Embora não estivesse nos meus propósitos fazer história com estes
escritos, que nisso confesso teria um enorme prazer e honra, se para
tanto em vez das minhas limitações, a previdência me tivesse dotado com
a garra indispensável para o fazer, quero no entanto, sem pretensões,
não me limitar ao que li e transmitir além do que fui ouvindo, as
conclusões e juízos da minha própria experiência acumulada ao longo da
vida.
De certo tenho que por morte de Francisco Machado em 1911, ficara largo
espólio em veleiros, chalupas e iates do seu
armamento, herdado por seus filhos Joaquim e Luísa, para o que, é fora
de dúvida, nenhum deles ter vocação nem preparação que lhe desse o
mínimo de condições para os administrar.
O filho que em vida do pai se afastara, preferindo vender e trabalhar
fazendas, alfaiatando calças, casacos e coletes, do que laborar com ele
no armamento de navios, onde receberia além do salário para sua
subsistência, também experiência para posteriormente dar continuidade ao
que por lógica viria a herdar, afastou-se. Tal afastamento, tanto pode
ter acontecido por falta de vocação do Joaquim para as actividades e
coisa do mar e de navios, como... e não será a verdadeira razão? ... por
total e absoluta incompatibilidade de maneira de ser, ver e agir, de seu
pai que intolerante com os que junto dele trabalhavam, seria ainda mais
duro e pior com o filho que considerava, por isso, obrigado a ouvir e
calar tudo quanto ele exigisse e ralhasse.
Quem na vida se guindou económica e socialmente por si próprio, é
geralmente excessivo e exigente não só consigo próprio, como
especialmente com os familiares que com ele trabalhem, julgando-os na
obrigação de tudo suportarem.
Sobre o caso aqui em análise, julgo conveniente não nos esquecermos da
carta que escrevera ao genro!
Conheci relativamente próximo e não devo dizer bem, o velho e afável
Joaquim Machado, andava eu pelos onze ou doze anos de idade, quando
trabalhei na sua vizinhança ali à Praça da República.
Pequenino, sorridente e extraordinariamente afável, até com
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o rapazito que eu era então, de olhar vivo e dito espirituoso, a
parecer-me ao recordá-lo, inteligente, dinâmico e muito personalizado,
além de muito bem enquadrado nos limites e espaço da sua respeitável
loja.
Velho, sentado num cadeirão de verga, dito da Ilha, enquanto a freguesia
era pouca, é a visão próxima que dele tenho, a mandar o filho Quim,
corrigir alguma peça de fazenda mal vincada e recolocá-la na mesma
estante.
Naquele tempo a casa Machado que já só vendia fazendas, era frequentada
pelas matriarcas de Ílhavo que, enquanto os
maridos estavam nos bancos ou em viagem, pois havia muitos que andavam
na navegação comercial e diziam, com empáfia,
andar na Marinha Mercante, eram elas que, a seu exclusivo gosto,
escolhiam e compravam a fazenda que levavam ao alfaiate a apanhar vez, à
espera do seu homem chegar e ir só às provas.
Os Machados quando há setenta anos os conheci, julgo que há muito tinham
deixado o dedal e a agulha, usando apenas a tesoura para cortar os três
metros da peça para o fato que era, colete, calça e casaco. É claro que
às provas a esposa estava sempre presente, não só para verificar se o
casaco caía empinado, como para exigir o retalho crescido do corte do
fato, para uns calções de um dos filhos.
E a filha, a Luísa Machado? Não tenho a menor ideia dela. Viúva desde
1898, seria senhora duns 60 anos quando nasci. O marido, o capitão
Manuel Camarão tinha desaparecido no mar
com toda a tripulação do navio, quando comandava o "Aurora do Vouga" do
armamento do sogro.
É curioso recordar que, em consequência da diatribe epistolar havida
entre sogro e genro, aquele passara a olhá-lo mais amistosamente, pois
que se até aí, o Camarão se queixava de perseguição do pai de sua
mulher, em 1898 este deu-lhe, por azar seu, o comando do "Aurora do
Vouga" que desaparecera.
