Quando imaginava ter chegado ao fim destas memórias, iniciadas com
esforço e alguma relutância, que julgara não conseguir acabar, eis que
me ocorre poder-lhe dar continuidade, mencionando o ocorrido no período
último da minha vida profissional.
Será que, quem escreve é no propósito de ser conhecido ou se
notabilizar? Longe de mim tal pensar, não só pelos longos meses e anos
que na vida levei apenas virado para mim próprio a pensar, em solilóquio
de lábios cerrados, para não ouvirem o meu falar.
Corria o ano de 1989, e eu a chegar aos setenta de idade, quando pela
entrada na EPA de novos e estranhos proprietários, por alienação das
famílias Salgueiro e Esteves, fora constituída nova administração e eu,
de moto próprio, substituído na direcção dos serviços de armamento, e
nomeado gerente da pequena sociedade comercial Reboques e Transportes
Marítimos Lda. cuja acção e exploração, desde há muito, de mim
dependiam, sem no entanto delas assumir as responsabilidades de gerente.
Esta pequena sociedade, proprietária de uma embarcação
rebocadora, em acção no porto de Aveiro, construída em 1956 na Figueira
da Foz, sob projecto e orientação dum engenheiro de construções navais,
a que fora dado o nome de "Foz do Vouga".
A esta minha nova situação, espécie de prateleira para os meus ainda
muito válidos setenta anos, acumulava também a qualidade de conselheiro,
sempre à mão, dos inexperientes
novos entrantes nas lides de operações de pesca e navios, que no entanto
tinham larguíssima experiência na comercialização dos seus produtos.
Como quase tudo na vida, esta pequena sociedade tinha uma história que
me absteria de referir e contar, se não tivesse larga predominância, no
que hoje é tido e chamado de porto de Aveiro.
Desde 1934 que, por iniciativa de Egas Salgueiro, em nome da Empresa de
Pesca de Aveiro, o velho rebocador "Vouga Primeiro" movido a vapor com
fornalha a carvão, era mantido
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na Laguna, em regime de afretamento, não obstante o seu porto de registo
e titulo de propriedade no Douro. Até que em 1939, coordenando quase
todos os armadores dos navios da pesca do bacalhau, com porto de
armamento na Laguna, constituíram a sociedade Reboques e Transportes
Marítimos Lda. e registaram aquele rebocador em Aveiro.
A formação da muito velha Laguna de Alavário, tida hoje por Ria de Aveiro, não pode ter tido outra origem senão, no choque das águas dos
rios, criados pelo degelo do último período glaciar, contra a corrente
marítima dita das Canárias, que frente à Ibéria, corre a sul, como
último braço do Golfo Stream.
Tal choque, que começara por revolver as areias do fundo oceânico,
frente a baía que então, ali se abria, entre as serras de Espinho e da
Boa Viagem, foram-se avolumando, em lomba e crescendo por cerca de
20.000 anos, até emergir acima do Oceano aonde, a onda de maré tanto a
descobria, como a fazia desaparecer. Até que, sempre avolumando, fora
crescendo e, em meados do segundo milénio da era de Cristo, cerrara
hermeticamente.
Porém de quando em vez, mercê do avolumar e crescer das águas
provenientes dos rios e invernias, conjugadas no exterior à fúria das
ondas do mar em tempestades, a lomba era fendida aonde mais fragilizada,
usualmente entre Ovar e Mira, até a Laguna esvaziar, para depois, ao que
chamavam de barra, a acumulação de areia, novamente a fechar.
Entretanto, o rodar dos séculos e a evolução, chamara atenção de
Luís
Gomes de Carvalho
que as barras, sendo ocasionais e errantes, o melhor
seria fixá-la, construindo um
esporão perpendicular à linha de praia, onde o mar embatesse,
corrompesse a lomba e fizesse barra.
