Mas permitam-me que corrija ligeiramente o rumo que tenho vindo a
seguir, para relembrar, só a mim, o Portugal de então, onde nasci e mais
ou menos cresci e fui educado.
O reconhecimento de Roma à canonização do Condestável Nuno Alvares
Pereira em 1918, conjugada às aparições de Fátima em 1917, em paralelo
ao estado de alma do povo português, inculto e primário, ansioso e
deprimido pela trágica derrocada de seus filhos na batalha de La Liz,
criaram em nós uma situação e espírito onde, fora fácil a intervenção
eclesiástica para a consolação e mentalização do povo que em chama
ardente, facilmente contaminou quase todos.
Os que de espírito mais forte e independente tentaram resistir e fugir à
manada, eivados pelos luzaréus e chama da República, acabada de
instituir, foram facilmente injuriados e até apartados como marxistas,
tratados e alcunhados de criminosos e fora de lei, oriundos da nova
Rússia onde se negavam as religiões e a nossa Santa Madre Igreja,
caluniadas de ópio do povo.
Era o tempo em que tudo na vida se resumia à aparência e propósito de
encantar, quer na maneira melíflua de se mostrar
como no modo oco e vazio de falar, poético e macio verdadeira antítese
da brutal dureza do viver.
Trabalhar e produzir era coisa só própria dos galegos, de corda ao
ombro, aguardando a bagagem dos viajantes, gente apenas interessante se
pintada em paisagem edílica, a fazer contraste.
Fora neste meio ambiente social, que apareceu e se sobrelevou o
corporativismo do Estado Novo, fingindo organizar quem trabalhava
braçalmente, protegendo e mentalizando-os que o principal, estava em ser
e viver como os nosso pais e avós, porque o moderno era coisa do diabo a
criar divisões e afastamentos familiares.
Ninguém era ensinado a ser orgulhoso, a repudiar dádivas e esmolas,
antes a ficar agradecido pelo menos momentaneamente à esportula,
indiferentes a saber o motivo e razão da gorjeta. Pedir, solicitar e
ficar atento e obrigado, fora o que sempre nos exigiram em letra de
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forma e tinta preta, já que a azul era deselegante a faltar ao respeito.
Uma das grandes figuras e influente neste ambiente fora Pedro Teotónio
Pereira, um jovem matemático e promissor,
porém idealista, parecendo vir a ser alguém e como de facto, fora dos
raros por quem Oliveira Salazar sentiu atracção e respeito. Depois de
ter estado no estudo e trabalhos da Constituição de 1933, fora nomeado o
primeiro Secretário de Estado das Corporações quando tinha trinta anos
de idade.
Era determinado, inflexível e distante, modo pelo qual julgo se impunha.
Uma única vez o vi e comigo trocou algumas palavras, em St. John's, na
Terra Nova, sendo embaixador em Washington. Pareceu-me calculista e
distante, ao que as nossas matriarcas diziam senhor do seu nariz.
Conversou ou melhor dito, trocou comigo algumas palavras afáveis talvez
julgando-me ser um dos capitães dos navios de linha. Porém, com
aproximação do chefe da assistência no mar à frota bacalhoeira,
comandante Tavares de Almeida, com quem eu nunca simpatizei do seu ar
paternalista, a meter-se na conversa e a tecer-me encómios a dizer ser
eu um jovem capitão dos arrastões, sabedor e de boa têmpera, pelo que
notei no embaixador uma espécie de afastamento. Aceito, no entanto, ter
sido impressão minha, influenciado pelo que dele sabia ter-se sempre
oposto ao incremento desta modalidade de pesca, única capaz por evoluída
e rentável economicamente.
Este homem, enquanto fora ministro do comércio e indústria, fez a vida
negra à Empresa de Pesca de Aveiro, para autorizar o arrastão Santa
Princesa, já embandeirado com o pavilhão nacional, a integrar a frota de
pesca do bacalhau.
Nos meios intelectuais e artísticos da sociedade lisboeta de então, onde
se reuniam as ideias e anseios das políticas de fomento social, o prato
do dia eram os trípticos recentemente encontrados, pintados nos séculos
XV e XVI, quem teriam sido os seus autores e as personalidades e motivos
neles pintados.
Todos se inclinavam serem grupos históricos de heróis que partiam às
Descobertas a levar Portugal a dar novos mundos ao Mundo.
Gente que se
aglomerava em Belém, onde foram edificados os grandes símbolos desse
Portugal, a todos nós contado.
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Entre esses sonhadores distinguia-se Pedro Teotónio Pereira apaixonado
por esses idos de antanho, ansioso e sonhador da sua reedificação no
mítico mundo depois de 1918, coisas que o império teceu e os homens
deste Portugal triste e acima de tudo religioso, ressuscitaram depois de
1926.
Nada havia ao tempo aos nossos olhos que mais e melhor representasse
essas memórias, que os veleiros da pesca do bacalhau e os típicos
pescadores dos dóris, de camisa e ceroulas axadrezada e sueste na
cabeça, vinda da orla miserável da Nação, vivendo junto ao oceano, que
durante o estio nele labutava a sobreviver pescando, e no Inverno se
internava terra dentro a mendigar «a esmola para condutar com um
bocadinho de broa».
Mais do que uma vez ouvi, o respeitoso entusiasmo com que Henrique
Tenreiro evocava a predilecção do Senhor Embaixador, como ele dizia ao
falar de Teotónio Pereira, pelos lugres bacalhoeiros e os seus heróicos
pescadores. E esta preferência pontificou em tudo ao redor da pesca
longínqua do noroeste Atlântico, nem um palmo a desviar, a
reconstituição do que ele imaginava ter-se passado seiscentos anos
antes, na escura Idade Média.
Missa campal, homilia e toda a nobreza da época presente a dar força
anímica aos heróis que partiam rumo ao desconhecido. Força e caricatura
de quem não tinha a menor noção do ridículo nem tão pouco das obrigações
governativas, no sentido do bem estar e evolução social, especialmente
entre as duas guerras mundiais que, embora trazendo muito sofrimento,
deram ao Mundo e a todas as nações, menos a Portugal, desenvolvimento
científico e evolução tecnológica, no sentido do progresso social dos
povos.
Para convencer os incautos, apregoava-se que tudo quanto se inova, é
passo dado no caminho da perversão e depauperamento
dos bons costumes e tradições familiares, dito por gente que passou a
vida, de Bíblia em punho e terço na mão, na convicção de, ser a rezar e
a apregoar a sua muita fé, que na terra se conquista o céu.
O comandante Tenreiro que só conheci vaga e superficialmente em curtos
contactos por ele impostos anualmente quer
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a nós capitães, como aos gerentes das empresas armadoras dos arrastões,
era pessoa temperamental e intempestiva, de cultura mediana mas muito
determinado a cumprir o que dizia e prometia.
Seria balofo a pretender mostrar o que não tinha? Ainda hoje julgo que
não, embora todos nós lhe imputássemos a responsabilidade de tudo quanto
se fazia. Era, vistas as coisas à distância, apenas o executor no mundo
social do que lhe era mandado. Grande admirador de Pedro Teotónio
Pereira que diziam ser seu padrinho e mentor, endeusava o Senhor
Embaixador como ele próprio referia.
Admito a possibilidade de estar enganado pois como disse jamais tive com
ele intimidades.
A primeira vez que contactei o Tenreiro fora em 1947, quando assumi o
comando do Santa Joana, sem documentação pessoal qualificada e
suficiente para a situação de comando, imposta por lei e levantada na
Capitania do Douro para a minha matrícula.
