Memórias de um pescador – pp. 101-127.


VII. Retalhos de iniciado

Mas permitam-me que corrija ligeiramente o rumo que tenho vindo a seguir, para relembrar, só a mim, o Portugal de então, onde nasci e mais ou menos cresci e fui educado.

O reconhecimento de Roma à canonização do Condestável Nuno Alvares Pereira em 1918, conjugada às aparições de Fátima em 1917, em paralelo ao estado de alma do povo português, inculto e primário, ansioso e deprimido pela trágica derrocada de seus filhos na batalha de La Liz, criaram em nós uma situação e espírito onde, fora fácil a intervenção eclesiástica para a consolação e mentalização do povo que em chama ardente, facilmente contaminou quase todos.

Os que de espírito mais forte e independente tentaram resistir e fugir à manada, eivados pelos luzaréus e chama da República, acabada de instituir, foram facilmente injuriados e até apartados como marxistas, tratados e alcunhados de criminosos e fora de lei, oriundos da nova Rússia onde se negavam as religiões e a nossa Santa Madre Igreja, caluniadas de ópio do povo.

Era o tempo em que tudo na vida se resumia à aparência e propósito de encantar, quer na maneira melíflua de se mostrar como no modo oco e vazio de falar, poético e macio verdadeira antítese da brutal dureza do viver.

Trabalhar e produzir era coisa só própria dos galegos, de corda ao ombro, aguardando a bagagem dos viajantes, gente apenas interessante se pintada em paisagem edílica, a fazer contraste.

Fora neste meio ambiente social, que apareceu e se sobrelevou o corporativismo do Estado Novo, fingindo organizar quem trabalhava braçalmente, protegendo e mentalizando-os que o principal, estava em ser e viver como os nosso pais e avós, porque o moderno era coisa do diabo a criar divisões e afastamentos familiares.

Ninguém era ensinado a ser orgulhoso, a repudiar dádivas e esmolas, antes a ficar agradecido pelo menos momentaneamente à esportula, indiferentes a saber o motivo e razão da gorjeta. Pedir, solicitar e ficar atento e obrigado, fora o que sempre nos exigiram em letra de / 102 / forma e tinta preta, já que a azul era deselegante a faltar ao respeito.

Uma das grandes figuras e influente neste ambiente fora Pedro Teotónio Pereira, um jovem matemático e promissor, porém idealista, parecendo vir a ser alguém e como de facto, fora dos raros por quem Oliveira Salazar sentiu atracção e respeito. Depois de ter estado no estudo e trabalhos da Constituição de 1933, fora nomeado o primeiro Secretário de Estado das Corporações quando tinha trinta anos de idade.

Era determinado, inflexível e distante, modo pelo qual julgo se impunha.

Uma única vez o vi e comigo trocou algumas palavras, em St. John's, na Terra Nova, sendo embaixador em Washington. Pareceu-me calculista e distante, ao que as nossas matriarcas diziam senhor do seu nariz. Conversou ou melhor dito, trocou comigo algumas palavras afáveis talvez julgando-me ser um dos capitães dos navios de linha. Porém, com aproximação do chefe da assistência no mar à frota bacalhoeira, comandante Tavares de Almeida, com quem eu nunca simpatizei do seu ar paternalista, a meter-se na conversa e a tecer-me encómios a dizer ser eu um jovem capitão dos arrastões, sabedor e de boa têmpera, pelo que notei no embaixador uma espécie de afastamento. Aceito, no entanto, ter sido impressão minha, influenciado pelo que dele sabia ter-se sempre oposto ao incremento desta modalidade de pesca, única capaz por evoluída e rentável economicamente.

Este homem, enquanto fora ministro do comércio e indústria, fez a vida negra à Empresa de Pesca de Aveiro, para autorizar o arrastão Santa Princesa, já embandeirado com o pavilhão nacional, a integrar a frota de pesca do bacalhau.

Nos meios intelectuais e artísticos da sociedade lisboeta de então, onde se reuniam as ideias e anseios das políticas de fomento social, o prato do dia eram os trípticos recentemente encontrados, pintados nos séculos XV e XVI, quem teriam sido os seus autores e as personalidades e motivos neles pintados.

Todos se inclinavam serem grupos históricos de heróis que partiam às Descobertas a levar Portugal a dar novos mundos ao Mundo. Gente que se aglomerava em Belém, onde foram edificados os grandes símbolos desse Portugal, a todos nós contado. / 103 /

Entre esses sonhadores distinguia-se Pedro Teotónio Pereira apaixonado por esses idos de antanho, ansioso e sonhador da sua reedificação no mítico mundo depois de 1918, coisas que o império teceu e os homens deste Portugal triste e acima de tudo religioso, ressuscitaram depois de 1926.

Nada havia ao tempo aos nossos olhos que mais e melhor representasse essas memórias, que os veleiros da pesca do bacalhau e os típicos pescadores dos dóris, de camisa e ceroulas axadrezada e sueste na cabeça, vinda da orla miserável da Nação, vivendo junto ao oceano, que durante o estio nele labutava a sobreviver pescando, e no Inverno se internava terra dentro a mendigar «a esmola para condutar com um bocadinho de broa».

Mais do que uma vez ouvi, o respeitoso entusiasmo com que Henrique Tenreiro evocava a predilecção do Senhor Embaixador, como ele dizia ao falar de Teotónio Pereira, pelos lugres bacalhoeiros e os seus heróicos pescadores. E esta preferência pontificou em tudo ao redor da pesca longínqua do noroeste Atlântico, nem um palmo a desviar, a reconstituição do que ele imaginava ter-se passado seiscentos anos antes, na escura Idade Média.

Missa campal, homilia e toda a nobreza da época presente a dar força anímica aos heróis que partiam rumo ao desconhecido. Força e caricatura de quem não tinha a menor noção do ridículo nem tão pouco das obrigações governativas, no sentido do bem estar e evolução social, especialmente entre as duas guerras mundiais que, embora trazendo muito sofrimento, deram ao Mundo e a todas as nações, menos a Portugal, desenvolvimento científico e evolução tecnológica, no sentido do progresso social dos povos.

Para convencer os incautos, apregoava-se que tudo quanto se inova, é passo dado no caminho da perversão e depauperamento dos bons costumes e tradições familiares, dito por gente que passou a vida, de Bíblia em punho e terço na mão, na convicção de, ser a rezar e a apregoar a sua muita fé, que na terra se conquista o céu.

O comandante Tenreiro que só conheci vaga e superficialmente em curtos contactos por ele impostos anualmente quer / 104 / a nós capitães, como aos gerentes das empresas armadoras dos arrastões, era pessoa temperamental e intempestiva, de cultura mediana mas muito determinado a cumprir o que dizia e prometia.

Seria balofo a pretender mostrar o que não tinha? Ainda hoje julgo que não, embora todos nós lhe imputássemos a responsabilidade de tudo quanto se fazia. Era, vistas as coisas à distância, apenas o executor no mundo social do que lhe era mandado. Grande admirador de Pedro Teotónio Pereira que diziam ser seu padrinho e mentor, endeusava o Senhor Embaixador como ele próprio referia.

Admito a possibilidade de estar enganado pois como disse jamais tive com ele intimidades.

