Memórias de um pescador – pp. 141-152.


IX. Divagando

Mas voltemos ao ano de 1970, quando eu já era director do armamento da EPA.

Certo dia recebo, telefonicamente, do Ramos de Sousa, informação de ter sido abordado pela direcção do Grémio dos Armadores, a saber se o Sindicato estaria disposto a com eles entrar em estudo e combinação, de um contrato de trabalho para a pesca do bacalhau. Respondi-lhe que iria estudar o assunto e depois daria uma resposta.

Ora eu deixara de ser aquele pescador independente a não dar satisfações a ninguém, para passar a ser um trabalhador administrativo por conta doutrem e obrigado a explicações. Por isto, avistei-me com Egas Salgueiro, a quem pus o problema da minha posição de sindicalista e nova situação. E, curiosamente, ele, que usualmente era lacónico a medir os pensamentos e as palavras, naquela hora fora franco e extrovertido, a contar-me os armamentos estarem interessados em ligar as tripulações ao preço do bacalhau, a tentar do primeiro-ministro, Marcelo Caetano, maior abertura e autorização ao aumento do valor, de venda ao público.

A primeira coisa que de pronto me ocorreu, fora o José Rocha, que ao tempo se encontrava a pescar, e o seu dito premonitório de «só tu João São Marcos algum dia acabarás com aquelas estúpidas e longas viagens que tanto me fazem sofrer!»

De imediato, telefonei ao Sindicato em Lisboa, a dizer-lhe estar pronto a com ele ir a pé ao fim do mundo, como habitualmente me dizia Ramos de Sousa.

E fora assim que assentei arraiais no palácio do bacalhau da Praça Duque da Terceira, onde as comissões, Grémio e Sindicato, passaram a trabalhar.

Segundo uns quantos pensavam de mim, eu seria o supra sumo das coisas e problemas da pesca do bacalhau, nanja eu que bem conhecia as minhas limitações, a levarem-me a ter cuidados redobrados e fugir a atitudes de Chico esperto, e ficar de pé atrás.

Na primeira reunião, compareceram o António Duarte Silva, um advogado muito conhecido nos meios políticos do bacalhau, / 142 / ligado a Henrique Tenreiro e representante do sector na Câmara Corporativa, além de armador in nomine, e da direcção do Grémio.

De presença sorridente e simpática, era tido de velhaco pelos capitães, pois sempre os julgara e nomeava responsáveis por tudo quanto ele considerava de mal para o conjunto da pesca do bacalhau e sua comercialização, isto é, em relação a tamanhos, porque eram pequenos e a qualidade, porque trazia muita humidade e falta de sal, ou, contrariamente, porque vinha muito seco e sal a mais. Enfim, os capitães eram em sua opinião autênticos bodes expiatórios das suas antipatias.

Ora o Duarte Silva apresentou-nos o Ramos de Sousa e a mim, aos representantes do Grémio, Dr. Sena e Silva, professor de economia e armador da Empresa Bacalhau de Portugal e o seu colaborador, Dr. Alberto Pontes, funcionário superior do Grémio e responsável pela sua contabilidade, pessoas que eu já conhecia, mas superficialmente.

O Sena e Silva era um homem sóbrio e pouco expansivo; e o Alberto Pontes, contrariamente, expansivo, inteligente e extrovertido.

E ali ficámos em reuniões semanais durante meses, sem da minha parte levantar quaisquer problemas ou discordâncias, uma espécie de yes man, a dizer sim a tudo ainda que escalpelizando uma a uma, todas as práticas e teorias ali utilizadas.

Eu notava haver uma certa estranheza, de modo geral, pela minha aquiescência a tudo quanto se ia estudando e dado por aceite, e até o Ramos de Sousa, um pouco estranho e admirado pela falta de combatividade e polémica do mestre, como ele me chamava, sobre as coisas da pesca, seus custos e ganhos.

Até que um dia os representantes do Grémio, ou melhor dito, o Sena da Silva ao abordar a duração de cada viagem dos arrastões, pois era desta modalidade de pesca que quase sempre e só tratávamos, na medida em que as condições nos navios de pesca com dóris estavam mais do que tratadas, sugeriu o tempo de oito meses.