Ao tempo já Henrique Tenreiro era quem tudo podia, na concessão de
alcavalas a todos os oficiais de marinha a desempenhar cargos na Marinha
Mercante, especialmente no sector das pescas; e, por isto, Egas Salgueiro
sugeriu-me ir a Lisboa falar com ele.
Lá fui ao palácio do bacalhau, como era conhecido, fazendo-me anunciar,
naquela balbúrdia, por capitão do Santa Joana. Quando pensava ir secar
antes de ser recebido, não obstante o movimento, foi quase de imediato,
cerca de cinco minutos depois introduzido no seu gabinete e ele a
perguntar-me: «Então, pá, o que é que te traz por aqui?» Nunca me tinha
visto para trato tão íntimo. Contei-lhe o que se passava e ele de
imediato mandou ligar à Capitania do Douro. Feita, comigo ali junto dele
logo começou: «Eh pá, estás aí a levantar-me problemas de papéis, quando
sabes das dificuldades que há em arranjar gente capaz
para chefiar esse tipo de pesca. Deixa-te de me criar problemas
ao Santa Joana e ajuda-me!» E ali tudo ficou resolvido, com ele a
dizer-me: «boa viagem, pá, e porta-te bem!»
Eu era um jovem de vinte e sete anos e não podia ter ficado
senão com as melhores impressões do que me diziam chefão.
Durante cinco anos depois deste contacto com ele, estando
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apenas uma vez por ano e em conjunto, nas reuniões que ele exigia e
chamava de despedida e orientação aos capitães dos arrastões, realizadas
nos primeiros dias de Janeiro, antes da partida de qualquer dos navios
para a primeira viagem do ano, nada me despertou atenção.
Nestas reuniões estavam também obrigados os gerentes das empresas,
chamados de armadores, assim como os directores das instituições ligadas
às pescas, especialmente os que fossem oficiais de marinha, seus
protegidos.
Nestes encontros era notória a sua atenção comigo, não que eu desse
conta disso, quer por desprendimento ou por vaidade, nunca me apercebi.
Eram os meus camaradas capitães da EPA, entre os quais o meu próprio
sogro, homem respeitável e respeitador que mo diziam.
De facto, Henrique Tenreiro cumprimentava-me com certa empatia e
intimidade, que comigo não tinha, a sempre dizer: «Eh,
pá, como estás tu, jovem camarada das lides do mar!», e mais tarde,
passou a cumprimentar-me: «Eh campeão!!»
Quando, em 1938, entrei na Escola Náutica na rua do Arsenal,
passei desde então a frequentar à noite a cave do Café Portugal, no
Rossio, onde se juntavam os rapazes de Ílhavo e Aveiro, frequentando, ao
tempo, o ensino superior em Lisboa. Entre muitos, lembro-me como o melhor
de todos nós, o Cândido Russo, meu mentor, em casa de quem eu estava
hospedado.
Filho de um casal de ilhavenses, com o pai marinheiro pescador nas
actividades de Cabo Branco, que lhe foram fatais e onde perdeu uma
perna.
O Cândido era rapaz ponderado e amigo dos seus amigos. Frequentava o
Instituto Superior de Agronomia, no qual se licenciou.
Vivíamos na Calçada de Santos e éramos assíduos
frequentadores, levados por ele e pelo pai, o senhor António, a uma
célebre taberna, que havia no começo dessa calçada,
onde posteriormente o nosso conterrâneo, Ângelo Ramalheira, construiu o Cinearte.
A taberna, característica da velha Lisboa, não me recordo se vendia
vinho, pois nunca lá vi ninguém a comprá-lo e julgo que
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o seu principal negócio era a venda de carvão. À porta, solto, havia um
corvo que falava. Ali se juntava a fina flor dos fadistas, Alfredo
Marceneiro, que, ao tempo, sendo operário dos Estaleiros da CUF, logo que
acabava o trabalho, lá estava rente, a juntar-se à Berta Cardoso, Maria
Albertina, Carlos Ramos, António Paninho, etc., etc.
O Cândido conhecia Lisboa como as palmas das suas mãos; e porque não
tínhamos dinheiro, nem para a bica do café, corríamos Lisboa a gastar as
solas dos sapatos. Nada tendo de fadista, era um apaixonado pelo fado e a
ele devo muito do que conheci, não só do fado e fadistas, como de Lisboa.
Fora com ele que me iniciei na Cave do Café Portugal, onde apareciam
também muitas raparigas judias, fugidas aos nazis, com quem
exercitávamos o Esperanto, para nos entendermos, ao tempo linguagem muito
em voga nos meios estudantis.
Entretanto, o curso da Escola Náutica chegara ao fim e eu,
como a maior parte dos frequentadores daquele canto do Rossio, fomos à
nossa vida profissional, quase todos para fora de Lisboa; e eu, para o mar
de Cristo, como era hábito dizer-se neste nosso Ílhavo.
Como tão bem e acertadamente disse António Gedeão, na sua
Pedra Filosofal, eu que era ainda rapaz, não obstante de pés bem
assentes no chão, sonhava embarcar em navio de grande porte, carga ou
passageiros, com vários oficiais, já com galões, a praticar e aprender
com eles, a ser marinheiro.
Porém, o Mundo estava em guerra; e nós, embora nos dissessem sermos
neutrais, por obra e graça de Oliveira Salazar e a Nossa Senhora de
Fátima, também íamos sofrendo as suas consequências.
Nesta situação, eram raros os oficiais já experientes e com galões que
apareciam e aceitavam embarcar, salvo algum velhote incapaz de em terra
conseguir trabalho. E isto não obstante os salários terem crescido,
alguns quase triplicado; porém nada os entusiasmava receosos dos
submarinos alemães.
Assim, os praticantes acabados de sair da escola Náutica,
embora totalmente alheios aos navios e à vida de bordo, eram logo, antes
de embarcar, promovidos a lugares de chefia e tidos como oficiais
experimentados.
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A mim fora-me imposto, sem o poder recusar, embarcar de oficial imediato
num velho lugre que tinha sido da pesca do bacalhau, antigo "Rosita" e
ao tempo a chamar-se "Islândia", em actividade nos transportes
comerciais para as zonas ditas de guerra e que, há cerca de um mês,
permanecia em Lisboa carregado de cevada, por falta de um oficial piloto
que coadjuvasse o comandante, para sair a Génova, Itália.
O comandante era um velho capitão pescador, licenciado na pesca do
bacalhau e doutorado nas lides dos dóris, um daqueles que, na sua
aprendizagem, chorara lágrimas de sangue, mas só para dentro de si mesmo,
com medo que Deus as visse e publicitasse.
Este homem, contrariamente a todos os outros capitães pescadores que
conheci, por chefiarem, procuravam em autodidactismo, tornarem-se mais
urbanos e atenciosos, só o Amândio Parracá, era o seu nome, não sendo
violento, fora porém incapaz do menor esforço para se tornar sociável,
respeitável e delicado.
Foram quarenta dias de viagem, por esse Mediterrâneo em guerra, de que
confesso jamais me ter arrependido, antes, não obstante as dificuldades
daquele convívio, ter de lá saído a
conhecer-me melhor, quer às qualidades pessoais, como da minha
capacidade de chefia e influência nos que me rodeiem. Quem me conheça
não acredita ter sido à força nem a encolher-me e a deixar passar, que
consegui o respeito do Amândio Parracá.
