Mas permitam que me afaste um pouco da história da pesca do bacalhau,
não só porque as memórias de um pescador não se encerram no meio
ambiente em que trabalhou, no meu caso que por lá andei e passei trinta
anos do meu viver, mais de outros tantos depois desses, já levo em outro
meio social e profissional a sobreviver! Além disso, um qualquer
pescador por o ser, não deixa de ser também na sua essência um homem,
talvez pequeno aos olhos e conceito social, mas só na aparência, porque
por dentro os homens não se medem aos palmos.
Mas deixemo-nos de filosofias, embora façam bem à saúde mental de
qualquer um, para retomar a história da minha família, não por ser minha
propriamente dita, mas por caracterizar, segundo me parece, o próprio
Ílhavo (cagado e escupido diziam as matriarcas quando eu era menino).
Depois de ter referido Cristóvão de São Marcos, meu avô que eu já só
conheci velhinho e caquéctico, falecido aos 88 anos, deixem-me que fale
de minha avó Maria Rosa de Calvo que sendo mais nova do que seu homem,
como ela dizia, morreu aos 99 anos de idade.
Apesar dos seus verdes anos, era mexida e esperta que nem um alho, além
de disciplinada e ambiciosa, virtudes e defeitos que nascidos com ela,
foram crescendo e apurando-se em casa do padre Calvo, de quem herdou a
alcunha, no amanho e afazeres da lavoura que era muita, em contraste à
pobre vivência dos
tristes e acanhados casebres dos pescadores da borda do mar e da ria, de
chão coberto de junco, por becos e carris.
Logo que apareceu o primeiro filho, a Maria Rosa tornou-se dona e
mandona, não apenas de portas adentro, como em tudo que dissesse
respeito à orientação social do agregado familiar, particularmente no
rumo dos filhos para a vida.
Assim, porque nenhum deles desse mostras nem propensão para a Igreja,
onde até o padre Calvo daria orientações e ajudas, foram todos para o
mar. Mas para o mar largo, dos navios de alto
bordo e arte redonda, verdadeiros castelos da nobreza maruja da mercante
e desse mar de Cristo. Para isso a Maria Rosa não
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deixou nenhum dos filhos pôr o pé em ramo verde, pois quem dá
o pão dá a criação, era assim antigamente, e até as duas cachopas
filhas do casal, além da costura e da lida da casa, tiveram de aprender
o "bê-a-bá" no convento de Cimo de Vila com a «ma
soeur Cláudia».
Dos rapazes sei que, pelo menos os dois mais velhos, levaram algumas
palmatoadas do bondoso padre José António, mais
frequentes no segundo do escalão etário, por mais rude a
aprender, do que resultara não ter ido além de contramestre.
Os outros saíram à mãe, diligentes e ambiciosos espicaçados
por ela, pois além da primária, frequentaram também as aulas náuticas no
capitão do porto, salvo o quarto que, aos dez as seis anos imigrou para
os Estados Unidos, razão porque o mais velho que deu motivo a esta
crónica, em 1894 já era piloto.
Ora foi exactamente este filho dos meus avós paternos,
Francisco de seu nome, que em 23 e 24 de Março de 1912, como
sócio gerente da Parceria Marítima Boa União, associado a Joaquim
Machado e Luís Fernandes Bagão, comprou e emparcelou dois
terrenos de cultivo e com eles fez a Seca do Muro Gordo.
A propósito lembro que estas duas parcelas de terreno que
constituíram a Seca eram, a mais do norte, que se assoalhava ao
longo da rua que vem do Adro a seguir pela ponte Juncal Ancho,
passando pela Gafanha d'Áquem e seguir pelo areal até à Mota,
na Gafanha da Senhora da Maluca, era da avó e do tio, padre
Benjamim, do professor José Cândido Ferreira Jorge também
já falecido. Enquanto a outra porção,
que se estende para sul
marginando a Ria, fazia parte de uma propriedade do Dr. José Gonçalves
Vieira Malaquias, aquele mesmo que, mais tarde, veio
a doar a sua casa de habitação no Adro, frente à Igreja, ao Centro
Paroquial onde funcionou uma mestra, espécie de infantário que ao tempo
ensinava cantarolando a doutrina para a primeira comunhão, hoje chamada
de catequese.
