bónus, em razão do apresentado.
Mais uma vez expliquei não estarmos ali, pelo menos eu, a tirar ou dar
nada a ninguém mas, apenas a estudar as causas da baixa produtividade do
sector, a procurar criar-lhe incentivos, em benefício de todos,
proprietários e tripulantes isto é, da Nação.
Eu sabia bem onde e com quem estava metido e que o Grémio, ou melhor dito,
o Duarte Silva era homem para habilidades e ardis a solucionar o
problema em favor da sua dama. Bastaria convencer o Ramos de Sousa, nas
minhas costas, a assinar em representação do Sindicato Nacional, para
sanar a situação.
Entretanto, por mim, se estivesse para aí virado, poderíamos também
resolver o diferendo, cedendo no tempo limite da duração da viagem, em
troca de benefícios monetários para os capitães pescadores, que no
arrasto, por ser o único pescador e
influente na produtividade e responsabilidade do resultado da pesca, o
que teria levado os franceses a atribuir-lhes salários, atingir cinco
por cento do valor global da carga.
Porém, por ao tempo em Portugal não existir esse elevado tipo de
remunerações, quer nos sectores comerciais e industrial, quer nos
administrativos, considerei que no meio piscatório, a concretizar-se,
iria levantar enormes celeumas, além de, por outro lado, os capitães dos
arrastões, mercê das longas e insuportáveis viagens, terem deixado de
ser os únicos pescadores a bordo, por subdividirem o trabalho e
responsabilidades da pesca com os seus oficiais imediatos.
Por tudo isto e mais a intenção de criar condições de trabalho e
operacionalidade aos pescadores, à imitação dos franceses, fixei-me a
bater nos 150 dias de viagem e daqui não me afastei, na esperança de
futuramente novos pescadores virem a beneficiar.
Com esta ideia e exigência andámos meses, sindicalistas e armadores a
teimar, porém com estes, lentamente a descer, até se fixarem
irredutíveis nos 180 dias de viagem.
O aviso de irredutível excitou-me os brios, não para me posicionar em
igual irredutibilidade, mas a buscar a solução
/ 144 /
para a nossa teimosia; e foi então que redigi e propus: «o tempo de
duração da viagem para os arrastões fica condicionado em
150 dias, de barra a barra, podendo no entanto ser dilatado por mais
trinta dias, se consultada a tripulação esta não se opuser ao
prolongamento.»
Marcada nova reunião das partes contratantes, tudo fora definido e
aceite, chegando ao final do Contrato Colectivo, e também decidido, o dia
para as respectivas assinaturas.
No dia e hora aprazados para o desfecho, comparecemos
da nossa parte, o presidente do Sindicato Nacional, o delegado Ramos de
Sousa e eu, presidente da Distrital de Aveiro, e da parte do Grémio,
Duarte Silva, Sena de Silva e Alberto Pontes. Depois dos cumprimentos da
praxe, Duarte da Silva informara que o Senhor Almirante gostaria de
estar presente no enceramento dos trabalhos e assinaturas deste primeiro
Contrato Colectivo de Trabalho para a Pesca do Bacalhau, ao que eu, que
jamais quis ser ou considerei parecer, mais do que um modestíssimo,
porém brioso e determinado pescador, capaz de ombrear fosse o que fosse ou com
quem for, levantei a voz para lhe pedir que, em meu nome pessoal,
informasse o Senhor Almirante que eu, João São Marcos, para evitar que
amanhã apareça alguém a insinuar eu ter anuído a este Acordo, coagido
pela presença do Senhor Almirante Tenreiro, gostaria mais que ele não
estivesse presente aqui, às assinaturas.
E ele não desceu do segundo andar onde era o seu gabinete de trabalho,
ao primeiro onde estávamos reunidos.
Devo esclarecer que, ao dito do Duarte Silva, reagi automaticamente, sem
qualquer intenção revanchista relativa à homenagem de Ílhavo, em que eu
tinha sido testa de ferro, e não só, da comissão das festas. Só depois de
feito o pedido a solicitar ao almirante a não descer, é que me lembrei
da coincidência dos dois casos.
Nada disto porém me alterou a disposição. No entanto, devo esclarecer,
francamente, que se isto me tivesse ocorrido, seria possível que não o
fizesse. Não por ter medo, mas por Henrique Tenreiro me merecer respeito.