Tentou, não faço ideia porquê, obsequiar-me, pondo no meu camarote
conservas variadas e vinho do Porto, que eu lhe agradeci, mas levei para
a mesa de todos, à ré, por a ração diária do navio ser pouca e fraca.
Curiosamente, chegados a Lisboa e finda a viagem, depois de tudo
acautelado e pronto, solicitei-lhe o desembarque. E de sua resposta: «Eh,
sô piloto, gostei tanto de si e fiquei tão seu amigo e você quer ir-se
embora?»
Fiz mais umas quantas viagens para o mesmo lado e portos, nos navios
motores "Maria Joana" e "Alger", ainda de oficial imediato, para de
seguida embarcar no "João Corte Real" de 2º piloto, em missões
comerciais pelos portos do Canadá e Terra Nova, a carregar bacalhau seco
para a Comissão Reguladora de Comércio do Bacalhau.
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Fora então que, dada a pasmaceira e pouco ou nenhum interesse pessoal por
aquele tipo de viagens, além do que ali
fui conhecendo de porto em porto, aliado ao facto de no mar
andarmos vestidos de colete de salvação sempre enfiado no corpo, quer à
mesa a comer como até a dormir, não fosse o diabo tecê-las e ficarmos
aboiados, em resultado de algum tiro de submarino, decidi ser pescador e
matricular-me no navio motor S. Rui à pesca do bacalhau.
Esta arte, como já anteriormente referi, não me agradou, quer pelo
seu primitivismo e brutalidade, quer por a considerar imprópria de
praticar no século XX, definhadora dos espíritos mais esclarecidos e
cristalinos que ali se confinassem, era detestável.
Claro que como em tudo, sempre houve excepções, pois há flores mimosas e
bem cheirosas nascidas nos pântanos e charcos. Porém jamais o hábito fez
o monge e o contrário é que é verdadeiro e usual.
Em 1945, convidado a conhecer outra modalidade de pesca do mesmo
bacalhau, matriculei-me de oficial imediato no arrastão Santa Joana, o
primeiro navio deste tipo mandado construir pela Empresa de Pesca de Aveiro, onde quase tudo se passava, salvo a pesca propriamente dita, como
nos navios da pesca artesanal, em razão dos capitães que os comandavam,
terem vindo dos lugres.
Assim, chegados aos bancos da Terra Nova, o capitão Francisco
Calão, homem corpulento e voluntarioso, procurou a chamada beirada de
leste, a atingir os 175 a 200 metros de profundidade. Atravessou o navio à
ondulação e ao vento e largou a rede no mar, numa manobra curiosa, sem
que eu lhe fizesse quaisquer perguntas nem ele a mim explicações. Era
uma rotina para ele, que eu comecei a notar como era executada e as
razões por que assim era efectuada.
Eu sentia necessidade urgente em aprender e me exercitar, para coadjuvar
o comandante do navio, pois o trabalho na ponte fora dividido em dois
quartos de seis horas cada, sendo o do
capitão acompanhado pelo segundo piloto, das seis da manhã e das seis
da tarde até ao meio dia e à meia noite, e o quarto do imediato,
auxiliado por um marinheiro experiente nesse trabalho,
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da meia noite às seis e do meio dia às dezoito horas.
Tínhamos chegado manhã cedo aos pesqueiros, e à hora de almoço com a
rede na água arrastando, o capitão Calão desceu à sala de jantar, depois
de me entregar a condução do navio, dizendo: «deixa ir para o norte nas
sondas 175 a 200 metros de
profundidade e, no final de uma hora de arrasto, dás a volta por bombordo
e vens ao rumo oposto, procurando as mesmas
sondas. O aparelho de sondagem era de faísca sobre o papel onde
registava a respectiva profundidade, convertida automaticamente em
metros, pelo tempo e demora entre o sinal de emissão e a sua recepção.
A sonda era ligada de três em três minutos, a dar-lhe o menos trabalho
possível, receosos que se avariasse, além de obviamente se economizar o
papel.
Por outro lado, vivíamos num tempo em que os supostos especialistas em
ciências naturais, os biólogos, classificavam o gadus morua como espécie
muito voraz, migratória, e pela sua constituição molecular, incapaz de
suportar grandes pressões, e a sua vivência não ia além dos 200 metros
de profundidade.
Esta teoria criara nos pescadores do arrasto, os capitães seus únicos
responsáveis na modalidade, o conceito e ideia de que as profundidades
superiores aos 200 metros, serem uma espécie de inferno onde o aparelho
de pesca seria perigosíssimo cair, por terrivelmente difícil virá-lo
para bordo.
Esta ideia pontificava em todo o âmbito desta actividade, pelo menos de
portugueses. Perder uma rede de pesca era uma
tragédia, a dar motivo de conversa e lástima para semanas. Do que
recordo quando me iniciei era, se o aparelho pegasse no
fundo, abriam-se as brecas do guincho, parava-se a máquina propulsora e
só quando os cabos reais deixavam de correr, as bobinas serem engrenadas
e os cabos virados até o navio e rede ficarem na perpendicular, e o
aparelho preso no fundo do mar. Daqui em diante, os cabos reais eram
virados cada um à sua vez,
até que o elemento do aparelho que estava preso, se soltasse ou
partisse, com a incha da ondulação.
Partir a rede propriamente dita era coisa de somenos importância. Todos
os serviços paravam para ajudar os redeiros chefiados pelo mestre de
redes, usualmente murtoseiro, que no
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convés era quem punha e dispunha, pois ali nem o capitão metia o
bedelho.
Ora o capitão Chico, como passei a tratá-lo quando se ausentava da ponte
do comando, no máximo por duas horas, sempre me ordenava
pormenorizadamente como eu devia
proceder e manobrar, o que eu rigorosamente cumpria, sem no
entanto resultar, quer nas rondas como na pescaria que previa, pois ao
tempo, nem ele, nem eu, nem ninguém tinha a menor noção das posições
geográficas onde estávamos, nem obviamente as respectivas profundidades.
Neste ritmo de trabalho, as horas iam-se sucedendo, com pesca medíocre,
pois quando virávamos dois sacos, respirava-se de satisfação, até que,
chegada a meia noite, o capitão parava o navio atravessado à ondulação e
à deriva, para descer ao camarote e dormir. A ordem por ele dada era
para ser tocada a alvorada às quatro horas da madrugada, inclusive para
ele, lançar-se a rede ao mar para pescar.
Alerta em cima, a garantir a vivência a bordo, ficava o oficial imediato
e quatro vigias, de quarto em cima.
Durante os dois primeiros dias, depois da chegada aos pesqueiros, a vida
de todos, incluindo a minha, decorreram assim, considerando, julgava eu,
porém erradamente, a minha inexperiência de tudo quanto era pesca e sua
prática de manobrar. Por assim considerar, ao terceiro dia, solicitei ao
comandante para não parar o navio e respectiva pesca, à meia noite, por
eu me considerar apto já, assumir as responsabilidades inerentes ao que
se iria passar no meu quarto em cima. Ele ainda hesitou, a ficar meio
pasmado, contra o seu temperamento irascível e impetuoso de só impor e
mandar, mas simpaticamente afável e cordato, disse-me que sim.
Só posteriormente, depois de se ter normalizado o hábito de não parar a
pesca à meia noite, vim a saber que tal paragem, era apenas simples
tradição, à semelhança do que se passava nos navios de linha, em que o
peixe durante a noite proporcionava apenas pescas muito pobres.
