Memórias de um pescador – pp. 87-99.


VI. Histórias vividas

A contar o que aqui tenho vindo a fazer, julgo não ser despropositado dizer também alguma coisa de mim próprio, a dar conta aos que me não conheçam, dos caminhos que calcorreei para chegar até aqui, isto é, a velho pescador.

Nascido e criado em casa de marinheiro pescador, que por sua vez era já também filho e neto de pescadores, e de mãe costureira filha de gentes do mesmo naipe, todos vindos e saídos dos becos e carris deste muito velho Ílhavo, cuja memória se perde na noite dos tempos.

Desde o nascimento de seus quatro filhos, que meus pais tudo fizeram, em especial a minha mãe que era a matriarca da casa, e como tal tudo podia e mandava para nos desviar dos caminhos que ali na terra, levavam os jovens, às lides do mar.

A parecer fácil e sem dificuldades, isto acontecera com os três primeiros, não obstante um deles, por reprovar um ano por faltas no liceu, fora mandado de castigo, na campanha 1923 de moço de câmara no veleiro "Veloz" à pesca de bacalhau, mas que terminada aquela viagem, logo enveredou pela actividade comercial.

Mas o tempo inexorável fora passando e no decurso dos anos trinta, ou melhor dizendo em 1938, quando eu que era o mais novo e bom estudante, a estudar por gosto e muito interessado nos livros, ao completar o curso geral dos liceus, já meu pai tinha chegado aos sessenta e três anos, envelhecido por mil provações e sacrifícios, mas ainda embarcado de marinheiro no pequeno cargueiro Catalina, da praça do Douro.

Eu não só gostava de estudar, como também muito de ensinar, o que com prazer e amiudadas vezes, fazia aos meus condiscípulos que a mim recorriam quando em dificuldades, a proporcionar-me simpatias e amizades.

Devo confessar que, entre os meus muitos defeitos, o pior e de mais gravosas consequências, aos meus próprios interesses, fora a precoce e exagerada noção das minhas responsabilidades, deveres e obrigações para com os outros homens, razão por que ainda adolescente e socialmente irresponsável, se me virava / 88 / o juízo a pensar no que havia de fazer à minha vida, isto é se despreocupar-me e seguir indiferente a tudo, os estudos que eu tanto gostava ou contrariamente, se procurar algo que me proporcionasse, logo de seguida ganhar dinheiro para os gastos da nossa casa, a substituir o meu pai.

Nesse tempo o Estado nada tinha de social e previdente, senão para o seu funcionalismo chamado de público.

No final de uma vida de canseiras e trabalho árduo, de operário ou semelhante, eram os filhos que tinham de se juntar e cotizar, para a compra da manta, a oferecer ao velho na hora de o levar e abandonar no monte.

Por peripécias de família, iniciei-me nos estudos secundários relativamente tarde e aos 18 anos de idade cheio de viço e vigor, pesava-me terrivelmente na consciência, a imagem de meu pai, vergado no banco do remador, no escaler do navio Catalina, à sua chegada de viagem ao Douro, a transportar para terra os cinco oficiais do navio.

Esta penosa imagem de sacrifício, sem queixume nem mágoa, antes a sorrir de amizade e amor, não me largava nos meus sonhos de rapaz, a não permitir que o meu mundo pulasse e muito menos, avançasse.

Então reconsiderava a situação, em busca de solução rápida e concretizável. Contudo logo pensava, nas recomendações de minha mãe, inculca das desde a mais tema idade, a lembrar-me até na encomendação do terço rezado todas as noites, em conjunto e voz alta, da súplica que invocávamos quase em lamento repetida «pelas almas do Purgatório e por todos quantos andam sobre as ondas do mar!»

Um dia, sem nada dizer a ninguém, fiz o exame de admissão ao curso de pilotagem da Escola Náutica, no Arsenal de Lisboa e dois anos mais tarde, fiquei marinheiro.

A guerra mundial estava ao rubro e o meu primeiro trabalho por falta de oficiais, foi embarcar de imediato num lugre de nome Islândia em missão de transporte comercial à Itália.