Quase não o deixei completar tal proposta, pois logo contrapus 150 dias de viagem e o meu pedido para, da parte representante dos armadores, justificar as razões dos oito meses propostos por eles. / 143 /

Como engolindo em seco, por falta de verdadeira noção e argumentos justificativos dos oito meses propostos, explicaram, no entanto, que a média das últimas viagens tinha dado nove meses, porém face a esta média tiraram-lhe trinta dias, uma espécie de bónus, em razão do apresentado.

Mais uma vez expliquei não estarmos ali, pelo menos eu, a tirar ou dar nada a ninguém mas, apenas a estudar as causas da baixa produtividade do sector, a procurar criar-lhe incentivos, em benefício de todos, proprietários e tripulantes isto é, da Nação.

Eu sabia bem onde e com quem estava metido e que o Grémio, ou melhor dito, o Duarte Silva era homem para habilidades e ardis a solucionar o problema em favor da sua dama. Bastaria convencer o Ramos de Sousa, nas minhas costas, a assinar em representação do Sindicato Nacional, para sanar a situação.

Entretanto, por mim, se estivesse para aí virado, poderíamos também resolver o diferendo, cedendo no tempo limite da duração da viagem, em troca de benefícios monetários para os capitães pescadores, que no arrasto, por ser o único pescador e influente na produtividade e responsabilidade do resultado da pesca, o que teria levado os franceses a atribuir-lhes salários, atingir cinco por cento do valor global da carga.

Porém, por ao tempo em Portugal não existir esse elevado tipo de remunerações, quer nos sectores comerciais e industrial, quer  nos administrativos, considerei que no meio piscatório, a concretizar-se, iria levantar enormes celeumas, além de, por outro lado, os capitães dos arrastões, mercê das longas e insuportáveis viagens, terem deixado de ser os únicos pescadores a bordo, por subdividirem o trabalho e responsabilidades da pesca com os seus oficiais imediatos.

Por tudo isto e mais a intenção de criar condições de trabalho e operacionalidade aos pescadores, à imitação dos franceses, fixei-me a bater nos 150 dias de viagem e daqui não me afastei, na esperança de futuramente novos pescadores virem a beneficiar.

Com esta ideia e exigência andámos meses, sindicalistas e armadores a teimar, porém com estes, lentamente a descer, até se fixarem irredutíveis nos 180 dias de viagem.

O aviso de irredutível excitou-me os brios, não para me posicionar em igual irredutibilidade, mas a buscar a solução / 144 / para a nossa teimosia; e foi então que redigi e propus: «o tempo de duração da viagem para os arrastões fica condicionado em 150 dias, de barra a barra, podendo no entanto ser dilatado por mais trinta dias, se consultada a tripulação esta não se opuser ao prolongamento.»

Marcada nova reunião das partes contratantes, tudo fora definido e aceite, chegando ao final do Contrato Colectivo, e também decidido, o dia para as respectivas assinaturas.

No dia e hora aprazados para o desfecho, comparecemos da nossa parte, o presidente do Sindicato Nacional, o delegado Ramos de Sousa e eu, presidente da Distrital de Aveiro, e da parte do Grémio, Duarte Silva, Sena de Silva e Alberto Pontes. Depois dos cumprimentos da praxe, Duarte da Silva informara que o Senhor Almirante gostaria de estar presente no enceramento dos trabalhos e assinaturas deste primeiro Contrato Colectivo de Trabalho para a Pesca do Bacalhau, ao que eu, que jamais quis ser ou considerei parecer, mais do que um modestíssimo, porém brioso e determinado pescador, capaz de ombrear fosse o que fosse ou com quem for, levantei a voz para lhe pedir que, em meu nome pessoal, informasse o Senhor Almirante que eu, João São Marcos, para evitar que amanhã apareça alguém a insinuar eu ter anuído a este Acordo, coagido pela presença do Senhor Almirante Tenreiro, gostaria mais que ele não estivesse presente aqui, às assinaturas.

E ele não desceu do segundo andar onde era o seu gabinete de trabalho, ao primeiro onde estávamos reunidos.

Devo esclarecer que, ao dito do Duarte Silva, reagi automaticamente, sem qualquer intenção revanchista relativa à homenagem de Ílhavo, em que eu tinha sido testa de ferro, e não só, da comissão das festas. Só depois de feito o pedido a solicitar ao almirante a não descer, é que me lembrei da coincidência dos dois casos.