Isto obviamente, dera azo a me iniciar precocemente na chefia dum
processo onde, embora inexperiente ou talvez por isso, notava precisar
de remodelado a introduzir-lhe mais risco
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e aventura, abandonando o ramerrão da tibieza e preconceitos. E
possivelmente por irreflexão, desassombro ou temperamento intemerato,
troquei apenas as voltas ao processo de pescar bacalhau pelo método de
arrasto, e aumentei-lhe o rendimento.
Tudo isto interligado, criara um impacto tal que, tendo o Chico Calão
sido substituído pelo José Bela, que ao tempo era alguns vinte anos mais
velho do que eu, este impôs à gerência da EPA, só aceitar o comando do
Santa Joana se o imediato do navio ali se mantivesse.
Isto resultou dum convite que a Pescal, de Lisboa, me formulara para
assumir o comando do seu arrastão Pádua, em construção em Aberdeen,
Escócia, o que levara o gerente da EPA a contactar-me e dizer-me contar
comigo para no ano seguinte assumir o comando do Santa Joana, além de
nesse mesmo ano prometer ser bem compensado.
Era a promessa das gratificações tão peculiares no tecido empresarial
português. Eu era ainda jovem imberbe e as Marias iam com os demais.
Contudo ali o prometido era não só devido como concretizado.
Ora não só por isto, como por subentender que o curso da vida, como o seu
ritmo, não dependerem de programas nem tão pouco dos nossos desejos,
deixei-me ficar onde estava a ver o tempo passar e a pensar que, na vida
de cada um, haver mais marés do que marinheiros.
Neste filosofar, fui ficando onde comecei, isto é, na EPA, cerca de
trinta anos a pescar bacalhau, para depois, por quase outro tanto tempo,
a servi-la administrativamente.
No entanto, foi a pescar que aprendi a ser homem, profissional,
e a ganhar dinheiro, diga-se em abono da verdade.
Nesta segunda fase, continuei empregado por conta doutrem, por não ter
querido nunca ser patrão, em função de capitais investidos onde
trabalhava.
Ordenar, mandei sempre em tudo o que havia à minha ordem e redor, por
isto cometi erros e fiz asneiras do que assumo a responsabilidade.
Mas, voltando ao canto do Rossio, próximo do Café Portugal, onde os
antigos frequentadores da sua Cave, sempre que passavam ou estavam em
Lisboa, ali iam encontrar velhos
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conhecidos e amigos, ainda mesmo depois do dito café ter sido comprado
por um italiano que pretendeu encerrá-lo, mas que a CML não deixou e na
polémica entre as partes, o Café continuou aberto, mas às moscas.
Ora em 1953, quando comandava o arrastão Santo André, decidi desembarcar
para de novo frequentar a Escola Náutica, ainda na rua do Arsenal, a
fazer o seu complementar e por isto, em Lisboa, passar mais assiduamente
no célebre canto do Rossio, contíguo ao largo D. João da Câmara.
Das lindas e afáveis judias de há 14 anos antes, por há muito tempo
terminada a guerra, nem vestígios, pois todas tinham emigrado para as
Américas desde o Canadá à Patagónia.
Este Santo André, construído na Holanda em 1948, é actualmente o único
arrastão lateral ou clássico ainda existente, espécie de amostra de cera
a figurar de arrastão e amarrado na Ria de Aveiro, por oferenda mecenática, não muito clara, ao Museu Marítimo.
Nesses idos de cinquenta e três, decidi afastar-me temporariamente, não
apenas para cursar a Náutica, como para fazer uma paragem à vivência dura,
absorvente e cristalizadora, das pescas, em especial a longínqua.
Naquele canto, passei a ser um frequentador, conversando sobre tudo e
todos, em especial naquele tempo, a dizermos mal do regime político do
Estado Novo.
Curiosamente da PIDE, que se contavam e contam cobras e lagartos que eu
tenho a certeza ser verdade e ter havido perseguições, prisões e maus
tratos, para muito boa gente, especialmente intelectuais e activistas,
porém para mim, os
"pides" foram uns homenzinhos que quando entravam no
porto de Lisboa vinham a bordo do navio, solicitar uma lista da
tripulação e a quem eu dava uma gorjeta igual a que dava ao homem da
Alfândega e etc, que com os cem mil reis que lhes
dava, saíam às arrecuas fazendo mesuras de agradecidos. De
quando em vez, lá aparecia algum mais atrevido que, com os cem mil reis
na mão, solicitava um pacote de cigarros, que eu mandava o criado de
bordo dar, ou não dar, conforme os modos de pedir do pide.
Nunca fui ameaçado ou preso, nem me consta que camaradas
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meus tenham sofrido perseguições, talvez por nos considerarem pobres
diabos, tutelados pelo Tenreiro.
Lembro-me aí, cerca de 1937, de pescadores dos navios de linha, que, por se
recusarem a embarcar nos navios que o Grémio dos Armadores lhes tinha
destinado, foram presos e levados para o quartel de marinha em Alcântara,
onde até a alguns raparam o cabelo; mas isto fora obra da policia
marítima, que desta maneira nada cívica e violenta, conseguira impor o que
os armadores decidiram e determinaram.
Ora uma tarde, quando ali no Rossio conversava, e até em animada
discussão, possivelmente coisas de lana caprina, eis que o rodado dum
automóvel em derrapagem chia fortemente ali perto de nós. Todos à uma
nos virámos a saber o motivo, se colisão ou atropelamento. Era um carro
sem grande aspecto, porém conduzido por chaufeur fardado. Do lado
direito deste abre-se a porta e sai de lá alguém de braço no ar, em
pleno Rossio, a bradar: «Oh grande São Marcos, campeão dos pescadores!!»
De imediato reconheci a figura e a voz meia nasalada de Henrique
Tenreiro. Atónito e pasmado, com dificuldade em compreender a situação,
aproximei-me a cumprimentá-lo. Porém notei ele dar mais atenção ao
público que por ali estava parado ou passava ao redor, do que a mim; e
logo vislumbrei, pois nunca fui obtuso graças a Deus, como dizia a minha
mãe, que aquilo seria pura cena histriónica para inglês ver, a parecer
popular. Contudo, não reagi, pois embora tendo essa noção, aprendi que não
devermos reagir só por simples impressões ou então, sei lá, pelo meu
habitual desassombro, não fujo a declará-lo, talvez até por vaidade
momentânea de na cena eu ser parte importante da comédia.
Aproximei-me dele a abraçar-me repetindo: «grande campeão dos
pescadores do bacalhau» sem eu, nada condizente ao que ele pretendia, em
vez das ceroulas e camisa de baeta axadrezada e sueste na cabeça, estar
vestido de terno de tecido dito tropical, bem vincado, gravata de seda e
chapéu de bronzaline, que era o rigor da moda então.
Enfim, enfiei-lhe o braço a dizer-lhe algumas baboseiras, já que eu não
sou santo de pau, e levei-o até ao carro, cuja porta continuava
escancarada. Entrou, fechei-lha e ele à janela,
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gesticulando, como dois amigos íntimos em encontro fortuito.
Voltei ao grupo, com uns a elogiar-me pelo que tinham observado, não
obstante nenhum deles ser do mar, enquanto outros silenciosos, sem a boca
abrir.
Ali tudo acabado, cada um fora ao seu destino e eu intimamente vaidoso,
e porque não? Mas a cismar no porquê da cena do Tenreiro.