Após esta minha primeira viagem e chegado a Lisboa, ali encontrei meu pai no vapor Catalina. Corri a abraçá-lo e entregar-lhe o dinheiro que eu tinha ganho, mais de três vezes o que ele ganhava, e a pedir-lhe para desembarcar e ir para casa. Sorriu / 89 / feliz, de ver o seu menino mais novo feito homem e garantiu-me que sim, desembarcaria mas na próxima viagem, pois que aquela hora já se encontrava comprometido a seguir, na viagem seguinte.

Mas o homem põe e Deus dispõe, diz o povo na sua muita sabedoria. E o meu pai de facto fez só mais aquela viagem, porque um submarino alemão meteu o Catalina no fundo e toda a sua tripulação com ele pereceu.

Enfim, o meu caminho estava traçado e mesmo contra a minha íntima vontade, por não gostar da monótona pasmaceira daquelas viagens, aguentei até finais do ano seguinte.

Então saturado, daquele viver sem vida e receoso do futuro, decidi fazer-me pescador e embarquei num navio de linha à pesca de bacalhau.

Esta vida, além de muito pesada para todos que nela trabalhavam era escravizante e muito perigosa para os homens da companha, que para pescar arriavam nos dóris.

O navio motor S. Ruy, da praça de Viana do Castelo tinha uma equipagem de 125 tripulantes, 102 dos quais idos da Fuzeta, Nazaré, da Figueira da Foz oriundos de Buarcos, da Gala e Cova, os poveiros de Vila do Conde e Povoa de Varzim e os de Viana, a formarem a companha. De Ílhavo eram os oficiais, os motoristas, o pessoal da cozinha e algum dos moços.

Dado os portos da Figueira da Foz, Aveiro, Douro e Viana do Castelo serem servidos por barras de acesso difícil, com pouca altura de água para os navios da pesca longínqua, onde tinham a sua base e armamento, viam-se obrigados a deles sair na condição de mais leve possível, que o mesmo será dizer com calados reduzidos, na condição de vazios, sem os pesos dos reabastecimentos para a campanha seguinte, como sal, água, combustíveis, mantimentos, etc.

É certo que esses mesmos navios ao chegarem, no final de cada campanha, tinham de entrar nesses mesmos portos, não obstante a sua condição de carga, impor calados máximos aos navios.

Porém, como se tratava de receber e obviar ao resultado económico da expedição, logo o proprietário se dispunha, com alguns gastos e sacrifícios, a resolver este problema que era entretanto aliviar a carga ao navio em pleno oceano, antes de / 90 / entrar no porto. Este trabalho era efectuado, recorrendo a batelões sendo os próprios pescadores, tripulantes, que se encarregavam de arrancar o bacalhau do seu navio e estivá-lo nos batelões, até atingir o calado que possibilitasse a passagem na barra.

Face a este condicionalismo, à partida para uma nova viagem, o navio saía vazio com escala em Lisboa. Esta escala era obrigatória, não apenas para embarcar a companha como principalmente, abastecer de sal, mantimentos, etc., e tratar de variadíssimas formalidades legais e corporativas, entre as quais estar presente à bênção da frota de pesca artesanal.

Em missa campal frente aos Jerónimos, com todos os navios desta arte ali fundeados, desde a Junqueira a Belém e embandeirados em arco, em sinal de festa.

No Terreiro do Mosteiro, exactamente como cinco séculos antes, com enorme tenda montada a abrigar o arcebispo, era rezada e cantada missa, com homilia aos pescadores todos ali presentes e equipados, muitos de roupa de oleado, bota alta e sueste na cabeça, porém grande parte de camisa axadrezada, bota e sueste ou barrete característico, a lembrar as figuras pintadas nos trípticos de Grão Vasco.

A envolver esta multidão de pescadores, outra se juntava de mulheres familiares daqueles, arrebanhadas nas suas terras e ali trazidas em camionetas para a bênção. Às vezes com elas, vinha também o andor de algum santo dos ligados à pesca e ao mar, a dar maior tom ao festival.