A primeira vez que contactei o Tenreiro fora em 1947, quando assumi o comando do Santa Joana, sem documentação pessoal qualificada e suficiente para a situação de comando, imposta por lei e levantada na Capitania do Douro para a minha matrícula.

Ao tempo já Henrique Tenreiro era quem tudo podia, na concessão de alcavalas a todos os oficiais de marinha a desempenhar cargos na Marinha Mercante, especialmente no sector das pescas; e, por isto, Egas Salgueiro sugeriu-me ir a Lisboa falar com ele.

Lá fui ao palácio do bacalhau, como era conhecido, fazendo-me anunciar, naquela balbúrdia, por capitão do Santa Joana. Quando pensava ir secar antes de ser recebido, não obstante o movimento, foi quase de imediato, cerca de cinco minutos depois introduzido no seu gabinete e ele a perguntar-me: «Então, pá, o que é que te traz por aqui?» Nunca me tinha visto para trato tão íntimo. Contei-lhe o que se passava e ele de imediato mandou ligar à Capitania do Douro. Feita, comigo ali junto dele logo começou: «Eh pá, estás aí a levantar-me problemas de papéis, quando sabes das dificuldades que há em arranjar gente capaz para chefiar esse tipo de pesca. Deixa-te de me criar problemas ao Santa Joana e ajuda-me!» E ali tudo ficou resolvido, com ele a dizer-me: «boa viagem, pá, e porta-te bem!»

Eu era um jovem de vinte e sete anos e não podia ter ficado senão com as melhores impressões do que me diziam chefão.

Durante cinco anos depois deste contacto com ele, estando / 105 / apenas uma vez por ano e em conjunto, nas reuniões que ele exigia e chamava de despedida e orientação aos capitães dos arrastões, realizadas nos primeiros dias de Janeiro, antes da partida de qualquer dos navios para a primeira viagem do ano, nada me despertou atenção.

Nestas reuniões estavam também obrigados os gerentes das empresas, chamados de armadores, assim como os directores das instituições ligadas às pescas, especialmente os que fossem oficiais de marinha, seus protegidos.

Nestes encontros era notória a sua atenção comigo, não que eu desse conta disso, quer por desprendimento ou por vaidade, nunca me apercebi.

Eram os meus camaradas capitães da EPA, entre os quais o meu próprio sogro, homem respeitável e respeitador que mo diziam.

De facto, Henrique Tenreiro cumprimentava-me com certa empatia e intimidade, que comigo não tinha, a sempre dizer: «Eh, pá, como estás tu, jovem camarada das lides do mar!», e mais tarde, passou a cumprimentar-me: «Eh campeão!!»

Quando, em 1938, entrei na Escola Náutica na rua do Arsenal, passei desde então a frequentar à noite a cave do Café Portugal, no Rossio, onde se juntavam os rapazes de Ílhavo e Aveiro, frequentando, ao tempo, o ensino superior em Lisboa. Entre muitos, lembro-me como o melhor de todos nós, o Cândido Russo, meu mentor, em casa de quem eu estava hospedado.

Filho de um casal de ilhavenses, com o pai marinheiro pescador nas actividades de Cabo Branco, que lhe foram fatais e onde perdeu uma perna.

O Cândido era rapaz ponderado e amigo dos seus amigos. Frequentava o Instituto Superior de Agronomia, no qual se licenciou.

Vivíamos na Calçada de Santos e éramos assíduos frequentadores, levados por ele e pelo pai, o senhor António, a uma célebre taberna, que havia no começo dessa calçada, onde posteriormente o nosso conterrâneo, Ângelo Ramalheira, construiu o Cinearte.

A taberna, característica da velha Lisboa, não me recordo se vendia vinho, pois nunca lá vi ninguém a comprá-lo e julgo que / 106 / o seu principal negócio era a venda de carvão. À porta, solto, havia um corvo que falava. Ali se juntava a fina flor dos fadistas, Alfredo Marceneiro, que, ao tempo, sendo operário dos Estaleiros da CUF, logo que acabava o trabalho, lá estava rente, a juntar-se à Berta Cardoso, Maria Albertina, Carlos Ramos, António Paninho, etc., etc.

O Cândido conhecia Lisboa como as palmas das suas mãos; e porque não tínhamos dinheiro, nem para a bica do café, corríamos Lisboa a gastar as solas dos sapatos. Nada tendo de fadista, era um apaixonado pelo fado e a ele devo muito do que conheci, não só do fado e fadistas, como de Lisboa.

Fora com ele que me iniciei na Cave do Café Portugal, onde apareciam também muitas raparigas judias, fugidas aos nazis, com quem exercitávamos o Esperanto, para nos entendermos, ao tempo linguagem muito em voga nos meios estudantis.

Entretanto, o curso da Escola Náutica chegara ao fim e eu, como a maior parte dos frequentadores daquele canto do Rossio, fomos à nossa vida profissional, quase todos para fora de Lisboa; e eu, para o mar de Cristo, como era hábito dizer-se neste nosso Ílhavo.

Como tão bem e acertadamente disse António Gedeão, na sua Pedra Filosofal, eu que era ainda rapaz, não obstante de pés bem assentes no chão, sonhava embarcar em navio de grande porte, carga ou passageiros, com vários oficiais, já com galões, a praticar e aprender com eles, a ser marinheiro.

Porém, o Mundo estava em guerra; e nós, embora nos dissessem sermos neutrais, por obra e graça de Oliveira Salazar e a Nossa Senhora de Fátima, também íamos sofrendo as suas consequências.

Nesta situação, eram raros os oficiais já experientes e com galões que apareciam e aceitavam embarcar, salvo algum velhote incapaz de em terra conseguir trabalho. E isto não obstante os salários terem crescido, alguns quase triplicado; porém nada os entusiasmava receosos dos submarinos alemães.

Assim, os praticantes acabados de sair da escola Náutica, embora totalmente alheios aos navios e à vida de bordo, eram logo, antes de embarcar, promovidos a lugares de chefia e tidos como oficiais experimentados. / 107 /

A mim fora-me imposto, sem o poder recusar, embarcar de oficial imediato num velho lugre que tinha sido da pesca do bacalhau, antigo "Rosita" e ao tempo a chamar-se "Islândia", em actividade nos transportes comerciais para as zonas ditas de guerra e que, há cerca de um mês, permanecia em Lisboa carregado de cevada, por falta de um oficial piloto que coadjuvasse o comandante, para sair a Génova, Itália.

O comandante era um velho capitão pescador, licenciado na pesca do bacalhau e doutorado nas lides dos dóris, um daqueles que, na sua aprendizagem, chorara lágrimas de sangue, mas só para dentro de si mesmo, com medo que Deus as visse e publicitasse.

Este homem, contrariamente a todos os outros capitães pescadores que conheci, por chefiarem, procuravam em autodidactismo, tornarem-se mais urbanos e atenciosos, só o Amândio Parracá, era o seu nome, não sendo violento, fora porém incapaz do menor esforço para se tornar sociável, respeitável e delicado.

Foram quarenta dias de viagem, por esse Mediterrâneo em guerra, de que confesso jamais me ter arrependido, antes, não obstante as dificuldades daquele convívio, ter de lá saído a conhecer-me melhor, quer às qualidades pessoais, como da minha capacidade de chefia e influência nos que me rodeiem. Quem me conheça não acredita ter sido à força nem a encolher-me e a deixar passar, que consegui o respeito do Amândio Parracá.