Os veleiros portugueses nas suas viagens, quer para o
Brasil como para o Golfo do México, porque tinham de rumar à latitude do
Pará devido à intensa corrente de água que, nas imediações daquele
golfo, se faz sentir a norte, atravessavam a grande área de formação de
tempestades tropicais circulares, no limite norte da zona tórrida, os
denominados ciclones, em cujos
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torvelinhos, os veleiros ali apanhados, raramente conseguiam fugir e
sobreviver.
Antes da navegação motorizada, quando os navios não possuíam outro
impulsor senão o vento e as correntes de água, estas trágicas ocorrências
do desaparecimento de navios eram correntias e vulgares.
Recordo, já em nossos dias, ao tempo de se navegar, com previsões e se
fazer com segurança, a tragédia da barca "Pamir"
que, não obstante provida de um pequeno motor propulsor auxiliar de
manobras, e equipado de radiocomunicações, apanhado na zona perigosa de
um ciclone a sudoeste dos Açores, não conseguiu da terrível situação
fugir e soçobrou, desaparecendo com a tripulação.
O ciclone, é uma massa de ar extremamente aquecido e rarefeito, nascido
na zona tórrida Atlântica no hemisfério norte, subitamente envolvido por
uma corrente de ar frio descido das alturas atmosféricas, a provocar-lhe
rápido e elevado movimento circular, em torno do centro nuclear. Esta
massa, em função do seu movimento circular, adquire também um movimento
de translação, primeiro a deslocar-se para oeste e posteriormente em
consonância às condições atmosféricas, para noroeste ou norte ou
nordeste, até atingir a zona fria do Árctico onde arrefecido o núcleo,
perde o seu movimento circular, comportando-se a partir daí como
qualquer depressão atmosférica.
Os meteorologistas dividem o ciclone em duas partes distintas. A do lado
leste, denominada zona perigosa não só por aqui os ventos serem a
resultante do somatório da velocidade circular com o movimento de
translação, como especialmente por a sua direcção soprar no sentido do
núcleo da tempestade. A outra zona denominada de manobra, a intensidade
do vento é a
diferença entre as forças do movimento circular e de translação, além de
os ventos soprarem na direcção dos bordos do ciclone.
A propósito de como terá desaparecido em 1898 a chalupa Aurora do Vouga
do armamento de Francisco Machado, sob o comando de Manuel Camarão,
julgo que, não pode ter sido outro motivo senão, apanhado na zona
perigosa dum ciclone.
Naquele tempo, a bordo dos veleiros portugueses, salvo algum que
transportasse carga de produtos inflamáveis, os
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únicos produtos comburentes existentes a bordo, eram a banha
de porco e o azeite, pois os óleos alimentares ainda não faziam parte da
cozinha de bordo. Mesmo até as trovoadas, com algum raio a cair ao longo
da mastreação, fendia e matava, mas o que incendiava, era facilmente
dominado com os baldes de aduela da baldeação.
Mas voltando à nossa historieta a continuar com a Luísa viúva do Manuel
Camarão.
Ora nesse tempo, quem usasse saias, isto é as mulheres, apenas servia
para ter filhos e mais a lida da casa. Só homem, que não ganhasse o
suficiente para suprir as necessidades da família, é que
deixava a esposa trabalhar, ou melhor dizendo ganhar dinheiro. Era
compromisso de honra que todos os homens se desunhavam em satisfazer. E
se viúva ainda por cima, a exigir mais recato que qualquer outra, a
estas é que ninguém, então pensaria nelas para trabalhos de resolver
problemas sócio económicos.
É bem certo que conheci mulheres e doutras ouvi falar e nomeá-las, que
não se aninharam sem luta às barreiras que se lhe depararam.
Como exemplo dou a própria Maria Rosa do Calvo, e outras
houve que por agora não valeria a pena nomear.
Porém na nossa terra, e do meu conhecimento, há uma a merecer e valer a
pena registar, nos anais dos ílhavos e gente das lides da borda do mar.