E curiosamente foi, que se por ele, dada a sua afabilidade comigo, já
tinha simpatia, o facto de ele não ter descido do segundo andar ao
primeiro, a olhar-me
/ 145 /
com sobranceria, o que qualquer outro na sua situação quase de certeza
faria, mais cresceu Henrique Tenreiro pessoalmente no meu respeito e
consideração.
E fora assim que, em função deste contrato, aquelas longas e
massacrantes viagens com a média de 270 dias e que em alguns navios como
o Estêvão Gomes do comando do
Mário Redondo, e do David Melgueiro,
capitaneado pelo Manuel Viana, chegaram a atingir 330 e 345 dias,
respectivamente, desde as suas largadas de Lisboa até ao seu regresso,
criminosamente sobrecarregados, pondo em risco navios e obviamente as
suas tripulações.
Contudo e não obstante toda esta luta e anseios para a conquista da
limitação do tempo de viagem, concretizada em 1970, não houve um só
navio, a partir de então, que esgotados os 150 dias de viagem, não tenha
o respectivo capitão solicitado à sua tripulação, para continuar a pesca
mais os trinta dias complementares, a completar os seis meses de viagem.
Diga-se de passagem que não só eu, ao conceber a cláusula da limitação
do tempo de viagem, como o Grémio ao aceitá-lo, já contávamos
implicitamente com a aquiescência das tripulações e seus comandos, aos
seis meses.
Os movimentos contestatários da revolução dos cravos, especialmente a
partir de 1975, ainda vinham longe e as tripulações continuavam submissas a
tudo quanto lhes solicitassem.
Só depois desta data, a vida social se modificou. Os que viviam na
abundância cheios de supérfluos, a darem nas vistas, em manifesta e pura
coqueteria, esconderam os casacos de peles e adereços, com medo dos
excessos e vaias da populaça politizada, como os homens, a tirarem a
gravata e a maior parte deles a deixar crescer as barbas e os cabelos, a
querem parecer miseráveis ou intelectuais, ao mundo que os olhava sem
interesse.
Os pequenos agricultores, que até ai amanhavam as suas territas, mais
uma ou outra de aluguer, com ajuda das filhas, já que os filhos, a
partir dos dezassete anos e com muitos pedidos, embarcavam à pesca do
bacalhau onde, não só forravam uns tostõezitos, como especialmente, ao
fim de sete safras seguidas, livrariam do serviço militar, começaram por
vender as leiras das testeiras nas estradas, onde os emigrantes
construíram as suas moradias.
/ 146 /
Chegado até aqui, neste relembrar do meu passado, fico suspenso a pensar
se valerá a pena continuar a falar do gadus morua, sua vivência,
minhas perseguições por todos os cantos onde o imenso Atlântico se
confunde com o Glacial Árctico, numa luta de dois gigantes oceânicos, em
que cada um deles tenta opor-se ao avanço e invasão do outro, observados
por alguém que sobrevivia, na dura mas estimulante lide da pesca do
bacalhau.
Entretanto, a pensar que algum dia aparecerá quem queira fazer a sua
história, não apenas da pesca com alguns dos seus simplísticos
episódios, habitualmente narrados, mas também do próprio bacalhau, suas
mutações e viver, terá de se apoiar, presumo, além do mais mas também,
nos que dela algo contaram.
Além disto, que já não seria nada pouco, mas por ter em mente a relativa
proximidade da extinção do bacalhau, devido às alterações climáticas da
Terra, só agora observadas e entendidas pelos geofísicos, embora há
muito, talvez há mais dum século, terem sido sentidas pelo próprio
bacalhau, ainda mais me entusiasmou continuar contando quanto dele
ouvi, vi e observei.
Os primeiros pescadores americanos feitos por os ali emigrados, desde há
séculos, que pescavam bacalhau em todo o banco Georg incluindo o Golfo
do Maine, tiveram, a partir dos finais do século XIX, para o continuarem
a pescar, dali se afastar mais para o nordeste, por aquele banco ter
sido infestado por um outro tipo de peixe rosado, uma espécie de
cantarilho da família dos scorpaenidaes, a que chamaram red fish.
A primeira coisa que imaginaram, por ser óbvia ao comum dos homens
daquele tempo, quanto mais aos ignaros pescadores, fora aquela fuga
ter-se dado por medo do bacalhau em função do vermelho do cantarilho. O
mesmo me acontecera em 1945, quando me iniciei a pescar na Terra Nova
com redes de arrasto, onde aqui passei a notar fenómenos semelhantes,
não obstante
muito longe do Georg bank, o que me dera motivo a pensar e repensar,
quer no que via como também no que tinha ouvido contar.