É bem certo que presunção e água benta, pelo menos à entrada das
igrejas, cada um toma quanta quer. Mas eu não sou frequentador nem
devoto, antes homem sem fé.
A propósito de Henrique Tenreiro me denominar de campeão, aconteceu-me
um dia, estando na Costa Nova, entre duas viagens com o Santo André à
descarga na Gafanha, e eu em casa de calção e nu da cinta para cima,
preparado a ir para a borda do mar ao banho, quando alguém bate à porta
e eu tal como estava fui abrir.
Era um meu conhecido, proprietário de navios da pesca do bacalhau,
impecavelmente vestido e perfumado a sentir-se à distância.
Inquiriu-me: «dá licença?» Escancarei-lhe a porta e foi entrando. Porém,
enquanto isto, foi metendo a mão ao bolso lateral do casaco e dali tirou
um papel que me estendeu, ao mesmo tempo que com objectividade e certeza
dizia: «quero que venha para a minha empresa!»
De olhos semicerrados a denunciar desprezo, olhei e vi ser um cheque de
banco de mil contos, isto é, mais do que eu ganhava em dois anos e quatro
viagens. «Quer visado ou acha pouco» – diz ele! «Quanto quer?» –
pergunta.
Eu era um jovem como todos os outros, antes e depois de mim, presunçoso
a julgar-me o centro do mundo e como tal respondi-lhe: «julgo não ter
vindo à minha casa com o propósito de me insultar. Na feira dos treze é
que os porcos são comprados a arroubar.»
Eu gostava que viesse trabalhar comigo, pois não se ia dar mal, disse
ainda. Depois de lhe agradecer a visita e o convite, acompanhei-o à
porta e saiu.
Com algumas cenas destas e nos moldes das que acabo de referir, mais o
que me contavam outros, intimamente integrado
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no que se passava no mundo dos Organismos e Corporativos das Pescas, tal
como quando o José de Oliveira se despediu, ou fora forçado a fazê-lo,
da chefia dos serviços de armamento da SNAB, onde havia um dos
administradores que teimava em me convidar para esse lugar, mas ao que
Henrique Tenreiro firmemente se opôs, dizendo não querer mais chatices
com Egas Salgueiro, do que as que já tinha!
Eu sorria ao ouvir estas histórias, porém silencioso, sem nada dizer, pois
seria a última coisa que eu aceitaria, por sempre e só ter sabido viver
com frontalidade e verdade, e naquele meio social era tudo fantasia,
fingimento e mentira.
Haverá quem me julgue pretensioso. Porém, na minha idade e maneira de ser
e de pensar, já só sorrio, não de escárnio mas de bonomia.
Ora Henrique Tenreiro sempre me tratou com respeito e até com alguma
deferência, enaltecendo-me a cumprimentar: «Então, pá, com vai o nosso
campeão?»
Não obstante, tive sempre a minha cabeça bem ligada ao tronco e os pés
bem assentes no chão duro e frio, para me deixar embalar por ditos, que
mais depressa do que se julga, leva-os o vento.
Nenhum pescador ou outrem que trabalhe no duro, sem horários e com
ganhos à percentagem sobre o que produz, se envaidece ou se deixa
entontecer com ditos de quem vive só de artifícios e especulações
sociopolíticas.
Mas já agora que estou com a mão na massa e vem a talhe de foice, não
obstante jamais tenha ouvido, nem mesmo nas reuniões com Henrique
Tenreiro, alguém censurar qualquer dos meus camaradas, capitães dos
arrastões, deixem-me que seja eu agora e aqui a fazê-lo, por nenhum
deles nunca ter reagido aos desmandos dos empresários, a quem submissos
chamavam de patrões.
Fora o caso da sua anuência à transformação das duas viagens anuais em
uma, cuja duração passou de 150 dias no mar, para 330 e até 350 dias
consecutivos, isto é, saindo de Lisboa nos princípios de Janeiro para só
regressar em vésperas de Natal. Isto era não só um atentado à
integridade intelectual e neuropata do pescador que nesta modalidade é
apenas, o capitão pescador
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pois todos os outros tripulantes eram e julgo ainda serem, seus meros
colaboradores.
Com a diminuição da produtividade de pesca, quer devido ao que já
anteriormente expus, como pelo abaixamento da reprodução dos gadídeos,
devida à sua fuga para paragens que lhe não eram habituais, além da
sobrepesca, que também admito, para não fugir à opinião geral, resultou
obviamente um abaixamento
no rendimento, em relação ao que antes era habitual.
Fora a SNAB, sendo a maior de todas as empresas de pesca de bacalhau,
que unilateralmente, sem qualquer consulta ao pessoal de bordo, nem deste
haver qualquer reacção a se opor, que pôs fim às duas viagens anuais de
150 dias de duração cada uma, substituindo-as por uma só, a durar quase
o ano inteiro, de modo a os arrastões se manterem nos bancos até os
sobrecarregarem perigosa e criminosamente, com 20.000 quintais de
bacalhau salgado, o que correspondia a 1.200 toneladas de peixe à
descarga em Portugal, mais 150 toneladas de sal de ressalga e salmoura,
num total de 1350 a 1400 toneladas, a pôr em risco os navios e suas
tripulações.
É claro que tal coisa só fora possível com anuência servil dos capitães
que aceitavam, sem a menor oposição aos que eles denominavam de patrões,
e estes a si próprios de armadores, a premissa de todos os arrastões sem
excepção comportarem
20.000 quintais de bacalhau salgado que nas suas simplísticas contas,
eram 1200 toneladas.
Esta falta de armadores qualificados como tais e a verdadeira noção do
que é o mar e especialmente navios, sua função especifica para a
modalidade a explorar, levou-os, dentro das facilidades que o meio
social lhe proporcionava, à conclusão de, mais valer um pássaro na mão
do que dois a voar.
Ora, se duas viagens no ano resultassem em 25.000 ou mesmo 26.000
quintais de bacalhau, porque não fazer uma só viagem nesse mesmo ano,
com 20.000 quintais?
Este fogo, atiçado na SNAB, logo se estendeu a todas as empresas
portuguesas, sem a reacção de ninguém nem de nenhum capitão, cuja
condição de profissional e único pescador nos navios, impunha para
eficientemente o ser, de condições mínimas para trabalhar.
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Isto recorda-me uma passagem havida entre mim e Egas Salgueiro, na
Gafanha, à minha chegada no Santo André, em Junho de 1962, com cerca de
900 toneladas de bacalhau e ele me inquirir, o que pensava eu sobre os
arrastões fazerem apenas uma viagem anualmente, com 20.000 quintais? E
isto quando a
própria EPA, à imitação da SNAB e de todas as outras empresas de pesca,
já assim procediam, à excepção do Santo André do meu comando.
Pacientemente fui-lhe expondo o que já por outras vezes tinha feito,
dizendo-lhe que apenas um navio da frota portuguesa, o David Melgueiro,
tinha condições para carregar 20.000 quintais de bacalhau pescados por
ele próprio, na medida em que sendo o porte de todos os outros no máximo
de 1200 toneladas, de bacalhau salgado, mais a respectiva ressalga e
salmouras de 150 a 200 toneladas mais 100 de gasóleo e óleos, mais
cinquenta de água potável, mantimentos, sobressalentes e tripulantes, o
que totaliza cerca de 1500 toneladas a pôr em risco o navio e respectiva
tripulação. Ao que ele, meio em surdina respondeu: «contudo, quase todos
o fazem!» A isto não o deixei mais nada acrescentar, por energicamente o
advertir: «Se alguma vez tal coisa pensar, para o navio do meu comando,
avise-me para eu não seguir viagem. No entanto, se em tal coisa pensar
depois de eu ter saído de Lisboa e já estar a pescar, fica desde já
avisado que, ao fim de 150 dias de viagem, independentemente da
quantidade de pescado que o navio possa ter, estarei na barra de Aveiro
para lho entregar.»
