Memórias de um pescador – pp. 129-138.


VIII. De marinheiro a tranca

Escrever narrando seja o que for é muito mais difícil do que inicialmente imaginei. E fazê-lo, seguindo um fio de pensamento simétrico e cronológico, ainda mais difícil se torna, quer por algumas vezes nos alongarmos em pormenores que nos dão motivos e ensejo a noutras coisas falar, como nos desviam do essencial ao que nos propúnhamos escrever.

Fora o caso passado no final da década de quarenta, a resvalar para a de cinquenta, no período de desabrida construção de navios e outro tipo de fomento das actividades do mar, quer nas pescas como nos transportes comerciais.

Neste interim acontecera Egas Salgueiro, acompanhado de Manuel Maria Mónica, deslocados em Inglaterra, comprarem ali, para sociedade a formar entre ambos, uma doca seca flutuante e dois navios de guerra, ditas corvetas carregadas de sobressalentes e outros auxiliares que, entretanto, o intermediário se obrigou a rebocar para o porto de Aveiro.

Porém aqui a combinada sociedade desfez-se entre ambos e resolvido o mestre Manuel Maria optar pela doca e o Egas ficar com os navios que logo impingiu à EPA.

Acontecera a compra das duas corvetas canadianas ter sido um engano, quer por o carregamento de sobressalentes ser constituído por artigos eléctricos os mais variados, porém todos para corrente continua, entre nós sem qualquer préstimo nem valor, e as corvetas que na Gafanha passaram a ser ditas vedetas, serem navios só a fingir, feitos para na guerra irem para o fundo do mar, cuja construção, por apressadamente efectuada, ter as balizas apenas pingadas, longe a longe às chapas do costado, e estas também soldadas, sem as habituais bainhas.

No entanto, porque na vida, só para a morte é que ainda não apareceu ninguém a dar solução, para as corvetas ou vedetas logo apareceu alguém com ideias, que ao tempo ainda não eram ditos de idiotas, a transformá-las em dois «tunaclipers», tipo e modalidade de pesca de atum, usada antes da guerra mas que, em 1950, já era largamente substituída pelo cerco atuneiro no largo oceano. / 130 /

Estes dois navios, denominados Rio Águeda e o Rio Vouga, jamais pescaram, como seria óbvio saber quem ao tempo, na pesca do atum, estivesse minimamente integrado e conhecedor.

Coisas que na minha vida fui observando e conhecendo, efectuadas por quem, sendo mangas de alpaca, à força queria fingir de pescador.

Assim, a única actividade atuneira destes dois navios resumiu-se a permanecer no mar largo ao redor das ilhas do Pico, Faial, S. Jorge e Graciosa, onde, em determinados meses do ano, os cardumes de tonídeos ali são habituais e que os pescadores locais, ao avistá-los de terra, saem nas suas pequenas embarcações a pescá-los e ali mesmo logo a vendê-lo ao «tunacliper», que o congela para posteriormente comercializar.

Sei, haverá quem pergunte porque o mesmo não faziam os tripulantes do «tunacliper»? É que os pescadores vindos de terra, antes de se fazerem ao mar largo, pescavam primeiramente, nas reentrâncias e enseadas da ilha, isco vivo, sem o qual o atum não se deixa apanhar, na modalidade de salto e vara.

Enquanto tudo isto fora acontecendo e passando, eu que ao tempo estava em Aveiro, entre duas viagens à pesca de bacalhau, ligado ao planeamento para a construção dos dois primeiros arrastões ditos de popa, a efectuar nos estaleiros de S. Jacinto sob projecto, adquirido pela EPA, ao arquitecto alemão Coma do Birkoff e que vieram a chamar-se de Santa Isabel e Santa Cristina, a iniciar uma série de muitos navios deste eficiente tipo e modalidade Inicialmente, fui da opinião em considerar esta atitude e acção da EPA, de inconsciente e irresponsável, pelas enormíssimas responsabilidades que assumia sem para tal ter gente nem estruturas técnicas e tecnológicas para o fazer. Além disto propôs-se a própria EPA fornecer à construtora todos os equipamentos mecânicos, eléctricos e electrónicos, indispensáveis aos navios, deixando ao estaleiro apenas a responsabilidade e trabalho da construção e montagem.

Quem tenha de construção e montagem de navios, ainda que leves conhecimentos, avaliará onde e em que a Empresa de Pesca de Aveiro se foi meter.