Assim deixando o tempo correr, e eu experiência a acumular,
/ 147 /
fui andando até que um dia, depois de tanto cismar e conhecimentos
somar, cheguei à simples conclusão de que o medo, que eu e milhares de
outros antes de mim, julgávamos o bacalhau ter do red físh, não passava
da diferença de ecossistemas, em que cada um deles privilegiava
sobreviver.
Desde então concluí que essa diferenciação se baseava especialmente na
temperatura, pois cada vez mais o bacalhau e o red físh apareciam juntos
nos mesmos locais, embora a substituir-se este por aquele, lenta e
progressivamente.
Fora então que passei a dar grande importância e a comparar, de ano para
ano, a localização e comportamento das massas de gelos flutuantes
primaveris e seus movimentos, e constatando também, de ano para ano, que
os cardumes do gadus morua seguiam mais ou menos a direcção e sentido
desses gelos.
Estas massas geladas, que todos nós portugueses, espanhóis e italianos,
passamos a designar por banquise, à imitação dos franceses, em vez de
continuarem compactas, integrando icebergues como anteriormente, a correr
ao longo da beirada de leste dos bancos até chegarem ao extremo sueste a
42º 30' N de latitude e 48º 30 W de longitude, como acontecera em Abril
de 1912, onde por colisão, afundaram o celebérrimo Titanic, passaram
agora a ser por mim observadas, 1947 depois de um Inverno moderado, a
amontoarem-se contra a costa nordeste da Ilha da Terra Nova, a fechar o
acesso da navegação às Bonavista, Trinidade e Conception Bays, além do
porto de St. John's por algumas
semanas encerrado.
Todas estas modificações dos gelos, como a ocupação dos
antigos pesqueiros de bacalhau, substituído por red físh, criou-me a
convicção de que as massas glaciares do Árctico diminuíam não apenas
sensível como assustadoramente, e os gadídeos, cujo ecossistema se
confina à confluência das duas águas frias e quentes, a recuarem a
noroeste, com elas.
Além disso, por a natureza não se modificar instantaneamente, isto é, de
um momento para o outro, o bacalhau só em parte se deslocara para norte
a seguir o seu ecossistema em profundidades inferiores a 400-500 metros,
pois a outra parte dos cardumes, constituída por espécimes adultos e de
maior tamanho e robustez, passara a esgueirar-se pelas funduras abissais
para o
/ 148 /
sueste, até ao Fleming Cap, em cujo banco, por alguns anos, os navios
continuaram a fazer razoáveis pescarias.
Em 1950 acontecera-me, por grave avaria no sistema propulsor do navio
Santa Joana, há anos no meu comando, sair para a primeira viagem desse
ano, tardiamente, só em princípios de Junho.
Ora acontecera nesse ano também os arrastões, de modo geral, chegado o
mês de Junho e devido às fracas pescas, não terem a bordo as quantidades
de bacalhau habituais, para virem a Portugal descarregar, fazendo assim
duas viagens no ano.
Nesta situação, a administração da SNAB, sabendo da minha próxima partida
para os bancos do noroeste Atlântico, decidira solicitar-me que levasse
para os seus navios em pesca algumas encomendas, que eu pensara ser
como era habitual, de meia ou uma tonelada de peso, quando afinal era
por a SNAB ter decidido unilateralmente, sem qualquer consulta às
tripulações, manter
os navios em pesca até encherem os porões completamente de bacalhau, do
que resultara as encomendas serem de 200 toneladas de materiais de redes
que dessem para aqueles navios pescar durante o resto do tempo, que
iriam permanecer nos bancos.
E fora assim, com a minha aquiescência que, involuntariamente, me tornei
conivente com a feitura das primeiras viagens únicas, anuais.
Chegado à Gronelândia e distribuídas as 200 toneladas de carga pelo oito
ou nove navios da SNAB, iniciei a pesca no Store banco, na sua beirada
do noroeste, com medíocre rendimento, o
que me fez procurar coisa melhor, indo para a mesma latitude no extremo
norte do banco, mas junto à terra, resguardando as três milhas então
impostas de águas territoriais.
A correr ao longo daquele canal, vinte milhas mais a norte e outras
tantas pelo sul abaixo, por ali me fui aguentando até que, cerca de 20
de Agosto, tinha a bordo 18.200 quintais de bacalhau, graúdo e especial,
obviamente de grande valor comercial.