A Joana Calôa: tesa, inflexível e animosa, mais do que a maior parte dos
homens. Fora arrais de terra, na companha de seu pai o António da
Quinta.
O pai, como o próprio nome indica, era lavrador. Mas a veia e a raça da
Joana para as lides na arrebentação da praia, vieram-lhe do lado da mãe
Maria Calôa que peixeira, era vê-la de canastra à ilharga, na Lomba, à
espera do resultado do lanço.
Logo que arribado à praia, e amanhado o saco, com a canastra a
transbordar de sardinha sobre a rodilha, a pesar-lhe na cabeça, de filho
mais novo ao colo, encilhado pelo xaile, agueira a escorrer-lhe em bica
pelos cantos do oleado, ai ia ela terra adentro, por Águeda, Anadia ou
Cantanhede, apregoar "vivinha da nossa costa", como afinal aconteceu e
fizeram todas as ílhavas pois mesmo as que então já não eram, nem o
queriam parecer, por
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pretensões e ar senhoril, tinham nas suas mães ou avós, a marca da
canastra, a mostrar com honra o vínculo e herança donde vieram.
Na praia, a Joana, como arrais de terra que era, chefiava com aprumo,
concentração e voz bem timbrada de mando, a manobra da arribada. E se
debaixo de aguaceiro, caído e armado repentinamente do sudoeste, sem ser
esperado, ameaçando atravessar o barco à maresia e, ou ainda
particularmente se, por partidela da cala ou enrascadela do reçoeiro, a
rede tinha de andar à mão, era ver a Joana de saias encilhadas e mar
acima dos peitos, a incitar aos berros e gritos de mando: «Arriba e vai
acima!» Ou «Pega aqui larga acolá!». Como chefe incontestado a quem todos,
homens e bois, olhavam e em uníssono obedeciam para vencer a pancada do
mar.
Nem à muleta era mulher para virar a cara. Não para lhe pegar como o Ti
arrais Batata que, sozinho punha aquele poder de Deus, debaixo do braço,
indiferente e distraidamente, sem ajuda de ninguém. Mas este ti arrais
era tão grande que, serrado ao meio, ainda dava dois homens grandalhões.
A Joana porém pegava-lhe
igual aos camaradas homens e demais. Agarrada aquele meio
mastro de lugre avantajado, que era à muleta, firmemente postada por
cima do barco, a aguentá-lo abicado de proa à terra, para o encalhe, ou
na popa a empurrá-lo à largada, até a arrebentação permitir os remos se
afundarem no mar, a remar.
Pessoalmente não conheci a Joana que pelo contado foi
mulher rara, como poucas. De perto, mesmo muito próximo, conheci uma sua
irmã mais nova, a ti Rosaira que velhinha, mas espirituosa, dizia ter
raiva às velhas de nem as poder ver.
Foi capitôa, esposa do ti João Grilo, capitão de navios uma vida
inteira, em barcos da praça da Figueira da Foz e que morreu fulminado
por apoplexia, quando era ainda homem de trabalho, porém na sua própria
casa e na paz do Senhor.
No lugre Leopoldina, em fins de Maio de 1912, ao chegar ao Grande Banco
da Terra Nova, encontrou aboiado e apanhou um armário de sala de jantar
do paquete Titanic, que ali à cerca de um mês se tinha afundado, com
talheres da "White Star Une" que ao chegar à Figueira da Foz em Outubro,
concluída a campanha de pesca, entregou ao seu armador, Lusitânia de
Pesca.
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Destes talheres, guardo como relíquia de valor incalculável e da herança
deixada do capitão Grilo, um talher.
Ora a ti Rosária Calôa, que era velhinha mas excepcionalmente viva e
espirituosa, advertia-me, quando eu noivo da sua neta mais velha,
dizendo: "Menino, os homens, referindo-se aos do mar, enquanto novos são
uns galegos e depois de velhos são uns cães sem dono."