Porém, o que inicialmente considerei pretensioso e ingénuo, / 131 / fora, não apenas para mim, mas especialmente para Teotónio França Morte, enorme motivo de aplicação, estudos e acções, que nos levaram a conhecimentos invulgares a pescadores, e incentivo empresarial ao Teotónio, que o levou a edificar o que deixou quando falecera.

Entretanto um dia acontecera, não para quebrar a monotonia do meu viver, por nesse tempo estar dedicado a trabalhos para mim pouco vulgares, Egas Salgueiro surge a solicitar-me para um reunião, onde estaria também Alfredo Esteves, seu parceiro no conselho de gerência, homem que sempre e em tudo o apoiou.

Ora o meu chefe, mais loquaz do que o habitual, começou por me falar nos dois «tunaclipers» e sua precária situação, o que levava a gerência a procurar-lhes solução.

Dos presentes, qualquer deles imaginava eu ser dotado dum sexto sentido para cheirar peixe, pelo menos bacalhau, e esta seria a razão da minha maior produtividade na pesca, por este motivo – pensava eu – procuravam a minha ajuda afim de encontrar atum e pôr os dois «tunaclipers» a pescar.

Entretanto, foram-me informando estarem em contacto com entidades do nordeste do Brasil, que nos convidavam, não só ir para lá pescar, como a oferecerem algumas facilidades aos nossos navios Rio Águeda e o Rio Vouga.

Nesta situação, precisavam de alguém capaz como eu para ir àquelas paragens, ver e observar o que por lá havia; e, com a minha experiência, calcular o que, no caso dos navios irem, o que lhes poderia acontecer.

Não obstante ter-lhes explicado serem os tonídeos espécies de superfície, totalmente diferentes dos demersais gadídeos a que eu estava habituado, e não ter de tal pesca e peixes nenhuma experiência e conhecimento, não foi o suficiente para os fazer desistir do convite. E eu que, de questões e problemas do meu meio operacional, sempre gostei de ver e estudar, sem quaisquer exigências de ordem pessoal, aceitei.

E lá fomos dias depois, acompanhado por um funcionário administrativo ligado às vedetas, como eram conhecidos os «tunaclipers», directos ao Rio de Janeiro.

Começando em Niteroi, na Baía da Guanabara, onde se concentravam as fábricas de conserva de sardinhas, espécie de / 132 / tamanho reduzido e flácido, das águas quentes, capturadas ao redor e norte do Cabo Frio, fora a partir daqui, que por estradas, caminhos e carreiros, a aproximarmo-nos sempre das areias e rochas da orla costeira que, de jipe ou de automóvel ligeiro, seguimos norte acima, pernoitando onde Deus queria, desde choupanas a hotéis de luxo.

Assim por semanas, passámos Campos, Pico Bandeira, Victória e Caravela, num passeio nada cómodo nem tão pouco simpático e, ainda por cima, sem nada ver nem avistar do que nos tinha levado ao Brasil.

Enfim, lá acabámos por aportar à Baía de Todos os Santos e cidade de S. Salvador. Aqui, bem alojados e mantidos, a conhecer as mais diversas personalidades, especialmente universitárias, professores ligados à biologia marítima, em almoços, jantares e outros meetings cujas conversas sempre, quase em exclusivo, incidiam sobre a vida do capitão de navios da pesca do bacalhau ali presente, com perguntas as mais disparatadas, de pessoas de nível cultural elevado.

Sei que jornais da cidade relataram, com certa admiração, ter estado na cidade e até andado pelas ruas, avenidas e estabelecimentos comerciais, um daqueles monstros anti-diluvianos não enjaulado, que capitaneava veleiros da pesca do bacalhau, nos mares coalhados de gelo.

Porém, coisas de interesse à nossa missão quase nada ou mesmo nada. Por isto, virámos amarras e de novo voltámos à estrada, a tentar ver o que, difícil e raramente, encontrávamos e observávamos, isto é pescaria.

A caminho do norte, agora com praias a perder de vista, passámos Alaguinhas, Aracajú, Maceió, até chegar ao Recife, a ver cá e lá jangadeiros isolados e sem pescado.

No Recife, assentei base na praia da Boa Viagem. Foi aqui que encontrei e conheci o português José Ramadas, um dos filhos de Francisco Ramadas de Ovar, que, muito jovem, emancipando-se do pai, que me parece ter sido um "self made man" com todos os seus defeitos e virtudes, imigrou para a Bélgica, onde se formou e se fez homem.