Finda a missa e a homilia, Henrique Tenreiro juntava cinco pescadores, vestidos como tal e os seis iam a S. Bento, entregar a Salazar uma lembrança da frota de pesca, única maneira e oportunidade de se encontrar, frente a frente e cumprimentar o Presidente do Conselho que, segundo se dizia à boca pequena, não ia muito à bola com o Tenreiro.

Mas esquecendo o caricato da bênção, de que o povo humilde e anónimo dava muito valor e respeito, tudo pronto e acabado, depois dos beijos de despedida saíamos a barra, rumo aos Bancos.

Curiosamente, depois de uns tempos de convívio a bordo a relacionar-me com a companha, logo comecei a notar e a criar em mim a impressão, pelo que via e ouvia, da costa portuguesa / 91 / estar dividida a partir da Nazaré, para norte e para sul, em dois espaços populacionais de pescadores totalmente diferenciados, social e civicamente.

Os do sul, especialmente os algarvios, mais cuidados no respeito que cada um de nós deve a si próprio, quer no comportamento comedido e acisado, em especial relativamente aos do norte que eram mais emocionais, desbocados a dar lugar a excessos.

Enquanto os primeiros se tratavam mutuamente de manos, os do norte exprimiam-se desbocada e agarotadamente, em palavrões e ordinarices sem relevo nem respeito.

Entre todos os nazarenos, embora praguentos, teatrais e cómicos, mas nunca malcriados ou ordinários, havia os que se ajoelhavam de mãos erguidas aos céus a rogar: «Ah Senhora da Nazaré... mandai um aguaceiro de pedras de moinho... mas sem buraco!» E isto, quando deparavam com situações difíceis de resolver, ou ainda apelando a gritar «ah ome de ferro (invocando Hitler) mandai um selomatino que nos meta a todos no fundo.»

Aos meus olhos naquele inferno entre os pescadores, destacava-se um, o encarregado dos nazarenos, conhecido ali e julgo também na Nazaré, por Serafim da Felismina. Homem meão e de poucas carnes, verdadeiro protótipo de português, de olhar vivo e inteligente, sem qualquer instrução escolar, mas a saber ler e escrever à custa do seu autodidactismo, a revelar grande cultura humanística, arrancada naturalmente à sua intuição e dotes pessoais.

Um encarregado era o capataz de um grupo de pescadores da mesma terra que servia de elo de ligação quando desembarcados, entre esse grupo e o capitão do navio de pesca.

Sendo o capitão de qualquer navio, uma das partes contratantes no contrato de matrícula, o encarregado de determinada centro piscatório era o informador da confiança do capitão, uma espécie de garante das qualidades dos homens que constituíam o seu grupo.

O Serafim era o melhor e o maior pescador do S. Ruy, sem qualquer outro, naquele navio, que em quantidade de pescado, a dele se aproximar não obstante a luta por melhores proventos, pois os ganhos eram exclusivamente em função da quantidade que cada um pescasse, todos tentavam ser o melhor. / 92 /

Este nazareno tudo fazia, até desdobrando-se para ajudar fosse quem fosse, a ser o que se podia chamar, alguém de eleição.

Nessa viagem, o Serafim levara consigo, de pescador verde, o filho mais velho, 17 anos e a quarta classe feita, igualzinho ao pai nos modos e fisicamente, só menos carne devido à idade.

O Manelzito, vivo e esperto, lia-se nos olhos o que viria a ser.

O Serafim, para que o rapaz se sentisse mais à vontade e fazer-se mais depressa homem, sem a presença e tutela do pai, entregou-o aos cuidados e sob a orientação de um outro nazareno, homem acisado de poucas falas e também muito bom pescador.

Íamos em mais de meia viagem, com o peixe nos porões por ai acima, e à borda registadas já algumas peripécias e incidentes, quando, por repentino agravamento das condições de tempo e mar, a obrigarem urgente reembarque dos dóris, é dada ordem para chamar.