Mas voltando aos Machados e à Parceria Boa União, instituída nos começos
de 1912, da qual confesso pouco ou quase nada saber, servindo-me no
entanto do genérico que ao longo da vida vi e ouvi, e na memória retive,
doutras empresas de pesca quase iguais ou pelo menos semelhantes.
Ao tempo, o meio marítimo, e pior ainda o piscatório, era tão falho de
instrução e conhecimentos académicos, entre tudo e todos,
mandados e mandantes, que pouco ou nada era registado nem
escrito, mesmo por quem, coisa rara, sabia escrever, salvo alguma
transacção comercial mais vultuosa, mas da qual se apontava só o valor e
a data. Todo o resto ficava só na memória, para ser
recordado com os óbvios e inevitáveis pontos de acrescento.
A escritura notarial da Boa União, feita por tabelião em Ílhavo, tinha à
cabeça, como primeiro outorgante Joaquim Marques Machado,
que suponho
ser então o verdadeiro dono, por nela ter entrado com o espólio de seu
pai. Seguidamente vinha o nome de Luís Fernandes Bagão, cunhado de
Joaquim, por ambos casados com as irmãs Auzênda e Júlia, conhecidas no
burgo, pelas da Ribas. E por último vinha inscrito o Francisco de São
Marcos, que nessa
altura era homem de trinta e oito anos de idade, capitão da Marinha
Mercante, a comandar barcos de viagem e de pesca do bacalhau.
Também havia estado várias vezes no Brasil, onde comandou navios do
Matarazo. Mas ali por se negar à naturalização de cidadão brasileiro,
não obstante o seu comando ser efectivo, tanto em responsabilidades como
salários, perante o armador e a seguradora, tinha no entanto de trazer a
bordo consigo, matriculado um cidadão brasileiro academicamente formado
e profissionalmente encartado de capitão da marinha mercante brasileira,
função esta a que se chamava de capitão dos papéis.
Ora não me restam dúvidas que o Francisco São Marcos fora convidado,
para entrar na sociedade a fim de a dinamizar,
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assumindo a gerência com poderes para a representar em juízo, o que me
leva a crer também, pelo que conheci do Luís Bagão, ter este entrado só
para reforçar a autoridade do cunhado Joaquim,
de modo a poder destituir o gerente quando o entendessem e quisessem.
A começar, o gerente logo procurou transformar o que fora um armamento
de navios de transporte comerciais, sujeitos a angariação de cargas e
afretamentos, em uma empresa de pesca, com secagem de bacalhau, para o
que fora investido um apreciável valor em dinheiro na compra de terrenos
e feitoria de barracões, além dos aprestos para os navios pescarem.
Mas permitam-me, antes de continuar, contar o que julgo saber do capitão
Luís Bagão que só conheci já idoso e eu ainda menininho, em
oportunidades e situações um tanto ou quanto jocosas, na perspectiva dos
muitos anos passados, e que indelevelmente me ficaram gravados na
memória.
Lembro-me perfeitamente do capitão Luís Chambre, como era naquele tempo
conhecido no burgo, a morar em casa sua na Rua Direita à esquina da
Praça da República, cerca de década e meia depois da constituição da
Parceria Marítima Boa União.
Grande e forte como uma trave, era assim que se dizia então, homem para
mais de 140 quilos, já idoso, sendo ao tempo representante de seu filho
Augusto, proprietário de uma parte da Seca do Muro Gordo, e do iate
Orion construído em 1921 nos estaleiros do Rossio, em Aveiro.
O capitão Augusto Bagão, vivia em Lisboa sendo sócio gerente da empresa
Bagão Nunes e Machado Ld.ª, agência de navegação e armadora de navios de
transporte comerciais e pesca, onde o Bagão era o Augusto, o Nunes
Rafeiro também de Ílhavo e o Machado um africanista com roças em S. Tomé.
O iate Orion fora, desde a sua construção, comandado por Aquiles Bilelo,
meu tio por casado com a irmã de minha mãe, em casa de quem vivi
amiudadas vezes, a passar largos períodos, no beco da Eira à Rua
Direita, a uns escassos cem metros da moradia do capitão Luís Chambre.