Mas como sabemos, a barra aqui aberta, por cavada à enxada, cerrou
logo, após esvaziadas as pestilentas águas, para ir abrir mais a sul, à
Vagueira, não obstante depois ter regressado de novo ao esporão.
Caprichos que o Oceano tece e só raros conhecem que, a sua
hidráulica não é constante nem linear, antes variáveis, em força e
sentido para onde correm, devido às posições relativas dos focos
pressionarmos atmosféricos que lhes dão vida.
Quanto a mim, a Barra de Aveiro, só passara a ser digna deste
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nome, cerca de 1930, ao ser edificado o curto molhe norte, suporte da
duna de S. Jacinto, paralelo ao paredão de meia laranja, entre os quais,
a onda de maré atlântica passou a entrar, avolumando
as águas salobras ali nas imediações, a no refluxo, ter massa e
velocidade capaz de varrer as areias e mantê-la aberta.
Por os condicionalismos desta abertura da Laguna ao Oceano, mesmo ainda
depois de ser barra, toda a navegação, e era muito pouca, que ali se
movimentava, fazia-o, quer nas entradas como nas saídas, sempre e só na
maré enchente.
A navegação comercial era quase nenhuma, salvo algum iate ou palhabote,
a transportar pedra ou outros materiais
de construção para as chamadas obras da barra, ainda que as estatísticas
da JAPA (Junta Autónoma do Porto de Aveiro) e da Alfândega, registassem actividade para justificar a sua
existência e benefício público.
Só os veleiros, registados e destinados à pesca do bacalhau, por aqui
terem o seu porto de armamento e respectivas secas, sofriam da barra
tormentos sem fim, até por os armadores, obcecados na ideia de poder
trazer dos pesqueiros mais alguns quintais de bacalhau, foram, de
construção em construção, crescendo as dimensões aos veleiros que iam
construindo e, obviamente, aumentando os calados, em contraposição às
condições da barra que continuava a ser simples regueirão.
Naquele tempo, não obstante já haver gente esclarecida e dinâmica, que
os vanguardistas em Portugal foram sempre poucos e até apedrejados, o
ambiente era inerte e até retrógrado, de modo a que a evolução e os
modernistas, eram então coisa só para americanos, gente grosseira, ida
dos países aonde não souberam ou puderam sobreviver.
Enfim, nesta nova situação, de pequeno empresário de Reboques e
Transportes Marítimos, Ld.ª, sem equipamentos, dinheiro, nem associados
dispostos a investir, nem tão pouco a se responsabilizar, nada mais
consegui fazer senão manter cuidadosamente o que lá encontrei.
O facto de, na sociedade haver um maioritário, mercê de quem eu era
gerente, anulava a competição dos seus restantes pares, pois só o que
decidisse era possível fazer.
Na vida de marinheiro, campeão pescador segundo Henrique Tenreiro, a viver
sobre as águas do Árctico, consegui amealhar
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um pecúlio, não por justa remuneração ao produzido, ma apenas por o
viver que levei, não me deixar tempo para o gastar além de, também não
ter condições para o bem administrar, do que resultara apenas
aferrolhar.
Entretanto, veio a Revolução, que eu também glorifiquei, mas com ela
sobreveio a falperra e obviamente a inflação, fomentada por uma horda de
gente que deixara crescer as barbas, vestira-se de maltrapilho e
económica e socialmente, uma rebaldaria.
Disto, ainda consegui salvar alguns bens móveis e os imóveis,
também obviamente, por ao tempo já não ser marinheiro, antes viver e
trabalhar em terra firme.
No referente à sociedade de reboques, havendo um dos sócios interessado
na venda dos seus dez por cento do capital, comprei-lhos, ficando eu com
a metade enquanto a outra, obrigado a integrá-la na própria sociedade,
por determinação estatuária.
Isto fora, minha tentativa para influenciar os outros sócios, a
dinamizar e expandir a sociedade, com o aval e responsabilização de
todos.