Ora ligado à Sudene, fora para o Recife e com a promessa de fabricar arame farpado para cercar individualizando as / 133 / propriedades, criou e desenvolveu altos fornos para a fundição de aço e outras indústrias metalúrgicas.

Este homem, a quem vínhamos desde Aveiro dirigidos e recomendados, foi connosco de uma atenção e simpatia sem igual.

Além de vivo, esperto e «bon vivant», de sentido de oportunidade pouco vulgar, foi-nos de enorme utilidade, apresentando-nos a toda a sociedade industrial e política, incluindo o governador do Estado de Pernambuco, e seu staff.

Homens e mulheres, novas e velhas, queriam ouvir, ver e falar com o bicho homem da pesca do bacalhau, que andava pelo Brasil, em busca de coisa melhor que o afamado prato tão querido das gentes de Portugal e Brasil.

Ali aconteceu outra vez, mas com maior volume e muito mais frequência, devido ao entusiasmo do Zé Ramada, as reuniões e festas tão do agrado das classes média e alta dos brasileiros.

Foi no Recife que encontrei, já ali instalados, os japoneses a explorar, o que principalmente me tinha levado àquele pais, isto é, os tonídeos.

Mas não a pescar com «tunaclipers», modalidade há muito posta de lado por obsoleta, e substituída pelo cerco com barcos de 180 a 300 toneladas de arqueação, à semelhança de traineiras.

Foi a partir de então que, em mim, começou a germinar e a amadurecer a ideia de, à imitação do que faziam os bascos espanhóis e franceses, além dos americanos e japoneses, alguma vez podermos instruir e treinar os nossos bacalhoeiros, de modo a equiparem cercadores atuneiros.

Do Recife para o Norte, com a intenção de passar por João Pessoa e Natal, fui observando cá e lá desgarrados jangadeiros vindos do mar ao entardecer, depois de pescados os covos por eles apoitados, que em dias combinados com certo cidadão americano, que de jipe passava ao longo da praia, a recolher as lagostas nesse dia capturadas.

Decepada a cabeça da lagosta ou do lavagante, os rabos eram congelados em armários arrefecidos a freon 22 e enviados de avião, semanalmente ou antes, conforme a abundância, para a Florida, grande centro organizador e exportador de marisco, para o mundo. / 134 /

A guerra da lagosta, dos marisqueiros franceses com as autoridades do nordeste brasileiro, tinha chegado ao fim e agora eram os americanos que exploravam o filão.

Dobrado o Cabo S. Roque para oeste, ultrapassámos Macau e chegámos a Fortaleza, capital do Ceará.

Curiosamente foi aqui que assisti e presenciei as eleições federais que, elegeram Jânio Quadros, presidente da república do Brasil.

Eu, que embora tendo quarenta anos de idade nunca tinha votado nem sabia se estava inscrito nos cadernos eleitorais, fiquei deveras admirado com o civismo democrático dos brasileiros que, nas filas de votantes, aguardando respeitosamente a sua vez, a dar a primazia às grávidas e outras mulheres que tinham crianças ao colo, coisa que em Portugal jamais tinha presenciado, até porque, repito, nunca tinha votado.

À noite ao jantar, no restaurante do hotel, recebendo um professor universitário especialista em biologia marítima que tínhamos convidado, enquanto ele se desculpava do ligeiro traje com que se apresentava vestido, por ter vindo de presidir a uma mesa de voto em freguesia um pouco distante, eu a compor e confraternizar, fui-lhe referindo a minha admiração por tanto Civismo.

Então o nosso convidado, jovem, sorridente, mas de ar mordaz, desaperta o casaco e sonegadoramente, mostra um enorme pistolão com que os presidentes das mesas do voto se viam obrigados a usar, para se defender.

Em Fortaleza, nada havendo do nosso interesse, além de simpatia e pouco mais, em especial pelo capitão de navios dos mares gelados do bacalhau e também por o meu companheiro estar, por razões de ordem familiar, muito interessado a ir a Belém do Pará, decidimos viajar de avião para S. Luís de Maranhão, na baía de São Marcos, onde permanecemos dois dias; e depois, novamente via aérea para Belém, terminando aqui a nossa missão, depois do que voámos para o Rio de Janeiro.

Diga-se em abono da verdade que, mesmo antes da nossa partida para o Brasil, já eu pensava na inutilidade desta viagem, salvo na possibilidade de alguma coisa eu aprender sobre a vivência dos tonídeos e do seu possível aparecimento, ao largo / 135 / do nordeste brasileiro, cujas latitudes são as mesmas do Golfo da Guiné, onde eu sabia haver muito atum.