Tentou, não faço ideia porquê, obsequiar-me, pondo no meu camarote conservas variadas e vinho do Porto, que eu lhe agradeci, mas levei para a mesa de todos, à ré, por a ração diária do navio ser pouca e fraca.

Curiosamente, chegados a Lisboa e finda a viagem, depois de tudo acautelado e pronto, solicitei-lhe o desembarque. E de sua resposta: «Eh, sô piloto, gostei tanto de si e fiquei tão seu amigo e você quer ir-se embora?»

Fiz mais umas quantas viagens para o mesmo lado e portos, nos navios motores "Maria Joana" e "Alger", ainda de oficial imediato, para de seguida embarcar no "João Corte Real" de 2º piloto, em missões comerciais pelos portos do Canadá e Terra Nova, a carregar bacalhau seco para a Comissão Reguladora de Comércio do Bacalhau. / 108 /

Fora então que, dada a pasmaceira e pouco ou nenhum interesse pessoal por aquele tipo de viagens, além do que ali fui conhecendo de porto em porto, aliado ao facto de no mar andarmos vestidos de colete de salvação sempre enfiado no corpo, quer à mesa a comer como até a dormir, não fosse o diabo tecê-las e ficarmos aboiados, em resultado de algum tiro de submarino, decidi ser pescador e matricular-me no navio motor S. Rui à pesca do bacalhau.

Esta arte, como já anteriormente referi, não me agradou, quer pelo seu primitivismo e brutalidade, quer por a considerar imprópria de praticar no século XX, definhadora dos espíritos mais esclarecidos e cristalinos que ali se confinassem, era detestável.

Claro que como em tudo, sempre houve excepções, pois há flores mimosas e bem cheirosas nascidas nos pântanos e charcos. Porém jamais o hábito fez o monge e o contrário é que é verdadeiro e usual.

Em 1945, convidado a conhecer outra modalidade de pesca do mesmo bacalhau, matriculei-me de oficial imediato no arrastão Santa Joana, o primeiro navio deste tipo mandado construir pela Empresa de Pesca de Aveiro, onde quase tudo se passava, salvo a pesca propriamente dita, como nos navios da pesca artesanal, em razão dos capitães que os comandavam, terem vindo dos lugres.

Assim, chegados aos bancos da Terra Nova, o capitão Francisco Calão, homem corpulento e voluntarioso, procurou a chamada beirada de leste, a atingir os 175 a 200 metros de profundidade. Atravessou o navio à ondulação e ao vento e largou a rede no mar, numa manobra curiosa, sem que eu lhe fizesse quaisquer perguntas nem ele a mim explicações. Era uma rotina para ele, que eu comecei a notar como era executada e as razões por que assim era efectuada.

Eu sentia necessidade urgente em aprender e me exercitar, para coadjuvar o comandante do navio, pois o trabalho na ponte fora dividido em dois quartos de seis horas cada, sendo o do capitão acompanhado pelo segundo piloto, das seis da manhã e das seis da tarde até ao meio dia e à meia noite, e o quarto do imediato, auxiliado por um marinheiro experiente nesse trabalho, / 109 / da meia noite às seis e do meio dia às dezoito horas.

Tínhamos chegado manhã cedo aos pesqueiros, e à hora de almoço com a rede na água arrastando, o capitão Calão desceu à sala de jantar, depois de me entregar a condução do navio, dizendo: «deixa ir para o norte nas sondas 175 a 200 metros de profundidade e, no final de uma hora de arrasto, dás a volta por bombordo e vens ao rumo oposto, procurando as mesmas sondas. O aparelho de sondagem era de faísca sobre o papel onde registava a respectiva profundidade, convertida automaticamente em metros, pelo tempo e demora entre o sinal de emissão e a sua recepção.

A sonda era ligada de três em três minutos, a dar-lhe o menos trabalho possível, receosos que se avariasse, além de obviamente se economizar o papel.

Por outro lado, vivíamos num tempo em que os supostos especialistas em ciências naturais, os biólogos, classificavam o gadus morua como espécie muito voraz, migratória, e pela sua constituição molecular, incapaz de suportar grandes pressões, e a sua vivência não ia além dos 200 metros de profundidade.

Esta teoria criara nos pescadores do arrasto, os capitães seus únicos responsáveis na modalidade, o conceito e ideia de que as profundidades superiores aos 200 metros, serem uma espécie de inferno onde o aparelho de pesca seria perigosíssimo cair, por terrivelmente difícil virá-lo para bordo.

Esta ideia pontificava em todo o âmbito desta actividade, pelo menos de portugueses. Perder uma rede de pesca era uma tragédia, a dar motivo de conversa e lástima para semanas. Do que recordo quando me iniciei era, se o aparelho pegasse no fundo, abriam-se as brecas do guincho, parava-se a máquina propulsora e só quando os cabos reais deixavam de correr, as bobinas serem engrenadas e os cabos virados até o navio e rede ficarem na perpendicular, e o aparelho preso no fundo do mar. Daqui em diante, os cabos reais eram virados cada um à sua vez, até que o elemento do aparelho que estava preso, se soltasse ou partisse, com a incha da ondulação.

Partir a rede propriamente dita era coisa de somenos importância. Todos os serviços paravam para ajudar os redeiros chefiados pelo mestre de redes, usualmente murtoseiro, que no / 110 / convés era quem punha e dispunha, pois ali nem o capitão metia o bedelho.

Ora o capitão Chico, como passei a tratá-lo quando se ausentava da ponte do comando, no máximo por duas horas, sempre me ordenava pormenorizadamente como eu devia proceder e manobrar, o que eu rigorosamente cumpria, sem no entanto resultar, quer nas rondas como na pescaria que previa, pois ao tempo, nem ele, nem eu, nem ninguém tinha a menor noção das posições geográficas onde estávamos, nem obviamente as respectivas profundidades.

Neste ritmo de trabalho, as horas iam-se sucedendo, com pesca medíocre, pois quando virávamos dois sacos, respirava-se de satisfação, até que, chegada a meia noite, o capitão parava o navio atravessado à ondulação e à deriva, para descer ao camarote e dormir. A ordem por ele dada era para ser tocada a alvorada às quatro horas da madrugada, inclusive para ele, lançar-se a rede ao mar para pescar.

Alerta em cima, a garantir a vivência a bordo, ficava o oficial imediato e quatro vigias, de quarto em cima.

Durante os dois primeiros dias, depois da chegada aos pesqueiros, a vida de todos, incluindo a minha, decorreram assim, considerando, julgava eu, porém erradamente, a minha inexperiência de tudo quanto era pesca e sua prática de manobrar. Por assim considerar, ao terceiro dia, solicitei ao comandante para não parar o navio e respectiva pesca, à meia noite, por eu me considerar apto já, assumir as responsabilidades inerentes ao que se iria passar no meu quarto em cima. Ele ainda hesitou, a ficar meio pasmado, contra o seu temperamento irascível e impetuoso de só impor e mandar, mas simpaticamente afável e cordato, disse-me que sim.

Só posteriormente, depois de se ter normalizado o hábito de não parar a pesca à meia noite, vim a saber que tal paragem, era apenas simples tradição, à semelhança do que se passava nos navios de linha, em que o peixe durante a noite proporcionava apenas pescas muito pobres.