Puro engano meu, pois só encontrei quem me empurrasse a seguir sozinho,
a julgarem-me parvo e otário, e a sociedade sem condições de sobreviver,
condenada a morrer.
Mas voltando à influência e aconselhamento de meus pais, especialmente
de minha mãe, a me afastar dos caminhos que levavam os ílhavos ao mar e
que em mim próprio, chegara a ter
tal influência que acabei por criar certa antipatia pelos homens
do mar, comparados em seu aspecto grosseiro, oposto aos frequentadores
do ensino superior universitário, de palavra fácil e elegantes.
Repensando no que um dia gostaria de vir a ser profissionalmente,
reconsiderava que sendo filho de gente do mar, o meu sangue seria mais
salínico do que o correntio
nos homens. Então recordava que quando menino, à hora do banho na Costa
Nova, com o mar mais picado do que o usual, varar as ondas e aparecer,
eu e outros da minha igualha, para lá delas, como dizíamos lá fora, de
modo a que o Ti Pataneco banheiro, de cima da lomba, fazendo das mãos
megafone, gritar a plenos pulmões" olha que o mar faz ressaca, a puxar
muito para fora!" Ao que eu e os outros dizíamos «raio do
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velho Pataneco julga-nos matolos»!
Neste cogitar de recordações, mas a desejar continuar os estudos para um
dia vir a ser um tranca, acabei, em maré de azar meu, por vir a ser
pescador desse mar de Cristo, por longos trinta anos, a penegar aos
baldões e açoites das tempestades.
Entretanto agora que os anos passaram quase sem eu os ter sentido, a já
pouco me importar do presente e só a rememorar o ido, há muito passado,
a vir-me à mente coisas e factos da infância, hoje avolumarem mais do
que então.
Fora o caso de pelo Estio, nos cálidos e abrasadores dias de Julho e
Agosto, troadas as doze badaladas no sino grande, da igreja matriz,
anunciando a hora do jantar, que o almoço então era a refeição das sete
da matina, e a saída dos três carteiros a palmilhar em passo corrido,
cada um a sua área, a parar e bater cá
e lá, à porta de quem tinha o seu homem emigrado nas Américas, já que do
Brasil era coisa rara, pois os que para lá emigravam, mesmo os que
tinham sido bons esposos e pais, lá depressa tudo esqueciam no colo e
braços das mulatas.
Porém, coisa raríssima que alvoraçava toda a Vila, mas que só de longe
em longe acontecia, e curiosamente mesmo antes dos carteiros saírem a
porta dos correios, era ouvirem-se brados, gritados sem se saber, vindos
donde, nem por quem, a plenos pulmões, que logo eram repetidos e
bradados por quem longe, os ouvira. Cartas do Banco...!! Cartas do
Banco!!!
A este alarido, sempre repetido por todos quantos os ouviam, nenhuma
porta ficava fechada e todos, velhos, adultos e crianças vinham para a
rua, na ânsia do carteiro e ser contemplada ou pelo menos saber, quem
fora a sortalhona e correr lá saber notícias.
Pela rua Direita acima, a inflectir à Fontoura, era área do Carlos
Valéria que, de passo ligeiro e firme, na sua pequena estatura, passava
sem ninguém saudar, nem a ninguém responder, empertigado, pois ele era o
carteiro, que poderia
levar na sua bolsa de couro, alegrias às matriarcas que à porta
de suas casas, esperavam ansiosas a sua passagem. E se alguma era
contemplada com o que muito ansiava, sorrindo de orelha a orelha,
agradecia a dizer" muito obrigada senhor Carlinhos". Ao que ele
sorumbático e mudo, nada respondia continuando o seu caminho.
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Levadas à terra, por trola francesa ou iate canadiano, que terminada a
safra, hasteava no mastro da mezena o seu pavilhão nacional, fazia rota,
era da norma para, passando à fala, receber cartas de dóris que, a
quatro remos se lhe atravessassem na proa, para levar, estampilhar e
expedir nos correios do seu porto destino.