Era uma tarde, cinzenta e escura de horizontes curtos pela sarria, com o vento a refrescar, agreste e a água indo a sotavento com força. A sirene passou imediatamente a gemer com insistência, em silvos estridentes intercalados, pelos quatro repiques do sino em sinal de recolher.

Um a um os pescadores chamados de medrosos, por com horizontes curtos ou nevoeiro não se afastarem do navio além do bico da proa, para assim ficarem ali a barlavento, começaram
a aparecer e a prolongarem-se a cada bordo, do lado a que pertenciam, prontos a atracar.

Todos bem convidados de peixe, com a maior parte deles, com boas popas e até uns quantos, carregados ou pelo menos com peixe à proa.

Chegavam sem grande pressa pois estavam ali à vista não obstante a curteza do horizonte.

Atracava cada um à sua vez de chegada, a lançar a boça ao moço, que à borda a apanhava com o bicheiro e lhe encostava o seio à malagueta, ficando depois de olhos fixos no capitão.
Este, de tábua pendurada ao pescoço, a andar numa roda viva cá e lá, de um bordo ao outro, atento a mirar cada dóri, acabado de atracar e registar na tábua a quantidade de peixe por ele calculada. Após isto, logo com a cabeça fazia o sinal afirmativo ao moço que então entregava ao pescador, o pichefoque (fish fork)
/ 93 / que com ele baldeava o peixe por cima da borda para o quete.

Neste atraca e baldeia, sempre que aparecia algum dóri mais carregado do que o normal, com o pescador safa que safa de balde nas unhas a esgotá-lo borda fora, logo o capitão fazia o gesto de prioridade e o bote atracava.

Só o Serafim e o outro camarada nazareno, de olhar inquieto, abarcando todo o redor do navio, se estavam a perceber da falta do Manelzito.

Com o dóri descarregado, o pescador deixava-o descair mais a ré ao longo do costado do navio, para em frente à sua pilha lhe engatar os teques, um em cada alça e, enquanto viravam, dar um pontapé no batoque da jája, que aberta logo esgotava a água, ao mesmo tempo que ainda suspenso, o desarmava interiormente, a encaixá-lo dentro dos outros, na sua pilha de cinco dóris.

Todos a bordo menos o Manelzito, porém a vida continua. Ordem para jantar e a companha num ápice, desapareceu no rancho.

No convés, perfilados de roupa oleado vestida, ficou o Ser afim mais três outros nazarenos, prontos e à espera de autorização para de novo arraiar, em busca do Manelzito que, cogitava o Serafim seu pai, calejado naquela malfadada e terrível vida, sendo o rapaz de primeira viagem, porém vivo a querer parecer independente, terá descaído a sotavento e ali, sem forças para remar e apanhar o navio, que continuava a chamar.

Aproximaram-se do capitão, trocaram algumas palavras e gestos e em dois dóris, saltaram os quatro, com cinco remos a cada bote e desapareceram, por sotavento fora.

No convés de guarda, mirando o horizonte curto, ali mesmo em cima do navio, ficamos com o capitão os dois oficiais, dois motoristas e dois moços.

A sirene continuava a gemer, misturada aos sons do apito e badalar do sino. De novo um foguetão estourou no ar, a dizer mar fora, estamos aqui!

O velho e experiente capitão, em aparte comentou que o rapaz esperto, a esta hora deve, por ter descaído a sotavento com a aguagem, estar ancorado possivelmente ali perto para a popa, mas à espera que a água vire! O pior é se o vento continua a refrescar, então irá levantar muito mar! / 94 /

Eu, calado e nervoso, inexperiente naquelas andanças e em verdadeira amargura pela situação do Manelzito, pus-me intimamente comigo a filosofar: «Então se o rapaz, segundo calcula o capitão está ancorado a sotavento, por que não suspendemos o ferro e nos deixamos descair, a dele nos aproximarmos?»

Só tempos depois, mais experiente, entendi ser impossível, pois que com nevoeiro, o navio mãe deve sempre manter a posição inicial não se mexendo por meras suposições.