Isto obviamente, dera azo a me iniciar precocemente na chefia dum processo onde, embora inexperiente ou talvez por isso, notava precisar de remodelado a introduzir-lhe mais risco / 111 / e aventura, abandonando o ramerrão da tibieza e preconceitos. E possivelmente por irreflexão, desassombro ou temperamento intemerato, troquei apenas as voltas ao processo de pescar bacalhau pelo método de arrasto, e aumentei-lhe o rendimento.

Tudo isto interligado, criara um impacto tal que, tendo o Chico Calão sido substituído pelo José Bela, que ao tempo era alguns vinte anos mais velho do que eu, este impôs à gerência da EPA, só aceitar o comando do Santa Joana se o imediato do navio ali se mantivesse.

Isto resultou dum convite que a Pescal, de Lisboa, me formulara para assumir o comando do seu arrastão Pádua, em construção em Aberdeen, Escócia, o que levara o gerente da EPA a contactar-me e dizer-me contar comigo para no ano seguinte assumir o comando do Santa Joana, além de nesse mesmo ano prometer ser bem compensado.

Era a promessa das gratificações tão peculiares no tecido empresarial português. Eu era ainda jovem imberbe e as Marias iam com os demais. Contudo ali o prometido era não só devido como concretizado.

Ora não só por isto, como por subentender que o curso da vida, como o seu ritmo, não dependerem de programas nem tão pouco dos nossos desejos, deixei-me ficar onde estava a ver o tempo passar e a pensar que, na vida de cada um, haver mais marés do que marinheiros.

Neste filosofar, fui ficando onde comecei, isto é, na EPA, cerca de trinta anos a pescar bacalhau, para depois, por quase outro tanto tempo, a servi-la administrativamente.

No entanto, foi a pescar que aprendi a ser homem, profissional, e a ganhar dinheiro, diga-se em abono da verdade.

Nesta segunda fase, continuei empregado por conta doutrem, por não ter querido nunca ser patrão, em função de capitais investidos onde trabalhava.

Ordenar, mandei sempre em tudo o que havia à minha ordem e redor, por isto cometi erros e fiz asneiras do que assumo a responsabilidade.

Mas, voltando ao canto do Rossio, próximo do Café Portugal, onde os antigos frequentadores da sua Cave, sempre que passavam ou estavam em Lisboa, ali iam encontrar velhos / 112 / conhecidos e amigos, ainda mesmo depois do dito café ter sido comprado por um italiano que pretendeu encerrá-lo, mas que a CML não deixou e na polémica entre as partes, o Café continuou aberto, mas às moscas.

Ora em 1953, quando comandava o arrastão Santo André, decidi desembarcar para de novo frequentar a Escola Náutica, ainda na rua do Arsenal, a fazer o seu complementar e por isto, em Lisboa, passar mais assiduamente no célebre canto do Rossio, contíguo ao largo D. João da Câmara.

Das lindas e afáveis judias de há 14 anos antes, por há muito tempo terminada a guerra, nem vestígios, pois todas tinham emigrado para as Américas desde o Canadá à Patagónia.

Este Santo André, construído na Holanda em 1948, é actualmente o único arrastão lateral ou clássico ainda existente, espécie de amostra de cera a figurar de arrastão e amarrado na Ria de Aveiro, por oferenda mecenática, não muito clara, ao Museu Marítimo.

Nesses idos de cinquenta e três, decidi afastar-me temporariamente, não apenas para cursar a Náutica, como para fazer uma paragem à vivência dura, absorvente e cristalizadora, das pescas, em especial a longínqua.

Naquele canto, passei a ser um frequentador, conversando sobre tudo e todos, em especial naquele tempo, a dizermos mal do regime político do Estado Novo.

Curiosamente da PIDE, que se contavam e contam cobras e lagartos que eu tenho a certeza ser verdade e ter havido perseguições, prisões e maus tratos, para muito boa gente, especialmente intelectuais e activistas, porém para mim, os "pides" foram uns homenzinhos que quando entravam no porto de Lisboa vinham a bordo do navio, solicitar uma lista da tripulação e a quem eu dava uma gorjeta igual a que dava ao homem da Alfândega e etc, que com os cem mil reis que lhes dava, saíam às arrecuas fazendo mesuras de agradecidos. De quando em vez, lá aparecia algum mais atrevido que, com os cem mil reis na mão, solicitava um pacote de cigarros, que eu mandava o criado de bordo dar, ou não dar, conforme os modos de pedir do pide.

Nunca fui ameaçado ou preso, nem me consta que camaradas / 113 / meus tenham sofrido perseguições, talvez por nos considerarem pobres diabos, tutelados pelo Tenreiro.

Lembro-me aí, cerca de 1937, de pescadores dos navios de linha, que, por se recusarem a embarcar nos navios que o Grémio dos Armadores lhes tinha destinado, foram presos e levados para o quartel de marinha em Alcântara, onde até a alguns raparam o cabelo; mas isto fora obra da policia marítima, que desta maneira  nada cívica e violenta, conseguira impor o que os armadores decidiram e determinaram.

Ora uma tarde, quando ali no Rossio conversava, e até em animada discussão, possivelmente coisas de lana caprina, eis que o rodado dum automóvel em derrapagem chia fortemente ali perto de nós. Todos à uma nos virámos a saber o motivo, se colisão ou atropelamento. Era um carro sem grande aspecto, porém conduzido por chaufeur fardado. Do lado direito deste abre-se a porta e sai de lá alguém de braço no ar, em pleno Rossio, a bradar: «Oh grande São Marcos, campeão dos pescadores!!»

De imediato reconheci a figura e a voz meia nasalada de Henrique Tenreiro. Atónito e pasmado, com dificuldade em compreender a situação, aproximei-me a cumprimentá-lo. Porém notei ele dar mais atenção ao público que por ali estava parado ou passava ao redor, do que a mim; e logo vislumbrei, pois nunca fui obtuso graças a Deus, como dizia a minha mãe, que aquilo seria pura cena histriónica para inglês ver, a parecer popular. Contudo, não reagi, pois embora tendo essa noção, aprendi que não devermos reagir só por simples impressões ou então, sei lá, pelo meu habitual desassombro, não fujo a declará-lo, talvez até por vaidade momentânea de na cena eu ser parte importante da comédia.

Aproximei-me dele a abraçar-me repetindo: «grande campeão dos pescadores do bacalhau» sem eu, nada condizente ao que ele pretendia, em vez das ceroulas e camisa de baeta axadrezada e sueste na cabeça, estar vestido de terno de tecido dito tropical, bem vincado, gravata de seda e chapéu de bronzaline, que era o rigor da moda então.

Enfim, enfiei-lhe o braço a dizer-lhe algumas baboseiras, já que eu não sou santo de pau, e levei-o até ao carro, cuja porta continuava escancarada. Entrou, fechei-lha e ele à janela, / 114 / gesticulando, como dois amigos íntimos em encontro fortuito.

Voltei ao grupo, com uns a elogiar-me pelo que tinham observado, não obstante nenhum deles ser do mar, enquanto outros silenciosos, sem a boca abrir.

Ali tudo acabado, cada um fora ao seu destino e eu intimamente vaidoso, e porque não? Mas a cismar no porquê da cena do Tenreiro.