Mas entre os portugueses, obviamente falo dos capitães que
era quem mandava nas cartas como em tudo, os de temperamento gentil a
pensarem na família, tinham sempre uma escrita e à mão para, na primeira
oportunidade, mandar um beijo e noticias à esposa. Nesta altura, todos a
bordo o podiam fazer se estivessem disponíveis.
Porém a maioria, era desprendida dessas coisas, abandonados até de si
próprios, indiferentes a tudo o que fosse além da pesca, pieguices
diziam desdenhosamente.
Neste memoriar de coisas, vividas de menino, além das cartas do Banco
que nunca se apagaram da minha memória, gritadas de modo a que os seus
efeitos ecoassem por todos os escaninhos da vila, aonde vivia a maior
parte da ignara gente, a que eu tão íntima como intrinsecamente
pertencia, outros brados bem gritados, ainda ecoam na minha memória de
velho, a recordar o menino.
Navio à barra...!! Navio à barra...!! Para de imediato ser corrigido, se
o tempo adregava de andar enfarruscado e a prometer, ou mesmo a ser de
invernia: Anda navio à barra!! Anda navio à barra!!
Comentado por velhas e novas, com esfuziante alegria, em todos os
centros sociais da terrinha, desde as farmácias, tabernas e barbearias,
como em todos os sítios aonde duas mulheres se cruzassem, e em vez da
usual saudação do "adeus", ambas parassem a comentar a nova, a que logo
outra ou outras mais, parando a elas se ajuntavam, sendo suposto ali
tudo ser dito, desde o aparecimento do navio, donde nunca mais tinham
vindo noticias nem nada sabido, mais à sorte do capitão e à sua vida
familiar, ao que se seguia os da companha, por demais longe que fossem,
desde Caminha à Fuzeta, agora ali chegados a aguardar condições e águas
vivas para entrar.
Se o tempo calhava de andar calmoso e o barómetro alto
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(instrumento comum e peculiar nas casas do burgo), o veleiro chegado,
aproximava-se a duas milhas da praia e largava ferro nas sete braças de
fundo, a ficar aguardando para, na cabeça das águas vivas, se fazer à
barra e entrar.
Assim ficava o navio à barra!
Mas se o tempo, adregava de andar duvidoso, com o
barómetro a não se fixar, ainda mesmo com calmia, ou se o vento a soprar
de rajadas, até mesmo do norte cujo pronuncio é de bom tempo na nossa
costa" porém a precisar de cautelas,
que às vezes cresce mais do que a conta, a soprar rijo e zarro ou
mesmo ainda, com o tempo calmoso de aragens ou remandiolas, com a
ondulação a crescer de fora, em aviso de tormenta lá pelo noroeste a
aproximar-se, assim o navio era mantido a navegar, de pano reduzido e
até rizado, pronto a cape ar.
Nestas condições e circunstâncias, o veleiro chegado, ao avistar terra
distante, primeiramente vinha na bordada de dentro, a aproximar-se o
mais perto possível da pancada do mar, a procurar ser reconhecido por
alguém que, na praia o avistasse e, de seguida, ia na volta de fora, a
emarar.
Andava então o navio à barra!
Mas como reconhecer o veleiro e saber o seu nome?
Primeiro, porque na praia a desoras, só mesmo quem com o
mar tinha intimismo e afinidades. Obviamente que à distancia e com o
pano largo, todos os gatos são pardos, e do nome, não obstante bem e em
grande pintado em ambas as amuras e no painel da popa, não é possível ser
lido ao longe.
O observador, porém, limitava-se a reter na memória determinados
pormenores que, genericamente, caracterizassem o veleiro.