Esta sociedade comercial, armadora de navios, fora constituída
tendo por património o espólio deixado por morte de Manuel Francisco
Machado, um grande proprietário ilhavense, de
navios de transportes comerciais, que naquele tempo eram ditos,
de navios de viagem. Esta designação tentava distingui-los dos navios
bacalhoeiros que, no nosso meio se dizia, fazerem apenas
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duas viagens por ano, isto é, uma de Portugal para os bancos e a segunda
de lá para Portugal, como se entre a chegada e a partida para a segunda,
o navio estivesse amarrado a algum trapiche.
Contrariamente a este conceito, os veleiros andavam normalmente à
deriva, com o ferro suspenso, salvo estando os dóris no mar com
nevoeiro, se o capitão observava algum deles a fazer boa pesca ou ainda
de noite com a tripulação a descansar. Fora disto o navio andava à
roleta.
Ancorado verdadeiramente, com o ferro bem unhado no fundo, só mesmo com
mau tempo. Não com a «breesely» que ouvíamos aos americanos, a
significar vento mais vivo que o normal e impróprio para arriar os dóris,
o que nós generalizamos como mau tempo. Porém mau tempo de facto era,
quando com quatro ou cinco manilhas de corrente na água, seguidas de cem
metros de cabo de arame e depois a amarra de manila, emboiada a meia
dúzia de braças do molinete, com o machado ali sempre à mão para a picar
se, especialmente debaixo de tormenta, o navio ameaçasse soçobrar.
Se o navio andara todo o dia com a gata (âncora) suspensa e o cômputo de
pesca fora medíocre, então mudava-se de pesqueiro, segundo obviamente o
critério do capitão. Dizia-se «ir de emposta», como por exemplo ir da
Terra Nova para a Gronelândia ou vice-versa, isto é, largar um local de
pesca, ainda só a navegar quatro ou cinco horas durante a noite, à vela
obviamente que ao tempo não havia outro meio de locomoção, para ir de um
para outro espalco (sparkle diziam os americanos) pescar também.
Este vocábulo fora aportuguesado por deturpação do que os nossos
pescadores ouviam aos americanos que após um dia de pesca pobre sempre
diziam "Empty away", vou embora de mãos
vazias. Na pesca à linha tudo foi à imitação dos americanos, porém
deturpado no aportuguesamento do que ouviam.
E isto não só deturpado pelos ignaros e primários pescadores como
especialmente por sabichões e letrados, quer por ouvirem as coisas da
pesca do bacalhau referidas em inglês como até por os grandes negócios
dos importadores Bacalhoeiros, na sua grande parte serem efectuadas
através da Inglaterra.
Mas vale a pena esmiuçar o conceito das duas viagens anuais atribuídas
aos veleiros da pesca do bacalhau, para melhor
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esclarecimento de quem se interessa por estas coisas, sendo a primeira
de Portugal aos Bancos e a segunda, daqui a Portugal.
O antigo Livro dos Eventos de bordo, com o evoluir dos tempos e a força
da lei, fora sendo substituído pelo Diário de Bordo onde um dos oficiais
pilotos, disso encarregado, ia registando além das ocorrências de maior
menção na singra dura, também as condições de tempo e mar, em cada hora,
como a posição geográfica ao meio dia.
Este diário de Bordo no final da viagem, era entregue na Capitania do
porto onde o navio entrasse, juntamente com a restante documentação do
navio para ser visada.
Mas os anos foram passando e o mundo evoluindo, até que as velas
substituídas pela propulsão mecânica, além de, posto
cobro ao isolamento que até aí as tripulações dos navios viviam,
equipando-os com sistemas de telecomunicações e, o velho Diário de
Bordo, substituído por três diários: Diário de Navegação ou Náutico,
Diário de Máquinas e Diário de TSF.
Todos estes documentos no final de cada viagem, depois de visados pelo
comandante do navio, dão entrada nas respectivas repartições marítimas
da especialidade.
Ora nos veleiros de pesca, os capitães por considerarem o Diário de
Bordo algo devassado por ter de ser entregue na Capitania, onde alguém
interessado podia coscuvilhar os locais e condições onde tinha feito sua
pesca, por isto e não só, logo que entravam nos Bancos e ancoravam,
davam a viagem por terminada e resumidamente escreviam, iniciamos a
pesca.