Nada disto porém me alterou a disposição. No entanto, devo esclarecer, francamente, que se isto me tivesse ocorrido, seria possível que não o fizesse. Não por ter medo, mas por Henrique Tenreiro me merecer respeito. E curiosamente foi, que se por ele, dada a sua afabilidade comigo, já tinha simpatia, o facto de ele não ter descido do segundo andar ao primeiro, a olhar-me / 145 / com sobranceria, o que qualquer outro na sua situação quase de certeza faria, mais cresceu Henrique Tenreiro pessoalmente no meu respeito e consideração.

E fora assim que, em função deste contrato, aquelas longas e massacrantes viagens com a média de 270 dias e que em alguns navios como o Estêvão Gomes do comando do Mário Redondo, e do David Melgueiro, capitaneado pelo Manuel Viana, chegaram a atingir 330 e 345 dias, respectivamente, desde as suas largadas de Lisboa até ao seu regresso, criminosamente sobrecarregados, pondo em risco navios e obviamente as suas tripulações.

Contudo e não obstante toda esta luta e anseios para a conquista da limitação do tempo de viagem, concretizada em 1970, não houve um só navio, a partir de então, que esgotados os 150 dias de viagem, não tenha o respectivo capitão solicitado à sua tripulação, para continuar a pesca mais os trinta dias complementares, a completar os seis meses de viagem.

Diga-se de passagem que não só eu, ao conceber a cláusula da limitação do tempo de viagem, como o Grémio ao aceitá-lo, já contávamos implicitamente com a aquiescência das tripulações e seus comandos, aos seis meses.

Os movimentos contestatários da revolução dos cravos, especialmente a partir de 1975, ainda vinham longe e as tripulações continuavam submissas a tudo quanto lhes solicitassem.

Só depois desta data, a vida social se modificou. Os que viviam na abundância cheios de supérfluos, a darem nas vistas, em manifesta e pura coqueteria, esconderam os casacos de peles e adereços, com medo dos excessos e vaias da populaça politizada, como os homens, a tirarem a gravata e a maior parte deles a deixar crescer as barbas e os cabelos, a querem parecer miseráveis ou intelectuais, ao mundo que os olhava sem interesse.

Os pequenos agricultores, que até ai amanhavam as suas territas, mais uma ou outra de aluguer, com ajuda das filhas, já que os filhos, a partir dos dezassete anos e com muitos pedidos, embarcavam à pesca do bacalhau onde, não só forravam uns tostõezitos, como especialmente, ao fim de sete safras seguidas, livrariam do serviço militar, começaram por vender as leiras das testeiras nas estradas, onde os emigrantes construíram as suas moradias. / 146 /

Chegado até aqui, neste relembrar do meu passado, fico suspenso a pensar se valerá a pena continuar a falar do gadus morua, sua vivência, minhas perseguições por todos os cantos onde o imenso Atlântico se confunde com o Glacial Árctico, numa luta de dois gigantes oceânicos, em que cada um deles tenta opor-se ao avanço e invasão do outro, observados por alguém que sobrevivia, na dura mas estimulante lide da pesca do bacalhau.

Entretanto, a pensar que algum dia aparecerá quem queira fazer a sua história, não apenas da pesca com alguns dos seus simplísticos episódios, habitualmente narrados, mas também do próprio bacalhau, suas mutações e viver, terá de se apoiar, presumo, além do mais mas também, nos que dela algo contaram.

Além disto, que já não seria nada pouco, mas por ter em mente a relativa proximidade da extinção do bacalhau, devido às alterações climáticas da Terra, só agora observadas e entendidas pelos geofísicos, embora há muito, talvez há mais dum século, terem sido sentidas pelo próprio bacalhau, ainda mais me entusiasmou continuar contando quanto dele ouvi, vi e observei.

Os primeiros pescadores americanos feitos por os ali emigrados, desde há séculos, que pescavam bacalhau em todo o banco Georg incluindo o Golfo do Maine, tiveram, a partir dos finais do século XIX, para o continuarem a pescar, dali se afastar mais para o nordeste, por aquele banco ter sido infestado por um outro tipo de peixe rosado, uma espécie de cantarilho da família dos scorpaenidaes, a que chamaram red fish.