Ambos sorridentes, cumprimentamo-nos com à afabilidade
do costume e cada um foi à sua vida.
Jamais senti as nefastas consequências das desgastantes e terríveis
longas viagens à pesca do bacalhau na modalidade de arrasto, em que se
perdem as energias e o entusiasmo
que tem de caracterizar o pescador, para em cada hora e dia, mirar e
remirar todos os pormenores que fazem a pesca.
Foram essas longas viagens que transformaram os capitães pescadores em
simples comandantes dos seus navios, dividindo a actividade, problemas e
pormenores da pesca, com os seus oficiais imediatos que, de seis em seis
horas, mudavam de responsável descendo ao camarote a se alhear
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totalmente da principal actividade do navio.
Esta transformação resultara, ainda no tempo em que «mar liberum est»,
pelo medíocre critério empresarial de mais valer um pássaro na mão do
que dois a voar.
Também não esqueço que o homem, e ainda bem, com a evolução social,
instrução e cultura, já não aceita o peso e o penar das actividades
primárias e a pesca do bacalhau, tal como a vivi,
só tinha resultados e produtividade de bom nível, com muito sacrifício e
luta.
Dessas longas viagens, frustradoras do espírito lutador do pescador,
houve alguns capitães que, não obstante sofrerem as suas nefastas
consequências, procuravam reagir, porém sem saber como, não aceitando
passar de pescadores a simples comandantes de navios.
Entre eles contava-se o José de Oliveira Rocha, meu camarada da EPA,
homem de personalidade vincada, porém incapaz de reagir aos ditames de
Egas Salgueiro.
Ele em especial, mas também outros camaradas mais novos da mesma empresa
que connosco tinham aprendido a ser pescadores, não vislumbrando outro
processo de pôr cobro à situação que os atingia, solicitavam-me para eu
encabeçar uma comissão constituída por capitães da EPA, a fim de nos
avistarmos com Henrique Tenreiro, homem que tudo mandava e podia nas
pescas portuguesas, a expor-lhe o problema da degradação da
produtividade dos arrastões devida à longevidade das viagens.
Ora virtude que nunca tive foi a ingenuidade que por vezes faz falta.
Levar a vida e tudo sempre e só a sério, é pesado demais para qualquer
homem.
Assim, por mais que lhes explicasse, especialmente ao Zé
Rocha, que o Tenreiro era exclusivamente político e como tal
desinteressado das coisas em pormenor, eficientes ou não, mas apenas de
festins com bandeiras em arco a ficarem para além da fotografia também
para a história, que jamais contou a verdade factual, mas apenas a
perspectiva de cada um que a conta.
Fora então que ele me falou com vistas ao que pretendiam, fazer em
Ílhavo uma festa de homenagem ao Tenreiro, à imitação
do que já antes os capitães dos navios de linha, por duas ou três vezes
tinham feito quando precisaram do seu apoio para vencer
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a resistência dos armadores ao que pretendiam.
Eu era o presidente do Sindicato dos Capitães, Oficiais Náuticos e
Radiotelegrafistas da Marinha Mercante do distrito de Aveiro, com sede
em Ílhavo, por herança do falecido Manuel Bela, que o tinha sido um
carrada de anos, pelo que não podia fugir ao que me era solicitado, não
obstante nenhum deles em actividade, desde há muito não pagar as suas
cotas, diga-se em abono da verdade, talvez mais por o sindicato não ter
quem as cobrasse, do que eles não as irem pagar, o que fica em desconto
dos seus pecados.
Nesta altura da questão, por mais que lhes explicasse ser desta vez tudo
diferente, por o mau da fita ser o próprio Tenreiro, que tudo manda na SNAB, onde as nefastas longas viagens foram inventadas e impostas às suas
tripulações, não os convenci. Além disto, o homem a quem pretendíamos
pedir era acima de tudo um político a ver as coisas pela rama e
aparência, pouco se importando com o intrínseco das questões, que são
deixadas aos técnicos quando os há, quase sempre preenchidos por
afilhados, normalmente alheios às questões em análise.
Porém, porque era presidente do sindicato ainda que só in nomine, tinha
de fazer alguma coisa nesse sentido, não obstante eu continuasse a
dormir por semanas e meses, vestido no sofá da casa de navegação, junto à
ponte do comando, sempre pronto e acompanhar a minha pesca.
Ingenuamente, eu que nunca necessitei que outros
resolvessem os meus problemas, peguei no telefone a falar com o Ramos de
Sousa, delegado do Sindicato Nacional, em Lisboa, homem respeitável e
respeitador, capitão da Marinha Mercante e licenciado em Direito, a
convidá-lo para um almoço, afim de conversarmos sobre questões laborais.
No dito almoço, depois de lhe pôr a questão de uma audiência com Henrique
Tenreiro, responde-me de imediato e quase intempestivo: para esse lado,
sozinho, não darei um passo; porém, consigo, irei a pé ao fim do mundo.
Assim ficara combinado o Sindicato Nacional
solicitar ao delegado do governo junto dos organismos de pesca, uma
audiência com fins do estudo de questões laborais, que entretanto por
mencionar os nomes do Ramos de Sousa e meu, imediatamente e a curto
prazo fora marcada.
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No dia aprazado, lá fomos ao Tenreiro, que nos recebeu
a cumprimentar-me efusivamente como se ali estivéssemos apenas os dois:
«Eh, pá, grande campeão, como estás tu?» Para o lado do Ramos de Sousa, que
estava de mão estendida para o cumprimentar, atirou-lhe a mão sem o
olhar, e a dizer-me: «senta-te, pá», virado só para mim, parecendo
ostensiva e malcriadamente tentar diminui-lo. Não sei a razão disto, pois
o Ramos de Sousa, sendo um homem impecável e correctíssimo, era também
situacionista.
Displicente, depois de nos sentarmos, diz-me como se ali estivéssemos os
dois sozinhos, então pá diz lá o que me queres.
Mais ou menos, talvez mais sucintamente, passei a criticar o que se
estava a fazer com os arrastões e as suas intermináveis viagens,
causadoras da diminuição da sua produtividade em prejuízo de economia
nacional e, principalmente, de todos os seus tripulantes. Só por isso
vinha pedir-lhe que passasse para o nosso lado, na intenção de fomentar
a produtividade dos navios. Entretanto, gostaríamos de o homenagear numa
sua visita a Ílhavo, afim de lhe manifestar o nosso apreço.
Recordo-me, enquanto fui fazendo este convite, de sentir vergonha de mim
próprio por estar tentando trocar uma situação de interesse público por
uma festa com foguetório.
Logo que acabei, disse-me displicentemente, como a despachar-nos, o que me
magoou intimamente, pois embora desde o princípio daquela fantochada já
previsse aquilo não levar a nada e ainda por cima eu pensar que se
estivesse no lugar dele daria uma corrida a quem me propusesse tal festa
de homenagem para conseguir o que se pretendia.