É bem certo que presunção e água benta, pelo menos à entrada das igrejas, cada um toma quanta quer. Mas eu não sou frequentador nem devoto, antes homem sem fé.

A propósito de Henrique Tenreiro me denominar de campeão, aconteceu-me um dia, estando na Costa Nova, entre duas viagens com o Santo André à descarga na Gafanha, e eu em casa de calção e nu da cinta para cima, preparado a ir para a borda do mar ao banho, quando alguém bate à porta e eu tal como estava fui abrir.

Era um meu conhecido, proprietário de navios da pesca do bacalhau, impecavelmente vestido e perfumado a sentir-se à distância.

Inquiriu-me: «dá licença?» Escancarei-lhe a porta e foi entrando. Porém, enquanto isto, foi metendo a mão ao bolso lateral do casaco e dali tirou um papel que me estendeu, ao mesmo tempo que com objectividade e certeza dizia: «quero que venha para a minha empresa!»

De olhos semicerrados a denunciar desprezo, olhei e vi ser um cheque de banco de mil contos, isto é, mais do que eu ganhava em dois anos e quatro viagens. «Quer visado ou acha pouco» – diz ele! «Quanto quer?» – pergunta.

Eu era um jovem como todos os outros, antes e depois de mim, presunçoso a julgar-me o centro do mundo e como tal respondi-lhe: «julgo não ter vindo à minha casa com o propósito de me insultar. Na feira dos treze é que os porcos são comprados a arroubar.»

Eu gostava que viesse trabalhar comigo, pois não se ia dar mal, disse ainda. Depois de lhe agradecer a visita e o convite, acompanhei-o à porta e saiu.

Com algumas cenas destas e nos moldes das que acabo de referir, mais o que me contavam outros, intimamente integrado / 115 / no que se passava no mundo dos Organismos e Corporativos das Pescas, tal como quando o José de Oliveira se despediu, ou fora forçado a fazê-lo, da chefia dos serviços de armamento da SNAB, onde havia um dos administradores que teimava em me convidar para esse lugar, mas ao que Henrique Tenreiro firmemente se opôs, dizendo não querer mais chatices com Egas Salgueiro, do que as que já tinha!

Eu sorria ao ouvir estas histórias, porém silencioso, sem nada dizer, pois seria a última coisa que eu aceitaria, por sempre e só ter sabido viver com frontalidade e verdade, e naquele meio social era tudo fantasia, fingimento e mentira.

Haverá quem me julgue pretensioso. Porém, na minha idade e maneira de ser e de pensar, já só sorrio, não de escárnio mas de bonomia.

Ora Henrique Tenreiro sempre me tratou com respeito e até com alguma deferência, enaltecendo-me a cumprimentar: «Então, pá, com vai o nosso campeão?»

Não obstante, tive sempre a minha cabeça bem ligada ao tronco e os pés bem assentes no chão duro e frio, para me deixar embalar por ditos, que mais depressa do que se julga, leva-os o vento.

Nenhum pescador ou outrem que trabalhe no duro, sem horários e com ganhos à percentagem sobre o que produz, se envaidece ou se deixa entontecer com ditos de quem vive só de artifícios e especulações sociopolíticas.

Mas já agora que estou com a mão na massa e vem a talhe de foice, não obstante jamais tenha ouvido, nem mesmo nas reuniões com Henrique Tenreiro, alguém censurar qualquer dos meus camaradas, capitães dos arrastões, deixem-me que seja eu agora e aqui a fazê-lo, por nenhum deles nunca ter reagido aos desmandos dos empresários, a quem submissos chamavam de patrões.

Fora o caso da sua anuência à transformação das duas viagens anuais em uma, cuja duração passou de 150 dias no mar, para 330 e até 350 dias consecutivos, isto é, saindo de Lisboa nos princípios de Janeiro para só regressar em vésperas de Natal. Isto era não só um atentado à integridade intelectual e neuropata do pescador que nesta modalidade é apenas, o capitão pescador / 116 / pois todos os outros tripulantes eram e julgo ainda serem, seus meros colaboradores.

Com a diminuição da produtividade de pesca, quer devido ao que já anteriormente expus, como pelo abaixamento da reprodução dos gadídeos, devida à sua fuga para paragens que lhe não eram habituais, além da sobrepesca, que também admito, para não fugir à opinião geral, resultou obviamente um abaixamento no rendimento, em relação ao que antes era habitual.

Fora a SNAB, sendo a maior de todas as empresas de pesca de bacalhau, que unilateralmente, sem qualquer consulta ao pessoal de bordo, nem deste haver qualquer reacção a se opor, que pôs fim às duas viagens anuais de 150 dias de duração cada uma, substituindo-as por uma só, a durar quase o ano inteiro, de modo a os arrastões se manterem nos bancos até os sobrecarregarem perigosa e criminosamente, com 20.000 quintais de bacalhau salgado, o que correspondia a 1.200 toneladas de peixe à descarga em Portugal, mais 150 toneladas de sal de ressalga e salmoura, num total de 1350 a 1400 toneladas, a pôr em risco os navios e suas tripulações.

É claro que tal coisa só fora possível com anuência servil dos capitães que aceitavam, sem a menor oposição aos que eles denominavam de patrões, e estes a si próprios de armadores, a premissa de todos os arrastões sem excepção comportarem 20.000 quintais de bacalhau salgado que nas suas simplísticas contas, eram 1200 toneladas.

Esta falta de armadores qualificados como tais e a verdadeira noção do que é o mar e especialmente navios, sua função especifica para a modalidade a explorar, levou-os, dentro das facilidades que o meio social lhe proporcionava, à conclusão de, mais valer um pássaro na mão do que dois a voar.

Ora, se duas viagens no ano resultassem em 25.000 ou mesmo 26.000 quintais de bacalhau, porque não fazer uma só viagem nesse mesmo ano, com 20.000 quintais?

Este fogo, atiçado na SNAB, logo se estendeu a todas as empresas portuguesas, sem a reacção de ninguém nem de nenhum capitão, cuja condição de profissional e único pescador nos navios, impunha para eficientemente o ser, de condições mínimas para trabalhar. / 117 /

Isto recorda-me uma passagem havida entre mim e Egas Salgueiro, na Gafanha, à minha chegada no Santo André, em Junho de 1962, com cerca de 900 toneladas de bacalhau e ele me inquirir, o que pensava eu sobre os arrastões fazerem apenas uma viagem anualmente, com 20.000 quintais? E isto quando a própria EPA, à imitação da SNAB e de todas as outras empresas de pesca, já assim procediam, à excepção do Santo André do meu comando.

Pacientemente fui-lhe expondo o que já por outras vezes tinha feito, dizendo-lhe que apenas um navio da frota portuguesa, o David Melgueiro, tinha condições para carregar 20.000 quintais de bacalhau pescados por ele próprio, na medida em que sendo o porte de todos os outros no máximo de 1200 toneladas, de bacalhau salgado, mais a respectiva ressalga e salmouras de 150 a 200 toneladas mais 100 de gasóleo e óleos, mais cinquenta de água potável, mantimentos, sobressalentes e tripulantes, o que totaliza cerca de 1500 toneladas a pôr em risco o navio e respectiva tripulação. Ao que ele, meio em surdina respondeu: «contudo, quase todos o fazem!» A isto não o deixei mais nada acrescentar, por energicamente o advertir: «Se alguma vez tal coisa pensar, para o navio do meu comando, avise-me para eu não seguir viagem. No entanto, se em tal coisa pensar depois de eu ter saído de Lisboa e já estar a pescar, fica desde já avisado que, ao fim de 150 dias de viagem, independentemente da quantidade de pescado que o navio possa ter, estarei na barra de Aveiro para lho entregar.»