A primeira coisa que imaginaram, por ser óbvia ao comum dos homens daquele tempo, quanto mais aos ignaros pescadores, fora aquela fuga ter-se dado por medo do bacalhau em função do vermelho do cantarilho. O mesmo me acontecera em 1945, quando me iniciei a pescar na Terra Nova com redes de arrasto, onde aqui passei a notar fenómenos semelhantes, não obstante muito longe do Georg bank, o que me dera motivo a pensar e repensar, quer no que via como também no que tinha ouvido contar.

Assim deixando o tempo correr, e eu experiência a acumular, / 147 / fui andando até que um dia, depois de tanto cismar e conhecimentos somar, cheguei à simples conclusão de que o medo, que eu e milhares de outros antes de mim, julgávamos o bacalhau ter do red físh, não passava da diferença de ecossistemas, em que cada um deles privilegiava sobreviver.

Desde então concluí que essa diferenciação se baseava especialmente na temperatura, pois cada vez mais o bacalhau e o red físh apareciam juntos nos mesmos locais, embora a substituir-se este por aquele, lenta e progressivamente.

Fora então que passei a dar grande importância e a comparar, de ano para ano, a localização e comportamento das massas de gelos flutuantes primaveris e seus movimentos, e constatando também, de ano para ano, que os cardumes do gadus morua seguiam mais ou menos a direcção e sentido desses gelos.

Estas massas geladas, que todos nós portugueses, espanhóis e italianos, passamos a designar por banquise, à imitação dos franceses, em vez de continuarem compactas, integrando icebergues como anteriormente, a correr ao longo da beirada de leste dos bancos até chegarem ao extremo sueste a 42º 30' N de latitude e 48º 30 W de longitude, como acontecera em Abril de 1912, onde por colisão, afundaram o celebérrimo Titanic, passaram agora a ser por mim observadas, 1947 depois de um Inverno moderado, a amontoarem-se contra a costa nordeste da Ilha da Terra Nova, a fechar o acesso da navegação às Bonavista, Trinidade e Conception Bays, além do porto de St. John's por algumas semanas encerrado.

Todas estas modificações dos gelos, como a ocupação dos antigos pesqueiros de bacalhau, substituído por red físh, criou-me a convicção de que as massas glaciares do Árctico diminuíam não apenas sensível como assustadoramente, e os gadídeos, cujo ecossistema se confina à confluência das duas águas frias e quentes, a recuarem a noroeste, com elas.

Além disso, por a natureza não se modificar instantaneamente, isto é, de um momento para o outro, o bacalhau só em parte se deslocara para norte a seguir o seu ecossistema em profundidades inferiores a 400-500 metros, pois a outra parte dos cardumes, constituída por espécimes adultos e de maior tamanho e robustez, passara a esgueirar-se pelas funduras abissais para o / 148 / sueste, até ao Fleming Cap, em cujo banco, por alguns anos, os navios continuaram a fazer razoáveis pescarias.

Em 1950 acontecera-me, por grave avaria no sistema propulsor do navio Santa Joana, há anos no meu comando, sair para a primeira viagem desse ano, tardiamente, só em princípios de Junho.

Ora acontecera nesse ano também os arrastões, de modo geral, chegado o mês de Junho e devido às fracas pescas, não terem a bordo as quantidades de bacalhau habituais, para virem a Portugal descarregar, fazendo assim duas viagens no ano.

Nesta situação, a administração da SNAB, sabendo da minha próxima partida para os bancos do noroeste Atlântico, decidira solicitar-me que levasse para os seus navios em pesca algumas encomendas, que eu pensara ser como era habitual, de meia ou uma tonelada de peso, quando afinal era por a SNAB ter decidido unilateralmente, sem qualquer consulta às tripulações, manter os navios em pesca até encherem os porões completamente de bacalhau, do que resultara as encomendas serem de 200 toneladas de materiais de redes que dessem para aqueles navios pescar durante o resto do tempo, que iriam permanecer nos bancos.

E fora assim, com a minha aquiescência que, involuntariamente, me tornei conivente com a feitura das primeiras viagens únicas, anuais.

Chegado à Gronelândia e distribuídas as 200 toneladas de carga pelo oito ou nove navios da SNAB, iniciei a pesca no Store banco, na sua beirada do noroeste, com medíocre rendimento, o que me fez procurar coisa melhor, indo para a mesma latitude no extremo norte do banco, mas junto à terra, resguardando as três milhas então impostas de águas territoriais.