Entretanto, quando já pensava, não só no regresso como especialmente no
final da minha tensa situação a pescar, acontecera receber um telegrama
da gerência da EPA informando-me duma estranha ocorrência no navio
Santa Mafalda que, tendo chegado Aveiro a descarregar o pescado da sua
primeira viagem desse
/ 149 /
ano e saído para Lisboa, o seu capitão, que era também meu sogro,
adoecera incapacitado de seguir ao mar, para a segunda viagem do ano.
Fora então que a gerência da EPA decidira fazer sair o Santa Mafalda,
sob o comando de um capitão não pescador, certa de, à sua chegada à
Groenlândia, onde eu me encontrava quase a terminar o carregamento, se me
telegrafasse a relatar o acontecido e pedir para eu assumir o comando do
Santa Mafalda, entregando o Santa Joana ao capitão não pescador para o
levar para Aveiro já carregado, eu não diria que não.
Eu tinha vinte e nove anos de idade e cinco viagens no
comando, além da verdadeira noção dos meus deveres e direitos, incapaz
de aceitar desmandos, dum qualquer empresário que, só o era por uma
questão do valor da sua quota no capital social da empresa, porém sem
qualquer noção da actividade
donde provinham os rendimentos, gordos ou magros. Na volta
do telégrafo, logo respondi sem gaguejar o seguinte: «Vossa solicitação
inviável no que se refere à minha transferência stop. Porém poderei aqui
encontrar um capitão pescador para vosso Santa Mafalda, cumprimentos.»
Na resposta, a gerência agradecia e aceitava a minha intervenção na
solução do seu problema.
Assim, falei com o imediato do navio da SNAB,
Pedro de Barcelos, rapaz
que eu bem conhecia, vivo e esperto, que logo se prontificou aceitar a
incumbência de assumir a posição de
pescador do Santa Mafalda, desde que eu conseguisse anuência
do capitão do Pedro de Barcelos, João Britaldo e do armador
SNAB, o que fora coisa simples, até porque ao tempo, em serviço na ponte
deste tipo de navios, havia além do capitão pescador, o imediato, o
segundo piloto e um praticante com curso de pilotagem.
Dias depois cheguei Aveiro a passar férias, nos meses de
Setembro e Outubro.
Quando o décimo mês ia quase no fim, Egas Salgueiro mandou-me chamar a
perguntar se eu estaria disposto a voar para a Terra Nova, a assumir o
comando do Santa Mafalda, dado este navio, nos dois meses de pesca, ter a
bordo apenas 1.500 quintais de bacalhau.
Lembrei-lhe a pesca ao tempo não decorrer mal apenas ao
/ 150 /
Santa Mafalda, mas a todos os navios nos bancos, só que todos os outros
tinham largos meses nos pesqueiros. Além disto inquiri-lhe, se
solicitava a minha ida, julgando-me o salvador da viagem,
uma espécie de São Pedro no mar da Galileia, enganava-se, pois eu não
sabia fazer bacalhau.
No entanto, inflexível, insistiu para que eu voasse para a Terra Nova, o
que fiz primeiro a Londres e daqui a Gander, no norte da Ilha, próximo
da Conception Bay onde eu, em 1942, tinha estado a carregar bacalhau
seco em viagens comerciais.
Eu sabia que toda a frota portuguesa, à mistura com alguns franceses, se
encontrava a pescar no topo norte, a que chamávamos de Grande Norte, nos
bancos da Terra Nova, como era hábito nos anos anteriores, fazendo lanços
de duas e meia e três horas, a render 9/10 quintais de bacalhau e por
vezes nada,
pois dada a longevidade do lanço, entrava-lhe uma pedra no saco que o
moía, rompia e o lanço sair nulo.
Isto eram os efeitos maléficos e consequentes da passividade causada
pela longa permanência no mar e na pesca, a criar nos pescadores uma
espécie de modorra e marasmo ao seu querer e trabalhar, aceitando tudo
indiferentemente quanto Deus se designava dar.
Grande parte da frota francesa fazia a segunda viagem no Barentz ou Mar
Branco como eles próprios diziam, e só um ou outro era mandado para a
Terra Nova, naquela época.
A nós portugueses, era proibida a ida ao Barentz, talvez
com medo daquele ar nos empecer e tornar uma espécie de red fishermen.