Deixa-me ficar o teu problema, que vou pensar nele, contudo acrescentou:
se todos aqueles gajos fossem como tu, em vez dessas longas viagens,
fariam anualmente duas e carregados. Sobre a vossa festa em Ílhavo, que
desde já agradeço a lembrança e gesto, irei mandar para lá um
funcionário para tratar de tudo.
Levantou-se e abraçou-me, como se mais ninguém estivesse presente e a
fugir ostensivamente ao Ramos de Sousa que, delicado, como delegado do
Sindicato Nacional, lhe estendia a mão, agradecendo a audiência, ao que só
o meu gesto decidido e
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apaziguador de aproximação, o levou a estender a mão, porém sem o olhar
nem nada responder.
Curiosamente, nunca soube, por não perguntar, a razão desta aversão do Tenreiro ao Ramos de Sousa.
Tempos depois daquela reunião em Lisboa, chega a Ílhavo um emissário do
delegado do governo, chefe da secretaria de grémio do bacalhau, um tal
Águas, espécie de cão de fila que, armado de ministro plenipotenciário,
logo começou a programar, sem com ninguém contactar, e a levar para a
frente os preparativos para a homenagem. A sua primeira acção fora
redigir uma convocatória em nome de uma suposta comissão, encabeçada por
mim, seguida de todos os capitães dos navios da EPA, por ao tempo o Tenreiro andar de candeias às avessas com Egas Salgueiro, impondo com
ameaças a presença de todos ligados ao bacalhau e sua pesca, em Ílhavo,
numa homenagem a S. Ex.ª, o Senhor Delegado do Governo.
Tenho a impressão que este desmando, à semelhança de tantos outros
ocorridos na Vila Maruja, foi por conhecerem a nossa habitual
indiferença ao que social e colectivamente nos acontece e atinge. Fora a
vivência no mar, monótona e sempre igual que tornou os ílhavos apáticos
e indiferentes a tudo que nos rodeia. Não por deixarmos o futuro nas
mãos de Deus, como alguns
julgam e verberam, mas por um viver monótono e ritmado, de casa para o
navio e daqui para casa, sem mutações impostas pela própria necessidade
de raciocinar e reagir.
O mar, na sua omnipresença e omnipotência, tornou os ílhavos
indiferentes ao que lhes possa acontecer social e colectivamente.
Não quero de modo nenhum caracterizar seja quem for, mas apenas a mim
próprio, que aqui nasci e vivi, só me ausentando para passar trinta anos
da minha juventude sobre o Oceano.
Obviamente que à convocatória do Águas, encolhi os ombros
com a indiferença de não me aquecer nem arrefecer. Já o mesmo porém não
acontecera quando um dia me informou, embora com um certo acanhamento,
ter redigido e pronto o discurso que eu teria de ler no banquete que
encerraria a homenagem. Levantei-lhe os olhos, não obstante ele ser mais
alto do que eu, a dizer-lhe: «você tem obrigação de saber que eu não
sou um pau mandado e pobre diabo como tu!» A desculpar-se da sua única
intenção de
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me tirar o trabalho de o escrever, deve ter sorrido para dentro a
pensar, este tem a mania de que é teso, e estes são os mais fáceis de
levar.
Um outro pormenor dos preparativos da homenagem que a
minha suposta tesura de lobo do mar não aceitou, fora o facto de,
por ser eu a encabeçar a comissão, ter de ir a casa do Arcebispo
de Évora, D. Manuel Trindade Salgueiro, convidá-lo a presidir à homenagem, que eu sabia ele já estar em Ílhavo, vindo do Alentejo para
esse fim. Incomodava-me tanta teatralidade e
cenas para que fui empurrado, que sabia resultarem em coisa nenhuma.
Nada me movia contra o arcebispo que na família continuou
durante muito tempo, especialmente pelos que com ele
conviveram na adolescência, a ser o padre Trindade. Porém o
seu ar seráfico de palavra fluente e encantadora, de santo que eu sabia
não ser, não me atraía e muito menos conquistava o modo
de ser do pescador longínquo que eu então era.
Mas por fazer parte da minha vida e memórias, permitam-me
que de novo fale do clã São Marcos, de quem herdei a propensão
para a pesca e cuja história apenas sei de ouvida, por contada através
de gerações, inevitavelmente reduzida ou aumentada dos pontos que cada
um lhe foi acrescentando.
O meu bisavô, Alexandre São Marcos, que não conheci nem
dele sei mais do que, sendo pai de meu avô Cristóvão, pai de
meu pai, teve também mais cinco filhas, uma das quais casando com um
Nuno, os dois filhos deste casal passaram a ser, a mais
velha Maria Nuno mas por ser cachopa foi Maria Nuna e o rapaz
mais novo Manuel São Marcos Nuno, que só vim a conhecer já
idoso, por Ti Cordoeiro, que era a sua profissão.
Ora a Maria Nuna, que vivia com a sua mãe junto ao clã na Fontoura,
fez-se mulher e casou com um rapaz, marinheiro de navios de arte
redonda, de sobrenome Salgueiro que, como ainda
hoje é uso e costume nesta terra, embora sendo de Espinheiro, veio
com ela viver na Fontoura, para uma casinha que fazia do lado
sul esquina para um beco e do norte com a casa da «ti Vassoura e do ti
Pauzinho», pais da professora Helena Rosa Mano, da mesma
idade e companheira de infância do que viria a ser arcebispo de
Évora.
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Sem o poder confirmar, é minha impressão ter o Manuel Trindade nascido
sem seu pai o ver, isto é, durante a viagem em que desapareceu no mar,
com o navio e toda a tripulação.
E muito embora estas tragédias fossem ao tempo vulgares e correntias com
os navios de vela, no mar, mas sabendo que o marinheiro Manuel Salgueiro,
nascido e vivido em Espinheiro até casar, onde também viviam o armador
Francisco Machado e seu genro Manuel Camarão, capitão do Aurora do Vouga,
desaparecido no mar, em fins de Agosto de 1898, não posso deixar de
imaginar que o pai do futuro arcebispo de Évora seria um dos tripulantes
deste iate.
Então, como era uso e costume, alguém deve ter pichado a negro uma grande
cruz na porta da rua da casa de Maria Nuna, por ser nova e viúva, e ela,
sacudida a palha da enxerga onde
dormira com o seu rico homem, agora por sua intenção como era hábito, de
penitente a dormir sobre a manta de farrapos no duro e frio chão coberto
de juncos.
Passou tormentos para criar o seu menino, embora ajudada pelo clã. Ela
que não era nem inventiva nem muito mexida, durante a noite fazia flores
de papel e peninhas coloridas para, pela madrugada ir vendê-las às
feiras ao redor.
Pelos caminhos, de cesto à cabeça, logo que avistava algum almocreve
montado e adormecido no burro, que ela pelo andar dos anos reconhecia
seguir para a mesma feira, agarrava-se ao rabo do macho, que a obrigava a
acelerar o passo, ao compasso com o burro, seguindo aos saltitos e a
dormitar até chegar à feira.
O Manuel Trindade fora uma criança da rua como todos os outros, mas
deles diferente no seu ar vivo e esperto, precocemente ponderado e
atencioso e até interessado nas pequenas leituras.
Aconteceu-lhe porém, certo dia, andaria ele pelos seus sete
anos de idade, no período de S. João, quando tinha no bolso dos calções
duas bombinhas, rebentarem simultaneamente, deixando a criança prostrada
na rua e gravemente ferida.