A correr ao longo daquele canal, vinte milhas mais a norte e outras tantas pelo sul abaixo, por ali me fui aguentando até que, cerca de 20 de Agosto, tinha a bordo 18.200 quintais de bacalhau, graúdo e especial, obviamente de grande valor comercial.

Entretanto, quando já pensava, não só no regresso como especialmente no final da minha tensa situação a pescar, acontecera receber um telegrama da gerência da EPA informando-me duma estranha ocorrência no navio Santa Mafalda que, tendo chegado Aveiro a descarregar o pescado da sua primeira viagem desse / 149 / ano e saído para Lisboa, o seu capitão, que era também meu sogro, adoecera incapacitado de seguir ao mar, para a segunda viagem do ano.

Fora então que a gerência da EPA decidira fazer sair o Santa Mafalda, sob o comando de um capitão não pescador, certa de, à sua chegada à Groenlândia, onde eu me encontrava quase a terminar o carregamento, se me telegrafasse a relatar o acontecido e pedir para eu assumir o comando do Santa Mafalda, entregando o Santa Joana ao capitão não pescador para o levar para Aveiro já carregado, eu não diria que não.

Eu tinha vinte e nove anos de idade e cinco viagens no comando, além da verdadeira noção dos meus deveres e direitos, incapaz de aceitar desmandos, dum qualquer empresário que, só o era por uma questão do valor da sua quota no capital social da empresa, porém sem qualquer noção da actividade donde provinham os rendimentos, gordos ou magros. Na volta do telégrafo, logo respondi sem gaguejar o seguinte: «Vossa solicitação inviável no que se refere à minha transferência stop. Porém poderei aqui encontrar um capitão pescador para vosso Santa Mafalda, cumprimentos.» Na resposta, a gerência agradecia e aceitava a minha intervenção na solução do seu problema.

Assim, falei com o imediato do navio da SNAB, Pedro de Barcelos, rapaz que eu bem conhecia, vivo e esperto, que logo se prontificou aceitar a incumbência de assumir a posição de pescador do Santa Mafalda, desde que eu conseguisse anuência do capitão do Pedro de Barcelos, João Britaldo e do armador SNAB, o que fora coisa simples, até porque ao tempo, em serviço na ponte deste tipo de navios, havia além do capitão pescador, o imediato, o segundo piloto e um praticante com curso de pilotagem.

Dias depois cheguei Aveiro a passar férias, nos meses de Setembro e Outubro.

Quando o décimo mês ia quase no fim, Egas Salgueiro mandou-me chamar a perguntar se eu estaria disposto a voar para a Terra Nova, a assumir o comando do Santa Mafalda, dado este navio, nos dois meses de pesca, ter a bordo apenas 1.500 quintais de bacalhau.

Lembrei-lhe a pesca ao tempo não decorrer mal apenas ao / 150 / Santa Mafalda, mas a todos os navios nos bancos, só que todos os outros tinham largos meses nos pesqueiros. Além disto inquiri-lhe, se solicitava a minha ida, julgando-me o salvador da viagem, uma espécie de São Pedro no mar da Galileia, enganava-se, pois eu não sabia fazer bacalhau.

No entanto, inflexível, insistiu para que eu voasse para a Terra Nova, o que fiz primeiro a Londres e daqui a Gander, no norte da Ilha, próximo da Conception Bay onde eu, em 1942, tinha estado a carregar bacalhau seco em viagens comerciais.

Eu sabia que toda a frota portuguesa, à mistura com alguns franceses, se encontrava a pescar no topo norte, a que chamávamos de Grande Norte, nos bancos da Terra Nova, como era hábito nos anos anteriores, fazendo lanços de duas e meia e três horas, a render 9/10 quintais de bacalhau e por vezes nada, pois dada a longevidade do lanço, entrava-lhe uma pedra no saco que o moía, rompia e o lanço sair nulo.

Isto eram os efeitos maléficos e consequentes da passividade causada pela longa permanência no mar e na pesca, a criar nos pescadores uma espécie de modorra e marasmo ao seu querer e trabalhar, aceitando tudo indiferentemente quanto Deus se designava dar.

Grande parte da frota francesa fazia a segunda viagem no Barentz ou Mar Branco como eles próprios diziam, e só um ou outro era mandado para a Terra Nova, naquela época.