Ambos sorridentes, cumprimentamo-nos com à afabilidade do costume e cada um foi à sua vida.

Jamais senti as nefastas consequências das desgastantes e terríveis longas viagens à pesca do bacalhau na modalidade de arrasto, em que se perdem as energias e o entusiasmo que tem de caracterizar o pescador, para em cada hora e dia, mirar e remirar todos os pormenores que fazem a pesca.

Foram essas longas viagens que transformaram os capitães pescadores em simples comandantes dos seus navios, dividindo a actividade, problemas e pormenores da pesca, com os seus oficiais imediatos que, de seis em seis horas, mudavam de responsável descendo ao camarote a se alhear / 118 / totalmente da principal actividade do navio.

Esta transformação resultara, ainda no tempo em que «mar liberum est», pelo medíocre critério empresarial de mais valer um pássaro na mão do que dois a voar.

Também não esqueço que o homem, e ainda bem, com a evolução social, instrução e cultura, já não aceita o peso e o penar das actividades primárias e a pesca do bacalhau, tal como a vivi, só tinha resultados e produtividade de bom nível, com muito sacrifício e luta.

Dessas longas viagens, frustradoras do espírito lutador do pescador, houve alguns capitães que, não obstante sofrerem as suas nefastas consequências, procuravam reagir, porém sem saber como, não aceitando passar de pescadores a simples comandantes de navios.

Entre eles contava-se o José de Oliveira Rocha, meu camarada da EPA, homem de personalidade vincada, porém incapaz de reagir aos ditames de Egas Salgueiro.

Ele em especial, mas também outros camaradas mais novos da mesma empresa que connosco tinham aprendido a ser pescadores, não vislumbrando outro processo de pôr cobro à situação que os atingia, solicitavam-me para eu encabeçar uma comissão constituída por capitães da EPA, a fim de nos avistarmos com Henrique Tenreiro, homem que tudo mandava e podia nas pescas portuguesas, a expor-lhe o problema da degradação da produtividade dos arrastões devida à longevidade das viagens.

Ora virtude que nunca tive foi a ingenuidade que por vezes faz falta. Levar a vida e tudo sempre e só a sério, é pesado demais para qualquer homem.

Assim, por mais que lhes explicasse, especialmente ao Zé Rocha, que o Tenreiro era exclusivamente político e como tal desinteressado das coisas em pormenor, eficientes ou não, mas apenas de festins com bandeiras em arco a ficarem para além da fotografia também para a história, que jamais contou a verdade factual, mas apenas a perspectiva de cada um que a conta.

Fora então que ele me falou com vistas ao que pretendiam, fazer em Ílhavo uma festa de homenagem ao Tenreiro, à imitação do que já antes os capitães dos navios de linha, por duas ou três vezes tinham feito quando precisaram do seu apoio para vencer / 119 / a resistência dos armadores ao que pretendiam.

Eu era o presidente do Sindicato dos Capitães, Oficiais Náuticos e Radiotelegrafistas da Marinha Mercante do distrito de Aveiro, com sede em Ílhavo, por herança do falecido Manuel Bela, que o tinha sido um carrada de anos, pelo que não podia fugir ao que me era solicitado, não obstante nenhum deles em actividade, desde há muito não pagar as suas cotas, diga-se em abono da verdade, talvez mais por o sindicato não ter quem as cobrasse, do que eles não as irem pagar, o que fica em desconto dos seus pecados.

Nesta altura da questão, por mais que lhes explicasse ser desta vez tudo diferente, por o mau da fita ser o próprio Tenreiro, que tudo manda na SNAB, onde as nefastas longas viagens foram inventadas e impostas às suas tripulações, não os convenci. Além disto, o homem a quem pretendíamos pedir era acima de tudo um político a ver as coisas pela rama e aparência, pouco se importando com o intrínseco das questões, que são deixadas aos técnicos quando os há, quase sempre preenchidos por afilhados, normalmente alheios às questões em análise.

Porém, porque era presidente do sindicato ainda que só in nomine, tinha de fazer alguma coisa nesse sentido, não obstante eu continuasse a dormir por semanas e meses, vestido no sofá da casa de navegação, junto à ponte do comando, sempre pronto e acompanhar a minha pesca.

Ingenuamente, eu que nunca necessitei que outros resolvessem os meus problemas, peguei no telefone a falar com o Ramos de Sousa, delegado do Sindicato Nacional, em Lisboa, homem respeitável e respeitador, capitão da Marinha Mercante e licenciado em Direito, a convidá-lo para um almoço, afim de conversarmos sobre questões laborais.

No dito almoço, depois de lhe pôr a questão de uma audiência com Henrique Tenreiro, responde-me de imediato e quase intempestivo: para esse lado, sozinho, não darei um passo; porém, consigo, irei a pé ao fim do mundo. Assim ficara combinado o Sindicato Nacional solicitar ao delegado do governo junto dos organismos de pesca, uma audiência com fins do estudo de questões laborais, que entretanto por mencionar os nomes do Ramos de Sousa e meu, imediatamente e a curto prazo fora marcada. / 120 /

No dia aprazado, lá fomos ao Tenreiro, que nos recebeu a cumprimentar-me efusivamente como se ali estivéssemos apenas os dois: «Eh, pá, grande campeão, como estás tu?» Para o lado do Ramos de Sousa, que estava de mão estendida para o cumprimentar, atirou-lhe a mão sem o olhar, e a dizer-me: «senta-te, pá», virado só para mim, parecendo ostensiva e malcriadamente tentar diminui-lo. Não sei a razão disto, pois o Ramos de Sousa, sendo um homem impecável e correctíssimo, era também situacionista.

Displicente, depois de nos sentarmos, diz-me como se ali estivéssemos os dois sozinhos, então pá diz lá o que me queres.

Mais ou menos, talvez mais sucintamente, passei a criticar o que se estava a fazer com os arrastões e as suas intermináveis viagens, causadoras da diminuição da sua produtividade em prejuízo de economia nacional e, principalmente, de todos os seus tripulantes. Só por isso vinha pedir-lhe que passasse para o nosso lado, na intenção de fomentar a produtividade dos navios. Entretanto, gostaríamos de o homenagear numa sua visita a Ílhavo, afim de lhe manifestar o nosso apreço.

Recordo-me, enquanto fui fazendo este convite, de sentir vergonha de mim próprio por estar tentando trocar uma situação de interesse público por uma festa com foguetório.

Logo que acabei, disse-me displicentemente, como a despachar-nos, o que me magoou intimamente, pois embora desde o princípio daquela fantochada já previsse aquilo não levar a nada e ainda por cima eu pensar que se estivesse no lugar dele daria uma corrida a quem me propusesse tal festa de homenagem para conseguir o que se pretendia.