Este meu magicar não estava muito longe da verdade nem totalmente errado, pois os japoneses, radicados no Recife, era assim que trabalhavam com os seus quatro cercadores, a pescar listado e bonito isto é, tonídeos miúdos de baixo valor comercial.

Quanto aos dois «tunaclipers», cuja razão me levou ao Brasil, depois de duas campanhas nos Açores, raramente a pescar, mas só a comprar atum aos pescadores locais que o pescavam em botes, a concorrer com as fábricas conserveiras locais, acabaram por ir e se fixar em Moçâmedes, Angola, comprando e congelando o atum ali pescado pelos nativos.

Curiosamente, e ainda que a vida não seja propriamente como as cerejas de Jesus, trinta anos depois desta viagem de exploração pelo nordeste do Brasil, já quando há muito deixara
de ser pescador e até já nem em trabalho diário ligado à EPA, mas simplesmente a ser o presidente da sua assembleia geral de accionistas, sou convidado pelo presidente do seu conselho de administração para o acompanhar em viagem pelo sul desse imenso continente que é o Brasil, em busca de uma base portuária para os seus quatro navios, a pescar no mar das Falklands.

De automóvel, desde o colosso que é a cidade de S. Paulo, mas agora por avenidas e largas estradas, até à fronteira do Uruguai, passando por Santos, Paranaguá, Curitiba, Joinvile, Itajai, Florianópolis, Crucium, Cachias do Sul e Porto Alegre, a contornar a Lagoa dos Patos, Rio Grande, Pelotas até à Lagoa Mirium, na fronteira do Uruguai, tudo belíssimo e encantador e, melhor ainda, a oferecer boas condições para o que nos tinha levado ali, capaz de satisfazer os interesses da EPA.

Por ter quatro navios de arrasto, a pescar lula e pescada na zona das Falklands, tremendamente distante para os explorar à maneira tradicional da nossa pesca longínqua no norte Atlântico, procurávamos, no sul do Brasil, uma base de apoio, quer para descarregar as suas pescas, quer  para armazém frigoríficos a edificar, como para as baldear para navios transportadores que as levassem ao mundo. Além disto, era propósito transferir parte das oficinas de reparações da Gafanha para essa possível base, / 136 / de modo a dar continuidade à exploração dos navios.

Porém, quer as condições, financeiras e administrativas, impostas pelas entidades brasileiras, como especialmente as de suborno, eram de tal ordem impróprias a negociar, que nos levou a desistir.

Mas permitam-me que continue recordando e escrevendo, o que não era minha intenção fazer, senão e apenas de viva voz contar, tal e qual como há muitos anos a meus avós ouvira relatar.

Porém os meus netos, mais estes tempos sofisticados de expressão moderna, onde tudo é linear e objectivo, a não deixar tempo à juventude para olhar e ouvir seja o que for do passado, onde, quanto a mim, podiam colher ensinamentos.

Contudo, quem sou eu hoje em dia, velho tarrinca, para querer ainda judiciar, quando esses meus netos, de estojo informático debaixo do braço, a bastar-lhes ligar a internet para logo ali tudo saber seja do que for, do mais raro ao rasteiro que se possa imaginar.

Nesta situação, e a cumprir o que julgava ser meu dever, arregacei as mangas e com esforço retomei o escrever. Será tempo perdido, pensei, pois quem escreve é na esperança de alguém o vir a ler! No entanto, eu que me iniciei nisto com relutância e até com algum sacrifício, acabei por lhe encontrar algum incentivo e estímulo, para me entreter e continuar.

Dito isto como prólogo ao que pretendo mais contar da minha vida, a correr e sem grandes tribulações, porém, não na paz do Senhor, obviamente.

Feitas as duas primeiras viagens do último Santa Mafalda dos três que conheci na EPA, isto em finais de 1969, Egas Salgueiro convida-me a desembarcar e assumir a chefia do armamento da sua empresa, constituída por onze navios.

No mundo da pesca do bacalhau, tudo era pouco mais ou menos não só no mar como especialmente em terra, e aqui, dum amadorismo sem igual. Talvez não fosse só nas empresas de pesca, mas também em todo o sector empresarial português.