Aos gritos do menino e do mulherio da vizinhança que tudo quanto fazia
era gritar, acudiu a Maria do Casal, mulher rara na acção e expediente
como nenhuma outra que, atracando a
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si a criança corre com ele à rua Direita, à farmácia do Manuel Cunha,
para o socorrer e tratar.
Este, não só tratou a criança como, por conhecer o pouco
expediente da mãe, ao contrário da Maria do Casal, logo a
instruiu do que teria de fazer ao menino para o cuidar, aviando os
remédios por conta desta, já que ele sabia, a Maria Nuna sendo viúva,
não lhos pagaria.
Ora a Maria do Casal, que nunca foi mulher de dúvidas nem
de ficar à espera de orientações, foi à sua casa em busca de um lençol
de linho e levou o menino para a Fontoura, onde se instalou a tratar do Trindadinho, até por a Maria Nuna estar ausente na feira.
Esfiapando o linho do lençol, foi com eles cobrindo as
profundas queimaduras nas virilhas e sexo da criança, protegidos com
folhas de jarros, ali permanecendo mesmo depois da chegada
da Nuna a casa, por esta outra coisa não saber fazer, senão gritar
e rezar pelo seu rico menino.
Entretanto a criança, com os cuidados e desvelo da Ti Maria, curou-se e
tudo foi esquecido, menos o enorme e profundo
respeito de Manuel Trindade pela Maria do Casal, até mesmo
depois de já ser alguém na vida social, em que ela o massacrava com
pedidos de toda a espécie e feitio para infelizes a necessitarem de
protecção, como ele já tinha precisado também.
Curiosamente, certo dia, em Ílhavo, já ele era D. Manuel e figura
de impressionar auditórios, num grupinho com duas mulheres
do seu tempo de infância e garotadas, em amena conversa com
ele, uma delas, sua prima pelos São Marcos, rapariga trintona,
morena e exuberante em tudo, no seu ar, sorriso e palavras, lembrou-lhe,
insinuando ter ele ido para o seminário devido às queimaduras do
incidente que o atingira.
À insinuação da desbocada e pouco recatada senhora, a figura
frágil e delicada do bispo aparecer quase mítica, levanta o braço
de punho cerrado e dá um enorme murro em cima da mesa que os
mantinha ao redor, a dizer veemente: «eu sou um homem capaz e vigoroso
como qualquer outro homem que tu conheças!»
Mas voltando ao que inadvertidamente interrompi, para
confessar que na minha vida procedi algumas vezes quase como
fez meu bisavô Alexandre, que jamais anotou qualquer passagem
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do seu viver, para mais tarde poder recordar, só que ele terá a desculpa
de não saber escrever, enquanto eu fora por desleixo ou excesso de
confiança, na memória com que a natureza me
dotou.
É bem certo que, consciente deste meu desleixo, fui exercitando a minha
capacidade de memoriar o que só agora verifico quando falha, já não ter
cura e a muita falta que faz.
Assim sem as anotações indispensáveis, é capaz de me acontecer como
quando era criança e minha mãe me mandava ir à loja da Ti Carmina Moça
comprar linhas pretas e eu, em vez destas, aparecer em casa com um
carrinho de linhas brancas.
Fora o caso da homenagem promovida pelos capitães dos arrastões e
encabeçado por mim, como presidente do sindicato dos capitães e oficiais
da Marinha Mercante com sede em Ílhavo.
De tudo quanto se passou naquele dia e homenagem, recordo apenas que,
vindos do banquete servido na Costa Nova, chegados à Malhada, descemos, e
em grupo a pé pela avenida fora, ainda era Marechal Carmona, além de
Avenida dos Capitães, Henrique
Tenreiro de braço dado comigo e nós à frente no grupo. Ao
passarmos à minha casa disse-lhe ser ali que eu morava. Ao que ele
perguntou: «Não me convidas a entrar, campeão?»
Só lhe disse... vamos! Meti a chave à porta e entrámos, dando com a minha
mulher sentada no chão mais duas costureiras, as três a fazerem
cortinados para as nossas janelas.
Henrique Tenreiro, sorrindo a desculpar-se da intempestiva entrada e
visita, cumprimentou as senhoras e saímos.
De nada mais me recordo senão, como eu esperava, ter sido tempo perdido
e dinheiro mal gasto, como diz o provérbio. Do dinheiro não vale a pena
falar, dado ter sido o Grémio que tudo fez e pagou, que entretanto o
rateando pelo conjunto das empresas armadoras veio delas a receber, com
protestos a mim pessoalmente, daqueles que comigo tinham relações e
certas liberdades.
Porém as lembranças são como as cerejas na fábula de Jesus:
seguem-se umas às outras.
Agora recordo, pouco depois de 25 de Abril de 1974, quando
fazia longas permanências por Lisboa, alguém me pedir para
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escrever qualquer coisa com sentido político, sobre o Estado Novo e a
pesca do bacalhau, para publicação no "Diário de Lisboa", ao que acedi.
Tempo depois desta publicação, recebi pelo correio fotocópia, não sei
tirada donde, possivelmente do "Jornal do Pescador", sublinhado a
vermelho, o discurso que nesta homenagem eu fizera a Henrique Tenreiro.
Coisas que a vida social tece e que nem merecem comentários.
Para terminar a história da homenagem de que eu fora o maior
responsável, por embora sendo pescador da longínqua julgara obrigação de
sindicalista que ingenuamente pensava ser.
Levei anos, sempre que se oferecia a oportunidade, a perguntar a
Henrique Tenreiro como estava a questão das viagens anuais únicas; porém
sempre encontrava dificuldades, por ele, acerbado de acólitos e
trabalhos, a não me darem tempo nem oportunidade a com ele falar sem
constrangimentos.
Até que um dia, acontecera eu mais atrevido inquiri-lo: «Então, Senhor
comandante, como está o que nos prometera sobre
as malfadadas viagens?» Ele olhou-me a responder-me também
com uma pergunta: «E tu, campeão, fizeste o que te pedi?» Ao meu espanto
de ficar a olhá-lo sem entender, sorriu e disse a lembrar-me: «Então eu
pedi-te para ensinares aqueles gajos a pescar como tu, recordas?»
Claro que nada respondi, porém pelos meus olhos e silêncio, deve ter
entendido eu não ter achado graça nenhuma à brincadeira.
Entretanto, amiudadas vezes vinha-me à memória o dito do camarada José
Rocha, grande sofredor com as longas viagens anuais que lhe eram impostas, quer pela sua insuficiente pesca, como pela imposição de Egas
Salgueiro, a quem ele não se atrevia
a bater o pé e dizer não, e que constrangido me dizia: «só tu, João São
Marcos, conseguirás pôr cobro a estas malditas viagens que me fazem
sofrer tanto.»
Sem eu vislumbrar a razão que o levava, de mim a prognosticar tal ideia
a que, pelo meu lado, julgando-a enorme disparate, a atribuía a excessiva
amizade e apreço que eu não merecia. Por outro lado, repensando melhor,
dava-me a impressão de ser apenas uma espécie de censura igual a todos
os outros capitães,
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que, longe da minha presença, diziam ser apenas resultado a minha boa
produção, pois caso contrário eu seria cordeiro, humilde e obediente
como todos eles.
Tais pensamentos levavam-me a cogitar, tentando descobrir se seria eu ou
eles que tínhamos razão, e, curiosamente, esta dúvida, em vez de me
enraivecer, estimulava-me para cada vez mais fazer melhor. E por que não
dizê-lo? Receoso de tal ser verdadeiro e poder vir acontecer.
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