Deixa-me ficar o teu problema, que vou pensar nele, contudo acrescentou: se todos aqueles gajos fossem como tu, em vez dessas longas viagens, fariam anualmente duas e carregados. Sobre a vossa festa em Ílhavo, que desde já agradeço a lembrança e gesto, irei mandar para lá um funcionário para tratar de tudo.

Levantou-se e abraçou-me, como se mais ninguém estivesse presente e a fugir ostensivamente ao Ramos de Sousa que, delicado, como delegado do Sindicato Nacional, lhe estendia a mão, agradecendo a audiência, ao que só o meu gesto decidido e / 121 / apaziguador de aproximação, o levou a estender a mão, porém sem o olhar nem nada responder.

Curiosamente, nunca soube, por não perguntar, a razão desta aversão do Tenreiro ao Ramos de Sousa.

Tempos depois daquela reunião em Lisboa, chega a Ílhavo um emissário do delegado do governo, chefe da secretaria de grémio do bacalhau, um tal Águas, espécie de cão de fila que, armado de ministro plenipotenciário, logo começou a programar, sem com ninguém contactar, e a levar para a frente os preparativos para a homenagem. A sua primeira acção fora redigir uma convocatória em nome de uma suposta comissão, encabeçada por mim, seguida de todos os capitães dos navios da EPA, por ao tempo o Tenreiro andar de candeias às avessas com Egas Salgueiro, impondo com ameaças a presença de todos ligados ao bacalhau e sua pesca, em Ílhavo, numa homenagem a S. Ex.ª, o Senhor Delegado do Governo.

Tenho a impressão que este desmando, à semelhança de tantos outros ocorridos na Vila Maruja, foi por conhecerem a nossa habitual indiferença ao que social e colectivamente nos acontece e atinge. Fora a vivência no mar, monótona e sempre igual que tornou os ílhavos apáticos e indiferentes a tudo que nos rodeia. Não por deixarmos o futuro nas mãos de Deus, como alguns julgam e verberam, mas por um viver monótono e ritmado, de casa para o navio e daqui para casa, sem mutações impostas pela própria necessidade de raciocinar e reagir.

O mar, na sua omnipresença e omnipotência, tornou os ílhavos indiferentes ao que lhes possa acontecer social e colectivamente.

Não quero de modo nenhum caracterizar seja quem for, mas apenas a mim próprio, que aqui nasci e vivi, só me ausentando para passar trinta anos da minha juventude sobre o Oceano.

Obviamente que à convocatória do Águas, encolhi os ombros com a indiferença de não me aquecer nem arrefecer. Já o mesmo porém não acontecera quando um dia me informou, embora com um certo acanhamento, ter redigido e pronto o discurso que eu teria de ler no banquete que encerraria a homenagem. Levantei-lhe os olhos, não obstante ele ser mais alto do que eu, a dizer-lhe: «você tem obrigação de saber que eu não sou um pau mandado e pobre diabo como tu!» A desculpar-se da sua única intenção de / 122 / me tirar o trabalho de o escrever, deve ter sorrido para dentro a pensar, este tem a mania de que é teso, e estes são os mais fáceis de levar.

Um outro pormenor dos preparativos da homenagem que a minha suposta tesura de lobo do mar não aceitou, fora o facto de, por ser eu a encabeçar a comissão, ter de ir a casa do Arcebispo de Évora, D. Manuel Trindade Salgueiro, convidá-lo a presidir à homenagem, que eu sabia ele já estar em Ílhavo, vindo do Alentejo para esse fim. Incomodava-me tanta teatralidade e cenas para que fui empurrado, que sabia resultarem em coisa nenhuma.

Nada me movia contra o arcebispo que na família continuou durante muito tempo, especialmente pelos que com ele conviveram na adolescência, a ser o padre Trindade. Porém o seu ar seráfico de palavra fluente e encantadora, de santo que eu sabia não ser, não me atraía e muito menos conquistava o modo de ser do pescador longínquo que eu então era.

Mas por fazer parte da minha vida e memórias, permitam-me que de novo fale do clã São Marcos, de quem herdei a propensão para a pesca e cuja história apenas sei de ouvida, por contada através de gerações, inevitavelmente reduzida ou aumentada dos pontos que cada um lhe foi acrescentando.

O meu bisavô, Alexandre São Marcos, que não conheci nem dele sei mais do que, sendo pai de meu avô Cristóvão, pai de meu pai, teve também mais cinco filhas, uma das quais casando com um Nuno, os dois filhos deste casal passaram a ser, a mais velha Maria Nuno mas por ser cachopa foi Maria Nuna e o rapaz mais novo Manuel São Marcos Nuno, que só vim a conhecer já idoso, por Ti Cordoeiro, que era a sua profissão.

Ora a Maria Nuna, que vivia com a sua mãe junto ao clã na Fontoura, fez-se mulher e casou com um rapaz, marinheiro de navios de arte redonda, de sobrenome Salgueiro que, como ainda hoje é uso e costume nesta terra, embora sendo de Espinheiro, veio com ela viver na Fontoura, para uma casinha que fazia do lado sul esquina para um beco e do norte com a casa da «ti Vassoura e do ti Pauzinho», pais da professora Helena Rosa Mano, da mesma idade e companheira de infância do que viria a ser arcebispo de Évora. / 123 /

Sem o poder confirmar, é minha impressão ter o Manuel Trindade nascido sem seu pai o ver, isto é, durante a viagem em que desapareceu no mar, com o navio e toda a tripulação.

E muito embora estas tragédias fossem ao tempo vulgares e correntias com os navios de vela, no mar, mas sabendo que o marinheiro Manuel Salgueiro, nascido e vivido em Espinheiro até casar, onde também viviam o armador Francisco Machado e seu genro Manuel Camarão, capitão do Aurora do Vouga, desaparecido no mar, em fins de Agosto de 1898, não posso deixar de imaginar que o pai do futuro arcebispo de Évora seria um dos tripulantes deste iate.

Então, como era uso e costume, alguém deve ter pichado a negro uma grande cruz na porta da rua da casa de Maria Nuna, por ser nova e viúva, e ela, sacudida a palha da enxerga onde dormira com o seu rico homem, agora por sua intenção como era hábito, de penitente a dormir sobre a manta de farrapos no duro e frio chão coberto de juncos.

Passou tormentos para criar o seu menino, embora ajudada pelo clã. Ela que não era nem inventiva nem muito mexida, durante a noite fazia flores de papel e peninhas coloridas para, pela madrugada ir vendê-las às feiras ao redor.

Pelos caminhos, de cesto à cabeça, logo que avistava algum almocreve montado e adormecido no burro, que ela pelo andar dos anos reconhecia seguir para a mesma feira, agarrava-se ao rabo do macho, que a obrigava a acelerar o passo, ao compasso com o burro, seguindo aos saltitos e a dormitar até chegar à feira.

O Manuel Trindade fora uma criança da rua como todos os outros, mas deles diferente no seu ar vivo e esperto, precocemente ponderado e atencioso e até interessado nas pequenas leituras.

Aconteceu-lhe porém, certo dia, andaria ele pelos seus sete anos de idade, no período de S. João, quando tinha no bolso dos calções duas bombinhas, rebentarem simultaneamente, deixando a criança prostrada na rua e gravemente ferida.