Por isto, ao convite formulado, não aceitei à primeira vista, na medida em que eu não queria desembarcar para ser o que nas berças dos ílhavos e gafanhões, era designado por capitão / 137 / de terra, uma espécie de topa a tudo, coordenador e colaborador, e às vezes nem isso, dos movimentos dos navios nos portos nacionais, a trabalhar numa balbúrdia mais agitada do que a sentida no mar, quando no centro da tempestade, onde aparecem ondas vindas de todos os lados.

Aceitaria sim tal lugar sem rebuços, desde que eu fosse responsável pelo armamento e tudo nele tratado por meu intermédio, aquilo a que em qualquer organização industrial é chamado de director de serviços, a conservar assento e a definir a situação, pois ao tempo não havia qualquer organograma estabelecido.

E ainda bem que isto exigi, pois anos depois, para o criar e definir, fora convidada uma instituição universitária de consultadoria, que concebeu o tal organograma, de modo a que a frota de pesca ficou, em tal plano, condicionada e submetida ao critério dos pedreiros, carpinteiros, pintores e mecânicos da organização oficinal, cuja existência tinha por fim exclusivo a reparação dos edifícios e navios da própria Empresa de Pesca.

Não apenas por natureza, como até por deformação da actividade que exerci, durante cerca de 28 anos, eu era espírito independente a fazer só o que pensava, sem dar satisfações senão a mim próprio. Porém chegava a hora de alterar esse modo de livremente proceder, e passar ao estatuto de profissional por conta doutrem, a ter de dar satisfações, superiormente.

Embora conhecesse de longa data o meu agora superior hierárquico, sabendo-o pessoa modesta, aparentemente despretensiosa, porém reservado, a julgá-lo incapaz de desaforos que me levassem a perder as estribeiras, eu teria porém de ser cuidadoso e precavido.

A isto depressa me adaptei e, lado a lado, sem percalços, trabalhámos até 1975, quando decidiu afastar-se, especialmente pela balbúrdia que o sector oficinal da própria EPA passou a ser.

Curiosamente, ao preparar o seu afastamento, reestruturou o conselho de administração, no qual pretendeu integrar-me, ao que me opus, lembrando-lhe a moda que estava correndo, e ele a sentir na própria pele, de os empresários administradores nada mandarem, substituídos pelos trabalhadores. / 138 /

Certo dia, afastado o velho presidente e entrado em funções um novo, constituído pelo filho e o genro, acontecera na minha ausência por horas, ao chegar à Gafanha e aproximar-me do meu gabinete de trabalho, verificar estar rodeado pelos mais de trezentos operários trabalhadores adstritos aos nossos serviços oficinais, a informarem-me terem ali dentro encerrado o novo presidente, até que aceitasse assinar um documento reivindicativo de novas condições salariais.

Avancei para a porta da entrada e deparei com dois matulões a vedar-me a entrada. Meti a mão no bolso do casaco, onde tinha um molhe de chaves, e a coberto do tecido, fingi ser uma arma de fogo que apontei a dizer: «O que não se afastar cairá redondo!» Obedecido, entrei, indo encontrar o Hernâni Salgueiro calmo e determinado a não assinar o papel que tinha em mãos, e que o operariado impunha ele autenticasse, aumentos salariais já determinados.

Voltei à porta e elevei o meu vozeirão: «Amigos, todos devem saber eu ser um trabalhador como vós, e aqui representar o pessoal do mar, com tantos direitos ou mais do que todos vós, que todas as noites dormimos nas nossas camas, empernados com as mulheres.

A partir deste momento, nem mais um peixe, bacalhau ou doutra qualquer espécie, descarregarei aqui, já que os trabalhadores do mar sabem, tão bem como vós, governar as suas vidas.» E todos, calmamente, cabisbaixos, dispersaram com um ou outro a resmungar.

De Egas Salgueiro que se auto-afastou, não obstante continuasse de sua casa a superiormente comandar, porém muito doente, só uma vez mais o voltei a contactar, em 1977, em vésperas de me ausentar na compra dum cercador atuneiro, que viria a ser Rio Águeda e estava no Senegal.

Chamou-me a sua casa para falarmos de coisas de lana caprina sem qualquer interesse nem valor. Porém, à despedida, de olhos enxutos e voz firme, abraçou-me pela primeira vez em 32 anos de colaboração, a dizer-me: «Capitão, não me abandone os rapazes», referindo-se ao filho e ao genro, que eram parte do conselho de administração.

Quinze dias depois, quando regressei, tinha falecido e enterrado durante a minha ausência.