E neste filosofar a primeira hora depois da largada dos quatro pescadores passou e a segunda já ia, em receio e desespero, nos três quartos, com o pessoal na escala a trabalhar, mas em profundo e absoluto silêncio, quando um dos moços que ficara connosco de vigia quase a adivinhar, grita: «Ali por sotavento três sombras!» Muito lentos, a parecer parados e a desaparecerem no cachão, eram os três botes, com o Manelzito no meio.

Uma lágrima furtiva de comoção, por voltar a olhar o Manelzito que julgara perdido para sempre, acudiu-me mas só ao interior dos olhos porque naquele mundo brutal que me rodeava, é proibido chorar e eu era já também um bacalhoeiro da pesca artesanal, porém cá para mim pesaroso mas a pensar: Então o Manelzito uma criança perdida e assustada, ainda vem ali sozinho a remar, enquanto o pai e os amigos dois por dóri, folgados e a cada lado, a acompanhar!

Atraca, engata e vira, e os três dóris e os cinco homens estavam a bordo. Os três primeiros, seguidos do Serafim com o filho, desceram do tombadilho para o escorredor de peixe que a cada lado por bombordo e estibordo, montava seis mesas de escala e respectiva celha, com 18 homens nas mesas, mais dois garfeiros às celhas, num total de 40 homens em silêncio, a parecer algo esperar.

No tablado de repente, vejo o Serafim, sem eu nada entender da sua atitude, a brutalmente agredir o filho querido que tinha acabado de ser salvo, por perdido no nevoeiro que eu julgara para sempre.

De um salto, atirei-me ao Serafim, a fincá-lo pelo pescoço e braços ao que ele torcendo-se e a olhar-me num esgar diz gaguejando: «Ah, sô piloto, largue-me pelo amor de Deus, não me desgrace!»

Entretanto de cima do tombadilho, ouço e vejo o velho / 95 / capitão, que era também meu tio, no seu enorme vozeirão, muito calmamente a chamar-me e a dizer: «Deixa-os João! Esse rapaz que hoje quase se perdeu para sempre, amanhã já não lembrará o risco que hoje correu! Mas desse arraial de pancadaria na presença de tantos espectadores ele nunca mais esquecerá!»

A tanta e tamanha violência, dureza e brutalidade, a mim jurei não mais querer assistir!

Decidi desembarcar.

Antes porém, devo referir o que ao longo da viagem, observei e ouvi em desabafo de alguns homens que a bordo, em função do seu baixo rendimento de pescado, eram chamados de fracos pescadores em relação a todos os outros.

Alguns entre estes, responsabilizavam o seu próprio capitão, de menosprezo com que tendencioso olhava e avaliava o peixe do seu dóri, prejudicando-o em benefício de outros. Ora o velho capitão, na sua muita experiência e sagacidade, no olhar parecia adivinhar os que assim pensavam e algumas vezes vi, ele mandar os fracos pescadores contarem o número de bacalhaus que pescaram e medir o seu tamanho para, em acção pedagógica, os ensinar que era indispensável trabalhar.

Naquele tempo os capitães, vinham das escolas superiores do convés dos veleiros e eram doutorados nos trabalhos do dóri, pois sabiam tudo que era preciso para ser um pescador com sorte, que se resumia a trabalho e muito trabalho.

Para chegar ao comando, fora a pulso, a rilhar os dentes e a chorar baixinho e só para dentro, afim de que nem deus visse.

No dóri o pescador, não pode ficar à espera que o peixe vá ter com ele, tem de procurá-lo.

Se nada picar no anzol ou na zagaia, por muito que custe ao sono e ao cansaço, é preciso alar o rodo, suspender o ancorote e armar os remos ou a vela, a mudar de poiso em busca de melhor e tantas vezes até o encontrar, e aí é que é dar-lhe, ala que ala para o bote. Parado, não se chega ao céu nem a parte nenhuma.