Ora nesse tempo, o trabalho quer do campo como o de todos os ofícios
correlativos e misteres, incluindo o pessoal de bordo, nos trabalhos de
reparação dos navios na Gafanha a prepará-los
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para a viagem seguinte, era iniciado e terminado às trindades isto é, ao
nascer e pôr-do-sol.
Para isto, os que iam para a Cale da Vila, saíam de suas casas em Ílhavo
de madrugada, muito antes do cantar do galo, a palmilhar entre pinhal e
areal ao longo da Ria, o caminho até à Gafanha. Só algum de vida mais
desafogada, caso dos capitães, tinha bicicleta.
Entretanto no final do dia, noite dentro, depois de um dia de trabalho
insano no lombo, voltavam a casa, como o Aquiles na sua Triumph de
lanterna a carbureto, a mais das vezes e tempo apagada, e quando acesa
de luz bruxuleante, a fazer de conta que alumiava o caminho.
Às seis horas em ponto, quase como se estivesse a contar ao cronómetro,
aguardando o fora do oficial que de sextante em punho observava o astro,
lá estava o tio Luís, como lhe chamava o Aquiles, quotidianamente, salvo
aos domingos por ser dia do Senhor, à sua porta recostado à ombreira,
esperando o capitão do Orion, a inquirir do que nesse dia havia sido
feito nos trabalhos de bordo.
MaI o Aquiles, quase adivinhado, surgia no Oitão vindo da rua Nova,
envolto nas sombras da noite, ampliadas pelos luzareus dos gasómetros da
iluminação pública, acabados de atear pelo Íria, logo o ti Luís largava
o recosto da ombreira e aquele enorme corpanzil envergando gabão de
burel preto acetinado,
se pespegava no meio da rua a barrar a passagem ao Aquiles,
pondo-lhe a enorme manápula ao guiador da bicicleta a puxá-lo à valeta,
junto à porta da escada de sua casa. O que valia era o metro e oitenta e
tal do Aquiles que, abria as pernas a deixar a Triumph fugir-lhe
agarrada à mãozona do ti Luís.
E então, começava a lengalenga das perguntas, sobre o que ele
considerava devia ter sido efectuado naquele dia de trabalho a bordo.
«Já substituíram os dois panos no traquete? E a vaIuma já está pronta?
Mas os pontos ficaram todos iguais e repuxados? Ou algum mais curto e
frouxo? Cuidado, que isso pode dar partidela, e lá vai mais uma peça de
lona, cujo preço está pela hora da morte!»
E neste arrazoado, sem parar nem esperar qualquer resposta
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do Aquiles, ali ficava horas se o deixassem, a repetir o mesmo, sem
deixar o interlocutor responder.
Ora a minha tia, ou por não gostar de meter os seus meninos nas suas
tentativas de contrariar as manias do pai do patrão do seu esposo, ou
por me considerar mais espertinho e habilidoso para lidar com estes
estratagemas, era a mim que recorria dizendo: «Menino, vai buscar o teu
padrinho que está encalhado no senhor capitão Chambre!» E lá ia eu, à
semelhança de pequeno rebocador, a dar o jeito e torcidela, na tentativa
de o desencalhar. Era talo hábito daquelas abordagens, que parecia estar
já o velho e bondoso capitão Chambre, que fora também piloto-mor da
barra de Aveiro, de sobreaviso, com Aquiles virado à Praça e ele a olhar
à rua Direita.
Apesar da noite, da rudimentar iluminação dos lampiões e quase de
certeza de alguma catarata, que a idade não perdoa e
o sentido da visão é um dos primeiros a diminuir, ao avistar-me
à saída do beco da Eira, a correr em plena rua Direita, ao tempo
em que até as bicicletas eram raras, logo o ti Luís dava meia volta
a bloquear-me o acesso ao Aquiles, como se fosse, e para mim menininho
era, enorme paredão quase igual ao da meia laranja na Barra. Só que a
criança sem noção nenhuma das conveniências sociais nem medo do monstro,
não obstante ao tempo haver e se usar mais disciplina e respeito pelos
idosos, passava-lhe sob o gabão e ia agarrar-me ao casaco do Aquiles a
choramingar:«Padrinho a ceia está na mesa e já está tudo frio!» Claro
que ninguém me respondia. O ti Luís fazia ouvidos de mercador e o meu
tio, não obstante estar farto até à raiz dos cabelos, também nada dizia.