A partir daqui, passavam a fazer a sua agenda pessoal e intransmissível,
por secreta onde descreviam pormenorizadamente tudo quanto, no ano
seguinte aos próprios ou a outros, pudesse servir e orientar.
Salvo que tivessem de viajar da Terra Nova à Gronelândia ou vice-versa é
que o Diário de Bordo era de novo utilizado até voltarem a reiniciar
pesca.
Mas permitam-me que, volte à Boa União, a tentar dela falar sem
trabalhos de pesquisas e investigação, por arquivos ou tombos que julgo
sobre ela nada haver, porém apenas por mim a tentar compará-la ao que de
outras ouvi e vi, serem todas iguais ou semelhantes.
Assim, cogitava eu dando tratos à imaginação, a descobrir
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a filosofia desta parceria, sabendo dela apenas que o sócio Joaquim
Machado, sendo alfaiate de profissão, era filho legítimo
do abastado proprietário de navios, Francisco Machado então falecido e
que ao longo da sua vida, só com o nome de Machado registou catorze
veleiros, além de muitos outros, entre iates e chalupas, com nomes
diferentes obviamente, de que era também armador e proprietário.
Nesta inquietação e dúvidas, sem saber o que era a Boa União nem atinar
para onde me virar, como o tolo em cima da ponte indeciso se avançar ou
recuar, ou ainda melhor dito por mal comparado àquele lendário capitão
de navios, meu camarada de profissão, que manietado por um dos seus
tripulantes, revoltado contra a implacável disciplina do chefe, o
apanhara a sós no escuro, a desoras e manietara, deitando-o ao comprido
em cima da amurada, espumando ódio e raiva, enquanto o ameaçava de
atirar ao mar. Nesta tão precária situação, mas conjecturando pela
demora do ameaçador e enraivecido tripulante, não ser este capaz de ir
além daquela ameaça, logo o manietado capitão, recuperada a serenidade e
a sua voz de comando, lhe ripostou de modo calmo mas firme, alto e bom
som: "Ou fora ou dentro..., deitado em cima da borda não é posição de
capitão estar!"
E continuava eu assim a discorrer e a cismar quando de súbito no "Bora
te Beio", quase como bóia de salvação, me apareceu, no estilo fluente e
cativante que lhe é peculiar um dos Graças Malaquias, de pena leve e
graciosa, a contar um singular episódio
havido há mais de um século, com dois seus longevos familiares, bisavô e
trisavô, um dos quais para meu espanto e encanto era, nem mais nem menos
quem eu, desde há muito e por todos os cantos rebuscara, isto é, o
armador Manuel Francisco Machado.
Ora no seu escrito que intitulou de "Uma grave lacuna", o tetraneto de
Machados solicitava aos ílhavos seus conterrâneos, espicaçando-Ihes os
brios, para procurarem por sótãos e baús das velhas casas de seus avós,
papéis amarelecidos pelo tempo e pó, para com esses escritos poder-se
constituir, algum dia, a história trágica e marítima da memória da Nossa
Terra.
Eu solicito ao apelo e gosto de filosofar, logo parei a debruçar-me no
meu passado. Mas por mais fundo que tenha tentado ir, quase nada
encontrei, além de profunda escuridão. E não
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obstante a extraordinária e íntima sensibilidade e desmedido apego à
família, dos que relembrei, eram poucos, naquele meio, os que sabiam o
nome dos seus maiores directos, além de mãe ou pai velhos, aos avós e
bisavós, com quem de pequeninos ficavam,
embora deles soubessem todas as histórias de viva voz contadas de
geração em geração passadas, mas de certo deturpadas por que quem conta
um conto lhe acrescentar um ponto.
Anais escritos por gente do mar, e muito especialmente das pescas, onde
predominava com a natureza morta, a boçalidade e a deturpação de tudo
quanto se ouvia e dizia, jamais houvera quem os escrevesse, nem tempo ou
pó que os amarelecesse.
Entretanto essas histórias de viva voz contadas, através de muitas
gerações, chegaram por fim a mim, que em vez de as
recontar como fizeram os meus maiores, resolvi pretensiosamente
passá-las ao papel, isto é, escrevê-las no intuito e desejo de algum dia
amarelecerem.
Mas porque possa haver quem não tenha lido o original de "Uma grave
lacuna", permitam-me, mesmo sem licença do
autor, que tão rápida como sucintamente reconte o que muito me
sensibilizou.