Aos gritos do menino e do mulherio da vizinhança que tudo quanto fazia era gritar, acudiu a Maria do Casal, mulher rara na acção e expediente como nenhuma outra que, atracando a / 124 / si a criança corre com ele à rua Direita, à farmácia do Manuel Cunha, para o socorrer e tratar.

Este, não só tratou a criança como, por conhecer o pouco expediente da mãe, ao contrário da Maria do Casal, logo a instruiu do que teria de fazer ao menino para o cuidar, aviando os remédios por conta desta, já que ele sabia, a Maria Nuna sendo viúva, não lhos pagaria.

Ora a Maria do Casal, que nunca foi mulher de dúvidas nem de ficar à espera de orientações, foi à sua casa em busca de um lençol de linho e levou o menino para a Fontoura, onde se instalou a tratar do Trindadinho, até por a Maria Nuna estar ausente na feira.

Esfiapando o linho do lençol, foi com eles cobrindo as profundas queimaduras nas virilhas e sexo da criança, protegidos com folhas de jarros, ali permanecendo mesmo depois da chegada da Nuna a casa, por esta outra coisa não saber fazer, senão gritar e rezar pelo seu rico menino.

Entretanto a criança, com os cuidados e desvelo da Ti Maria, curou-se e tudo foi esquecido, menos o enorme e profundo respeito de Manuel Trindade pela Maria do Casal, até mesmo depois de já ser alguém na vida social, em que ela o massacrava com pedidos de toda a espécie e feitio para infelizes a necessitarem de protecção, como ele já tinha precisado também.

Curiosamente, certo dia, em Ílhavo, já ele era D. Manuel e figura de impressionar auditórios, num grupinho com duas mulheres do seu tempo de infância e garotadas, em amena conversa com ele, uma delas, sua prima pelos São Marcos, rapariga trintona, morena e exuberante em tudo, no seu ar, sorriso e palavras, lembrou-lhe, insinuando ter ele ido para o seminário devido às queimaduras do incidente que o atingira.

À insinuação da desbocada e pouco recatada senhora, a figura frágil e delicada do bispo aparecer quase mítica, levanta o braço de punho cerrado e dá um enorme murro em cima da mesa que os mantinha ao redor, a dizer veemente: «eu sou um homem capaz e vigoroso como qualquer outro homem que tu conheças!»

Mas voltando ao que inadvertidamente interrompi, para confessar que na minha vida procedi algumas vezes quase como fez meu bisavô Alexandre, que jamais anotou qualquer passagem / 125 / do seu viver, para mais tarde poder recordar, só que ele terá a desculpa de não saber escrever, enquanto eu fora por desleixo ou excesso de confiança, na memória com que a natureza me dotou.

É bem certo que, consciente deste meu desleixo, fui exercitando a minha capacidade de memoriar o que só agora verifico quando falha, já não ter cura e a muita falta que faz.

Assim sem as anotações indispensáveis, é capaz de me acontecer como quando era criança e minha mãe me mandava ir à loja da Ti Carmina Moça comprar linhas pretas e eu, em vez destas, aparecer em casa com um carrinho de linhas brancas.

Fora o caso da homenagem promovida pelos capitães dos arrastões e encabeçado por mim, como presidente do sindicato dos capitães e oficiais da Marinha Mercante com sede em Ílhavo.

De tudo quanto se passou naquele dia e homenagem, recordo apenas que, vindos do banquete servido na Costa Nova, chegados à Malhada, descemos, e em grupo a pé pela avenida fora, ainda era Marechal Carmona, além de Avenida dos Capitães, Henrique Tenreiro de braço dado comigo e nós à frente no grupo. Ao passarmos à minha casa disse-lhe ser ali que eu morava. Ao que ele perguntou: «Não me convidas a entrar, campeão?»

Só lhe disse... vamos! Meti a chave à porta e entrámos, dando com a minha mulher sentada no chão mais duas costureiras, as três a fazerem cortinados para as nossas janelas.

Henrique Tenreiro, sorrindo a desculpar-se da intempestiva entrada e visita, cumprimentou as senhoras e saímos.

De nada mais me recordo senão, como eu esperava, ter sido tempo perdido e dinheiro mal gasto, como diz o provérbio. Do dinheiro não vale a pena falar, dado ter sido o Grémio que tudo fez e pagou, que entretanto o rateando pelo conjunto das empresas armadoras veio delas a receber, com protestos a mim pessoalmente, daqueles que comigo tinham relações e certas liberdades.

Porém as lembranças são como as cerejas na fábula de Jesus: seguem-se umas às outras.

Agora recordo, pouco depois de 25 de Abril de 1974, quando fazia longas permanências por Lisboa, alguém me pedir para / 126 / escrever qualquer coisa com sentido político, sobre o Estado Novo e a pesca do bacalhau, para publicação no "Diário de Lisboa", ao que acedi.

Tempo depois desta publicação, recebi pelo correio fotocópia, não sei tirada donde, possivelmente do "Jornal do Pescador", sublinhado a vermelho, o discurso que nesta homenagem eu fizera a Henrique Tenreiro. Coisas que a vida social tece e que nem merecem comentários.

Para terminar a história da homenagem de que eu fora o maior responsável, por embora sendo pescador da longínqua julgara obrigação de sindicalista que ingenuamente pensava ser.

Levei anos, sempre que se oferecia a oportunidade, a perguntar a Henrique Tenreiro como estava a questão das viagens anuais únicas; porém sempre encontrava dificuldades, por ele, acerbado de acólitos e trabalhos, a não me darem tempo nem oportunidade a com ele falar sem constrangimentos.

Até que um dia, acontecera eu mais atrevido inquiri-lo: «Então, Senhor comandante, como está o que nos prometera sobre as malfadadas viagens?» Ele olhou-me a responder-me também com uma pergunta: «E tu, campeão, fizeste o que te pedi?» Ao meu espanto de ficar a olhá-lo sem entender, sorriu e disse a lembrar-me: «Então eu pedi-te para ensinares aqueles gajos a pescar como tu, recordas?»

Claro que nada respondi, porém pelos meus olhos e silêncio, deve ter entendido eu não ter achado graça nenhuma à brincadeira.

Entretanto, amiudadas vezes vinha-me à memória o dito do camarada José Rocha, grande sofredor com as longas viagens anuais que lhe eram impostas, quer pela sua insuficiente pesca, como pela imposição de Egas Salgueiro, a quem ele não se atrevia a bater o pé e dizer não, e que constrangido me dizia: «só tu, João São Marcos, conseguirás pôr cobro a estas malditas viagens que me fazem sofrer tanto.»

Sem eu vislumbrar a razão que o levava, de mim a prognosticar tal ideia a que, pelo meu lado, julgando-a enorme disparate, a atribuía a excessiva amizade e apreço que eu não merecia. Por outro lado, repensando melhor, dava-me a impressão de ser apenas uma espécie de censura igual a todos os outros capitães, / 127 / que, longe da minha presença, diziam ser apenas resultado a minha boa produção, pois caso contrário eu seria cordeiro, humilde e obediente como todos eles.

Tais pensamentos levavam-me a cogitar, tentando descobrir se seria eu ou eles que tínhamos razão, e, curiosamente, esta dúvida, em vez de me enraivecer, estimulava-me para cada vez mais fazer melhor. E por que não dizê-lo? Receoso de tal ser verdadeiro e poder vir acontecer.