Mas eu que nunca fui pêra doce nem para me calar, nem para ficar à
espera fosse do que fosse, desatava a chorar sem dar tréguas àquela
indiferença, lamuriando: "Padrinho, tenho fome e a ceia já está fria",
ia eu dizendo e choramingando sem me calar.
Às vezes distraído na minha perrice simulada, elevava o tom do meu choro
a aumentar a intensidade dos decibéis, de tal modo que julgo perturbarem
o velho e bondoso capitão Chambre que se debruçava sobre mim qual
mastodonte, e sem alterar o seu tom de voz, dizia-me: «Menino, tu não
vês que estamos a tratar de vidas?» Ao que o meu padrinho, logo para
contemporizar
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acrescentava: «Já vamos, espera!» Claro que eu baixava o nível dos
decibéis, e tudo voltava à mesma.
Até que aos saltos, escada abaixo aparecia uma das netas, quase sempre a
Rosalina que era a mais velha a dizer: «Avozinho!... A avó manda que
venha cear! Está na mesa a arrefecer!»
Então o capitão Luís Bagão, mais lesto que a sua enorme e pesada figura
fazia pensar, dum salto e sem nada dizer, galgava o rebate da porta e o
átrio da escada. E só quando já ia a subir, fazendo ranger a escada a
cada passo e degrau, é que então já
lento, num tom de voz pouco perceptível dizia para baixo: «Até
amanhã, Aquiles, até amanhã!» E para cima: «Já vou, Júlia, já vou!»
Antes de mais devo chamar a atenção de quem isto leia para não ver no que
aqui acabo de contar, qualquer intenção risível de chacota ou menosprezo
pela figura e pessoa do capitão Luís Bagão. A lembrança destes
episódios, talvez deformados pelas
muitas décadas sobre eles passadas e possivelmente também
deturpadas, por falhas dos meus sentidos, na medida em que os anos não
perdoam e os primeiros órgãos a envelhecerem são exactamente os sentidos
que nos relacionam com o mundo exterior. Ao aqui relembrá-los, não tive
outra intenção senão enquadrá-los no descritivo histórico que me propus
recordar, isto é, o meio sócio-cultural de Ílhavo no tempo em que fora,
além da terra dos capitães, o centro vivo da pesca do bacalhau.
Aos que tiverem paciência para me ler, haverá, tenho a certeza quem
possa aventar o porquê de eu não escrever sobre algo mais interessante e
pitoresco passado na vida de bordo, pois alguns dos possíveis leitores
estariam mais curiosos em ouvir falar do
que desconhecem e são alheios, para o comparar ao dia a dia da vida
citadina. Contristado, confesso que seria isso mesmo que eu gostaria de
fazer, mas falta-me capacidade e garra para o intentar, quanto mais
escrever.
O viver a bordo em qualquer navio é tão igual, monótono e chato, que só
a pena de Saramago seria capaz de descrever. E mesmo assim parece-me
que serão poucos os que conseguem ler até ao fim o seu "Ensaio sobre a
Cegueira."
Continuando a falar da Parceria Boa União, donde cerca de quatro anos
depois da sua constituição, o sócio gerente Francisco
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São Marcos se retirou, quer por a Primeira Guerra ter eclodido, como por
Portugal se preparar a nela entrar, o que lhe parecera vir trazer graves
consequências à nossa navegação, de modo geral, e particularmente aos
navios da pesca do bacalhau, resolvendo de novo ir à emigração, para
comandar outra vez os navios do Matarazo, como já antes tinha feito.