Foi observando este procedimento dos pescadores nos dóris que aprendi a considerar a máxima de: «Parado, o barco não faz viagem!»

Ouvi e até algumas vezes li, nos que fazem da escrita sua profissão, reproduzir o que ouviam aos pescadores, culpando de / 96 / tudo quanto sofriam e penavam naquela vida, os capitães.

Lá que o pescador do dóri, na curteza da sua mentalidade, culpasse quem junto dele também vivia e sofria mas mandava, julgo ser de admitir e perdoar. Mas a quem é capaz de escrever para outros lerem, exige-se um pouco mais, pelo menos de se interrogar a si próprio, a razão de tanto atraso social, já que para juiz, do aspecto sócio e económico, é indispensável mais conhecimentos e entendimento.

Contudo, terminada a pesca e iniciada a viagem de regresso, era ouvir as opiniões desses mesmos pescadores, que, se o veleiro vinha cheio de bacalhau e o sal todo gasto, fora devido, vangloriavam-se, eufóricos e babosos, ter sido resultado do seu muito e exclusivo trabalho.

Mas contrariamente, se finda a estação de pesca, o resultado fora menos rico, sobrado sal e espaço no porão por falta de bacalhau, a culpa foi do medroso e gálico do capitão que com bom tempo para arriar, deixava os pescadores a bordo para descansar e dormir.

Se em vez, deste modo pesadão que tenho a escrever a contar seja o que for, tivesse pena leve e capaz de, correndo ao sabor do meu pensamento, escrevesse cursiva e correntemente, não hesitaria em aqui relembrar e reproduzir mais factos passados nessa viagem, que embora simples e até simplórios, me ajudaram sendo menino, a fazer-me homem.

Só os privilegiados intelectualmente conseguem, independentemente da sua maturidade, reflectir de imediato, sem necessitar de tempo a repensar as ideias e as palavras, suas causas e efeitos, de modo a avaliar as consequências Comigo, embora não te1;1ha sido um destituído, sempre precisei de tempo para reflectir, sobre sensações e factos para atingir o que se pode seguir.

Fora o caso dum velho pescador, não pela sua grande idade, mas pela aparência em relação a mim, na perspectiva de menino, que chegado aos 56 anos de trabalhos forçados de bacalhoeiro no dóri e na salga, se se apresentava derreado a chegar ao fim.

Este homem, aos meus olhos, respeitável e respeitador, de tom de voz pausada de barítono, a mostrar-me ser de H grande, comparado aos outros pescadores ao redor, agarotados / 97 / e obscenos, era um dos doentes a quem eu tratava, no exercício de enfermagem, a que as minhas funções de oficial piloto me obrigavam, de um panarício, no tempo em que nada havia que contrariasse a infecção óssea de que sofria.

Com a unha do dedo, de uma das mãos infectada e pendurada, a parecer cair mas ainda arraigada, sem eu a conseguir sacar não obstante ter gasto já uma bisnaga de cloreto de etilo, para o dedo insensibilizar.

Então ele, a parecer-me, além de respeitável, também de aço inox, brilhante, a meus olhos inexperientes, diz-me, quase meigo: «aguente, Senhor Pilotinho, que eu vou sacar.» Fechei os olhos e ele puxou e a unha ficou no alicate.

Era no tempo em que o Estado Novo, entre os muitíssimos benefícios que dedicou aos pescadores da frota artesanal bacalhoeira, além do Gil Eannes e de tantas outras de somenos importância obviamente, dava-lhes também a Hora da Saudade pela Emissora Nacional, saltitando de terra em terra pela borda do mar de Portugal.

Estávamos no Store Bank, no noroeste da Groenlândia onde as ondas hertzianas de rádio difusão, são enormemente afectadas por tempestades magnéticas e obviamente a dificultar a sua propagação, especialmente em períodos de auroras boreais em que era de absoluta anulação. Por tais razões, a E.N. era mais adivinhada do que ouvida.