Curiosamente, o primeiro arrastão português que se atrevera a ir pescar
aquelas paragens, fora o navio Invicta, sob o comando do jovem José Luís
Gramacho, vivo, atrevido e simpático,
mas com pouco de pescador, porém arrojado, pois tendo feito amizade com
uma família de grandes pescadores franceses de Saint MaIô, os Fribolet,
integrava com eles um grupo de pesca, e lá foi para o Barentz.
Ao falar em grupo de pesca, recordo que inicialmente quando comecei em
1945 aquela actividade, todos os portugueses trocávamos informações
através das telefonias, sem quaisquer subterfúgios, salvo os inerentes à
formação de carácter e probidade
/ 151 /
de cada pescador como homem, pois na pesca como em qualquer outra
actividade profissional, muito especialmente nas liberais com quem os
possamos comparar, quer sejam licenciados pelas universidade, como
ignaros pescadores, há sempre quem pense sobressair, se prejudicar os
seus iguais.
Ora em França, a disputa entre pescadores era coisa séria e em grande,
desejosos de cada um dar nas vistas aos armadores, tentando obter
contrato de trabalho e remuneração, com mais meio ou um ponto
percentual.
Foi esta luta, especialmente de franceses contra franceses, os de Saint
MaIô e os de Fecamp, a parecer verdadeira guerra a que eles estavam
habituados e formados, pois tinham-na sofrido na carne, em métodos e
processos contra os nazis, que alguns hermeticamente fechados e
obviamente a obrigar toda a frota latina em pesca, a fazer o mesmo para
se defender.
Durante a minha travessia voando sobre o Atlântico, não me fugia da
ideia a espinhosa missão que levava ou esperavam de mim, pelo que fui
perguntando a mim mesmo como ir proceder.
Chegado a Gander, onde de seguida tinha carreira em um pequeno avião
para St. John' s, por incapacidade do seu aeroporto receber os grandes
transoceânicos, resolvi deixar-me
ali ficar em busca de informações de pesca na Notre Dame Bay, o que
encontrei num velho bagageiro a quem interroguei se sabia como ali tinha
decorrido a safra, ao que me respondeu, do que ouvira, faltarem braços e
sal para tanto peixe.
Chegado ao Newfoundland Hotel, depois de alojado, encontrei no Bar um
francês que se me apresentou como capitão do arrastão Bassilour, chegado
a St. John's para reabastecimento, e a dizer ter estado essa manhã no
Santa Mafalda onde o informaram estarem
à minha espera.
Eu, embora conhecesse bem o navio pelo nome, desconhecia no entanto o
seu capitão, entretanto como dois camaradas que éramos, ficámos ali, ele
a beber, já que eu nunca fui de bebericar.
Ora o francês, de quem esqueci o nome, não só se confessava desanimado
com a quantidade do seu pescado havido a bordo, como mais ainda, pelas
perspectivas futuras que esperava à sua
/ 152 /
chegada a França, do despedimento certo. Entretanto perguntou-me o que
eu pensava fazer e para onde ir pescar. Disse-lhe pensar ir para
setentrião em busca de mais e melhor do que eles estavam a pescar no
Grand North. A isto inquiriu-me se me
podia acompanhar?
Respondi-lhe que com dois, a busca seria mais efectiva e
melhor.
No dia seguinte, depois de legalizada a situação do comando do Santa
Mafalda no Consulado, saí à noite com o Bassilour à
ilharga e no dia seguinte, procurado o Pedro de Barcelos no Grand North,
o Emílio de Sousa assumira de novo ali o seu lugar de imediato, e eu
segui norte dentro.
Cá e lá, tanto o Santa Mafalda como o francês, fomos largando a rede em
lanços curtos de 10/15 minutos, a experimentar o mar
e observar o que a rede trazia, mas nada. Até que chegámos ao Labrador e
aí, encontrámos o mar acoalhado de bacalhau, embora de tipo miúdo e só
algum crescido, porém capaz de satisfazer
esfomeados.
O pobre, só olha e observa a esmola quando tem por onde
escolher.
Durante 33 dias, eu e o Bassilour, passámos os dias parados só a escalar,
até que a oito de Dezembro, eu larguei para Aveiro e ele para França.
O Santa Mafalda descarregou 11.500 quintais e o Bassilour, nada inquiri
nem sei, mas apenas que o dito capitão continuou e se manteve no seu
comando.
|