A facilitar a sua decisão, aconteceu ter chegado a Ílhavo, por ser daqui
também natural, um outro emigrante do Brasil, de nome António da Agra,
dizia-se carregado de patacas, pois logo que chegou, começara por mandar
construir grande e apalaçada casa em Cimo de Vila, e a mostrar-se muito
interessado não só por coisas de navios, como particularmente pela
armação de bacalhoeiros.
Isto calhou às mil maravilhas, quer ao São Marcos como ao Agra, pois a
saída do primeiro proporcionou a entrada do segundo, que de imediato e
com as suas pacatas, a dinamizou.
Sem menor noção de quantas seriam as patacas, se muitas se poucas, de
uma coisa estou eu certo, é de as patacas do Agra não terem sido
colhidas à sombra da bananeira, mas penosamente ganhas de mestre
gaioleiro a percorrer a assombrosa e assombrada área líquida da Amazónia,
por rios, ribeiros e riachos do nordeste brasileiro.
Este Agra que, quanto dele sei, não deve estar no céu, aos dez onze anos
embarcou de mocinho de câmara, como era ao tempo apanágio dos ílhavos, e,
rapaz ainda, fez-se um grande marinheiro e, logo de seguida, contramestre
e dos tesos, não daqueles que levavam a tripulação à sua frente, mas dos
que a levavam a reboque, atrás de si, com bom ou mau tempo. Era vivo,
diligente e, numa viagem ao Pará, quando lá saiu pela segunda vez a dar
uma volta por terra, logo avisou o capitão do navio que não iria
comparecer à hora da partida para Portugal, e por lá ficou.
Ali, pela sua desenvoltura e rasgo de autêntico marinheiro da arte
redonda, depois de embarcar uma primeira vez numa gaiola, de tripulante
não qualificado, logo lhe ofereceram o lugar de contramestre de uma
delas, e na viagem seguinte assumira o posto de mestre gaioleiro.
As gaiolas do Amazonas e seus múltiplos afluentes são embarcações de
volumosa e desproporcionada casaria,
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relativamente às suas obras vivas, de pontal e calados diminutos de modo
a fazer o transporte de passageiros, mais ou menos bem acomodados com as
suas bagagens, além de muitas encomendas levadas aos mais remotos e
recônditos lugares e seringais da área líquida amazónica. Claro, haver
gaiolas dos mais variados portes e dimensões, desde as vaticanas,
verdadeiros paquetes a ligar
especialmente as três grandes cidades amazónicas, Pará, Manaus e
Santarém, até às gaiolas que navegam sobre as lamas servindo os
seringais.
Ora o Agra, além de mestre, fora também, quase a vida inteira, armador e
proprietário gaioleiro, não do tipo das vaticanas, mas de embarcações
mais modestas e de menor valor, mas que deram para enriquecer.
Tinha razão o Francisco São Marcos, ao prever o que seria óbvio. A
Grande Guerra iria ter enorme influência na nossa navegação comercial e
também na pesca do bacalhau.
Se, por um lado, houve imensos desaparecimentos de navios e respectivas
tripulações, sem se saber as causas, por não ter havido testemunhos
presenciais, mas que de certeza terão sido bombardeados, como em tantos
outros casos, que presenciados se sabe ao certo terem sido afundados por
submarinos ou navios de guerra alemães.
Aos primeiros diziam-se desaparecidos e a estes naufragados.
Por outro lado, o conflito de 1914-1918 além do que previra o Francisco
de São Marcos em tragédias, perdas humanas e navios, trouxe também ao
bacalhau pescado pelos portugueses enorme procura e venda, por falta de
concorrência dos habituais exportadores estrangeiros, que em guerra não
o puderam pescar, por isso o peixe dos nossos veleiros, não só se
vendera todo facilmente como por bom preço.
Mas fora sol de pouca dura, que o armistício de 1918, veio pôr tudo como
anteriormente ou melhor, para os exportadores estrangeiros, que se
modernizaram com navios de arrasto e obviamente para os importadores
nacionais, que o iriam obter mais facilmente e por menos dinheiro.