Luísa Marques Machado, filha do abastado e conhecido armador de navios,
Francisco Machado, casada com o capitão Manuel Camarão, na ausência do
marido, ao tempo embarcado em veleiro português fazendo cabotagem na
costa do Brasil, decidiu mandar, como era afinal uso e costume nas
famílias dos ílhavos, onde as mulheres sempre foram no lar como ainda
hoje são, quem põe e dispõe, funcionando como cabeça de casal, construir
a sua casa ali à rua de Espinheiro, cujo aspecto então se destacava de
todas as outras das redondezas, quer em volume,
imponência e requinte de construção, como obviamente no preço.
O pior, se é que pode dizer-se assim, foi que concluída a obra, na hora
de pagar os oito contos de reis em que importou
a mansão, faltaram à Luísa quinhentos mil reis para o total da
importância do custo, pelo que teve de os pedir emprestados ao pai.
Este, pelo que hoje dele sabemos, não seria propriamente um mãos largas,
mas não restam dúvidas que emprestou à filha o
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que esta lhe pedira. No entanto, do que já não estamos tão certos é se a
acompanhar os quinhentos mil reis emprestados, não terá havido sermão e
missa cantada da parte do velho armador, com forte reprimenda à filha,
por ter desperdiçado tanto dinheiro na construção duma tão luxuosa e
apalaçada moradia.
Ou será que não lhe ralhara? É possível que não, porque ontem como hoje,
independentemente de todos os princípios da disciplina e da moral,
incluindo a isenção e a austeridade, acontece de modo geral o pai ser
mais benévolo para as filhas, como as mães o são também para os filhos.
O que sabemos de facto, por este seu tetraneto, foi o velho Machado ter
escrito para o Brasil ao genro, por quem não nutria grande simpatia, o
que me leva a inferir, talvez por ciúme do genro lhe ter levado a sua
menina, que na opinião do sogro possivelmente a não merecia.
Ora na carta, o Francisco não só lhe debitava o empréstimo que fez à
filha, como o invectivava considerando-o único culpado e responsável
pelo sacrilégio de malbaratar tanto dinheiro em luxos e espaventos, em
vez de o investir na construção de um veleiro, com o qual não só daria
trabalho a quem dele precisasse como lhe serviria para ganhar mais
dinheiro.
Mas, pretender analisar a personalidade, seja de quem for, pelo conteúdo
de uma simples carta, é leviandade que a todo custo gostaria de evitar.
No entanto, a matutar que não será por este insignificante pecado, que
irei cair nas profundezas do inferno, deixem-me que junte ao que dele
li, a opinião do que já vivi, para aventar que o falecido armador
Francisco Machado fora o perfeito e autêntico protótipo de "self made
man". Obcecado pelos seus objectivos e fins, aliado a grande firmeza e
determinação de carácter, pujante em qualidades de trabalho, tipo de
gente incapaz de aceitar a colaboração seja de quem for, senão de quem
trabalhe obediente sem opinião própria e muito menos de alguém
recalcitrante que, pela ordem natural e cronológica das coisas, um dia
lhe virá a suceder, na incapacidade ou morte, no que sozinho ao longo da
vida criara e construíra.
Mas vale por agora esquecer o pai, suas virtudes e defeitos, para
realçar a filha a quem daqui, cento e tal anos depois, quero
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saudar pela sua visão e largueza de horizontes.
No tempo e no meio em que os ílhavos eram gente de lutos eternos, de
viúvas a dormir, pela morte do marido, em chão escalvado e frio como
penitente, sobre o colchão sem palha, e cruz negra pichada na porta da
rua, ela construíra a sua requintada moradia que hoje alberga além de um
infantário, a própria sede do Centro de Acção Social do Concelho de
Ílhavo, o CASCI.
E já agora que a água ainda bate na beirada do banco, a correr da
fundura para a superfície, trazendo alimento ao plâncton do nosso
quotidiano, a nos manter e vigorar, não quero deixar esta cala sem
louvar também os netos da Luísa por, noventa anos depois da construção
que motivou o contencioso epistolar dos seus maiores, quando já em época
de desonesta e furiosa especulação imobiliária, que nada respeita e tudo
confunde e sacrifica, até o dever de solidariedade, venderam a casa de
estimação de sua avó, considerando o fim e o destino que lhe iria ser
dado, a preço módico e acessível às possibilidades do CASCI.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
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