Eu fazia a minha primeira viagem à pesca, sendo o segundo piloto do S. Ruy, e o trabalho que me estava destinado na pesca era pontificar à escala no convés, de modo a suprir faltas, coordenar serviços que incluía o trabalho de 48 homens, distribuídos por 12 mesas de escala, 12 celhas, etc., etc.

A primeira operação no tratamento do pescado, é efectuada pelo troteiro que, à cabeceira do quete, um a um pegando-lhe com os dedos polegar e indicador metidos nos olhos, o corta transversalmente por baixo da guelra, seguindo num outro golpe verticalmente a descer, desde a guelra até um pouco abaixo do umbigo. Está feito o trote do inglês (Throttle).

Este bacalhau trotado, é colocado em cima da mesa de escala, onde um segundo pescador lhe separa e aproveita o fígado destinado aos autoclaves para óleo, arranca e afasta as vísceras e / 98 / com, um movimento brusco, lhe parte e arranca a cabeça para de seguida o passar, já sem cabeça e eviscerado, para o lado oposto da mesa, perpendicular e à esquerda do chefe do grupo, que é o escalador.

Este, usando uma faca de lâmina rectangular ligeiramente encurvada na mão direita obviamente, segura com a mão esquerda a badana do bacalhau atravessado com a espinha dorsal de frente para si, e de um golpe corta toda a parte superior desde o cachaço até um pouco abaixo do umbigo, além do qual, continua a cortar até ao fim da barbatana caudal mas apenas superficialmente a massa muscular, de modo o peixe ficar totalmente aberto como um livro. Seguidamente, num segundo golpe mas em sentido contrário, corta a espinha transversalmente, no ponto onde no corte anterior superiormente tinha terminado de cortar, aproveitando a curvatura da lamina para em seguida, separar a espinha por baixo, até ao cachaço. Exactamente onde golpeou a espinha transversalmente, pega-lhe com a mão esquerda, de modo a que a faca ao chegar ao cachaço após o corte, a espinha segura na mão ainda fique ligeiramente ligada ao bacalhau por pequenas esquírulas e massas musculares, que motivem o peixe poder ser arrastado pelo escalador até ao términos da mesa no bordo da celha, onde um pequeno sacão o faz cair e a espinha continuar na mão até ser atirada para o convés, na traseira do próprio escalador.

Cada três celhas, das seis que o navio S. Ruy armava junto às cabeceiras dos três quetes, a cada bordo, opera um garfeiro responsável pela lavação do bacalhau escalado, havido dentro delas. Daqui é retirado com um garfo de dois dentes e colocado no escorre dor, onde permanece durante alguns momentos a perder a água da lavação, após o que, por um escotilhão e através de mangueiras de lona, é atirado para o porão para ser salgado.

O escorredor, construído por forte tabuado, é montado no sentido longitudinal, sobre todas as escotilhas de acesso aos porões, uma espécie de palco ao redor do qual se desenvolve toda a escala.

Ora nos dias da Hora da Saudade, além destes serviços tinha também por obrigação controlar a recepção da E.N., tentando ouvir as mensagens para os tripulantes. Certo dia, escutei, mais / 99 / adivinhadas do que ouvidas, duas mensagens para o pescador, cuja respeitabilidade e estoicismo tanto me tinham sensibilizado e, apressado, corri ao porão para lhe dar a boa nova e, de cima dum hino (salt inner), chamei pelo seu nome.

Sem poder fazer quaisquer outros movimentos, além dos que havia horas, autonomamente apenas a mexer as mãos e os antebraços, deu um grunhido como a dizer estou aqui. Foi então que lhe anunciei a feliz mensagem: «Falou tua mulher e uma das filhas, a dizerem estarem todos bem e saudosos...!» Nem me deixou acabar, pois ainda eu recitava a mensagem, já ele baixava a cabeça e em voz alta a dizer: «Essas putas, mãe e filha, andam por lá a pôr-me os cornos e eu por aqui a parti-los contra os vaus e tábuas da pana!»

E foi assim que, a minha alma e espírito, se endureceram, já que o muito trabalho e a falta de dormir, fizeram o mesmo ao físico!