Quando desenvolvia estas memórias ao sabor das lembranças contadas por
minha mãe, quando eu era menino, sobre a morte
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de seu irmão Manuel Nunes Pelicas, criado por ela depois da morte de
minha avó, aos trinta e três anos de idade, no lugre Caia, não sabia que
dessa tragédia havia relato escrito.
Fora um amigo, pescador como eu fui que, sabedor do meu interesse por
tudo quanto a memória não conseguira reter, me trouxe em oferta, cópia
da edição de 26 de Dezembro de 1918 do semanário "Brado" de Ílhavo,
antecessor do actual "Ilhavense", que inseria uma crónica do trágico
afundamento do lugre metido a pique por submarino alemão,
no dia 22 de
Setembro de 1918, e onde pereceram seis tripulantes, em cujo lote, além
daquele meu tio, incluía também um outro tio, o irmão mais novo de meu
pai: José São Marcos Júnior.
Tal crónica fora escrita com base no relato verbal de um dos
sobreviventes da tragédia, o contramestre do Caia, Manuel São Marcos,
meu pai.
Não quero nem devo prosseguir estas memórias, sem uma chamada de atenção
e protesto contra o habitual esquecimento e até menosprezo pela Marinha
Mercante Nacional, escrínio de heróis e sacrifícios pela nação e
Portugal.
Este alheamento ou menosprezo atingiu o seu máximo na minha terra, este
Ílhavo de marinheiros, que sempre teve o mar por tradição, onde, por
subscrição pública, fora erigido monumento aos seus mortos na primeira
guerra mundial, mas onde ali não consta um só nome dos muitíssimos
civis que heroicamente morreram no mar, por Portugal.
Mas segundo o cronista do "Brado", erradamente disse que o Caia fora
torpedeado, quando meu pai lhe contara, terem sido bombardeados, cujos
tiros atingiram e mataram, no convés do veleiro, seis dos seus
tripulantes. Nenhum capitão dos submarinos alemães desperdiçaria um
torpedo para afundar um inofensivo veleiro, que, para mais, logo arriou
todo o pano no convés, em pura demonstração de submissão e incapacidade
de fuga.
Na segunda guerra 1939-1945, que eu próprio sofri na pele, aí sim, meu
pai fora torpedeado e, como tal, não só o navio Catalina, como toda a
tripulação, sucumbira ao brutal torpedo, sem ninguém ter escapado para
contar.
O Catalina era um pequeno vapor a carvão, registado na praça do Douro e
afretado à Comissão Reguladora de Comércio de
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Bacalhau, de modo a, fazendo base em St. John's na Terra Nova, percorrer
os pequenos portos de pesca, angariando bacalhau seco.
Um dia, ao entardecer, profusamente iluminado de modo a ver-se e
conhecer-se a enorme bandeira portuguesa pintada a cada lado do casario
do navio, além do nosso pavilhão nacional drapejando no pau a ré,
atestando a nossa neutralidade,
reconhecida por todos os países em guerra, saiu de S. John's rumo ao
sul, em rota para Grand Banque Harbour para carregar algum bacalhau seco.
Dado o comandante do navio ter sido recentemente hospitalizado, o
Catalina saiu sob o comando do oficial imediato José Cajeira,
assessorado pelo seu oficial piloto, João Silveira, e levando a bordo,
como era uso e costume, um pratico terranovense, conhecedor da área do
porto para onde seguiam, pelo norte do arquipélago St. Pierre e Miquelon, cuja rota feita entre ilhas e ilhotas na baía do dito porto.
O navio, profusamente iluminado, contornou pelo largo o Cape Race,
totalmente apagado, mas observado por um grupo de militares canadianos
instalados na casa do faroleiro, logo de seguida fora deixado de ser
visto, isto é desaparecendo.
Esta pormenorizada descrição fora-me contada, cerca de um ano depois de
ocorrida, em casa do próprio pratico desaparecido também no Catalina,
pela sua viúva quando eu, sendo segundo piloto do navio João Corte Real,
fazia exactamente o que antes fizera o Catalina, carregando bacalhau
seco para a CRCB.
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