A nós portugueses, era proibida a ida ao Barentz, talvez com medo daquele ar nos empecer e tornar uma espécie de red fishermen.

Curiosamente, o primeiro arrastão português que se atrevera a ir pescar aquelas paragens, fora o navio Invicta, sob o comando do jovem José Luís Gramacho, vivo, atrevido e simpático, mas com pouco de pescador, porém arrojado, pois tendo feito amizade com uma família de grandes pescadores franceses de Saint MaIô, os Fribolet, integrava com eles um grupo de pesca, e lá foi para o Barentz.

Ao falar em grupo de pesca, recordo que inicialmente quando comecei em 1945 aquela actividade, todos os portugueses trocávamos informações através das telefonias, sem quaisquer subterfúgios, salvo os inerentes à formação de carácter e probidade / 151 / de cada pescador como homem, pois na pesca como em qualquer outra actividade profissional, muito especialmente nas liberais com quem os possamos comparar, quer sejam licenciados pelas universidade, como ignaros pescadores, há sempre quem pense sobressair, se prejudicar os seus iguais.

Ora em França, a disputa entre pescadores era coisa séria e em grande, desejosos de cada um dar nas vistas aos armadores, tentando obter contrato de trabalho e remuneração, com mais meio ou um ponto percentual.

Foi esta luta, especialmente de franceses contra franceses, os de Saint MaIô e os de Fecamp, a parecer verdadeira guerra a que eles estavam habituados e formados, pois tinham-na sofrido na carne, em métodos e processos contra os nazis, que alguns hermeticamente fechados e obviamente a obrigar toda a frota latina em pesca, a fazer o mesmo para se defender.

Durante a minha travessia voando sobre o Atlântico, não me fugia da ideia a espinhosa missão que levava ou esperavam de mim, pelo que fui perguntando a mim mesmo como ir proceder.

Chegado a Gander, onde de seguida tinha carreira em um pequeno avião para St. John' s, por incapacidade do seu aeroporto receber os grandes transoceânicos, resolvi deixar-me ali ficar em busca de informações de pesca na Notre Dame Bay, o que encontrei num velho bagageiro a quem interroguei se sabia como ali tinha decorrido a safra, ao que me respondeu, do que ouvira, faltarem braços e sal para tanto peixe.

Chegado ao Newfoundland Hotel, depois de alojado, encontrei no Bar um francês que se me apresentou como capitão do arrastão Bassilour, chegado a St. John's para reabastecimento, e a dizer ter estado essa manhã no Santa Mafalda onde o informaram estarem à minha espera.

Eu, embora conhecesse bem o navio pelo nome, desconhecia no entanto o seu capitão, entretanto como dois camaradas que éramos, ficámos ali, ele a beber, já que eu nunca fui de bebericar.

Ora o francês, de quem esqueci o nome, não só se confessava desanimado com a quantidade do seu pescado havido a bordo, como mais ainda, pelas perspectivas futuras que esperava à sua / 152 / chegada a França, do despedimento certo. Entretanto perguntou-me o que eu pensava fazer e para onde ir pescar. Disse-lhe pensar ir para setentrião em busca de mais e melhor do que eles estavam a pescar no Grand North. A isto inquiriu-me se me podia acompanhar?

Respondi-lhe que com dois, a busca seria mais efectiva e melhor.

No dia seguinte, depois de legalizada a situação do comando do Santa Mafalda no Consulado, saí à noite com o Bassilour à ilharga e no dia seguinte, procurado o Pedro de Barcelos no Grand North, o Emílio de Sousa assumira de novo ali o seu lugar de imediato, e eu segui norte dentro.

Cá e lá, tanto o Santa Mafalda como o francês, fomos largando a rede em lanços curtos de 10/15 minutos, a experimentar o mar e observar o que a rede trazia, mas nada. Até que chegámos ao Labrador e aí, encontrámos o mar acoalhado de bacalhau, embora de tipo miúdo e só algum crescido, porém capaz de satisfazer esfomeados.

O pobre, só olha e observa a esmola quando tem por onde escolher.

Durante 33 dias, eu e o Bassilour, passámos os dias parados só a escalar, até que a oito de Dezembro, eu larguei para Aveiro e ele para França.

O Santa Mafalda descarregou 11.500 quintais e o Bassilour, nada inquiri nem sei, mas apenas que o dito capitão continuou e se manteve no seu comando.