Antes de mais, o número de mastros e a sua inclinação: verticais,
caídos a vante ou para ré, mais ou menos acentuadamente. O mesmo se
passava com os mastaréus. A cor dos calceses e se a borda falsa era
horizontada, alquebrada ou de acentuado tesado. Até quais os panos
envergados e largos. Se no mastro da ré envergava o triângulo ou a
mezena, pois esta era coisa rara na maioria dos capitães.
Com estes dados retidos na memória, entrava na primeira taberna por onde
passasse. Em voz alta descrevia aos presentes
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o que tinha presenciado, e logo um ou outro, dos ali a bebericar,
dava o nome do navio e até pela armação o nome do capitão.
Ora nos idos de 1934, quando os dias ainda decorriam lentos
e remansosos, a parecerem todos iguais, com o de ontem,
precisamente igual ao presente e este, tal e qual como iria ser
o seguinte, a passarem calmosos e sem ruídos de aplausos
ou contestações. Quando as ocorrências passadas além das
vizinhanças ou nos recônditos caminhos do mundo, só chegavam,
se a nós ligados e a dizer respeito, por tardios telegramas ou nas
gazetas das grandes cidades, muito depois de ocorridos.
Enfim, há mais de oitenta anos, no tempo e na terra dos ílhavos
onde os homens quase não dormiam em suas casas, salvo um
diminuto lote de fabricantes vistalegreiros e lavradores, mais o
sacristão e o coveiro, como também algum mestre carpinteiro que
usualmente virava telhados, os alcunhados de trancas por serem
quem, todas as noites, fechava a porta da rua da sua casa. Gente
total e absolutamente diferente, dos homens do marzinho que
passam os seus dias com a água acima da cintura, para não falar
na nobreza dos ílhavos, constituída pelos marinheiros do mar
alto que, sisudos, sóbrios e tímidos, porém desempoeirados, se
bamboleiam desajustados à vivência de caminhar nas ruas da sua
terra, onde todos nasceram mas nem todos ali são sepultados.
Corriam assim os dias, com Setembro a chegar ao fim e os
bairradinos, feitas as vindimas e passada a Senhora da Saúde, a
chegarem a banhos à Costa Nova, quando uma madrugada ao
lusco-fusco, no lugre Santa Mafalda em viagem dos pesqueiros,
banco Fyllas da Groenlândia, marcaram, os quatro relâmpagos
do farol de Aveiro, por sueste quarta a sul e o prumo, a sondar
as vinte e quatro braças de fundo.
Eram águas quebradas, com bom tempo e visibilidade, o
vento a soprar do nordeste bonançosos e o mar de ondulação
fraca de fora.
À ordem do capitão
João Pereira Cajeira, por alcunha
«o
Caveira» que no mar e na pesca especialmente, todos quantos mandassem,
eram alcunhados a caracterizar a família por
gerações, as duas estênsulas, a mezena e a giba foram carregadas
e o lugre, que era bom veleiro e andarilho, continuou de proa no
rumo, tocado ainda pela bujarrona, a vela d' estai, o traquete e a
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vela grande.
À proa, com o queixo fincado entre as mãos e debruçado no bico, o vigia
de olhos bem abertos perscruta o horizonte, enquanto um outro pescador,
talvez um «chairman» encostado à amura de barlavento, segura entre mãos
os seis quilos de chumbo, do prumo de sonda.
Na alheta do mesmo bordo, o contramestre afaga na mão entreaberta, o
seio da linha de prumo e a seus pés, a celha onde toda a linha está
colhida.
Ao leme dois marinheiros, um a cada lado da roda e, porque o vento era
macio sem implicar esforços, só um deles, força cá e lá, segurava as
malaguetas e manobrava.
Próximo, mesmo ali à amurada de barlavento, o piloto de olhar
indiferente a parecer alheio ao que a seu redor se vai passando, por
saber o capitão, embora na câmara, mas a ser quem atento e em voz alta
comandava a manobra.
No entanto o Piloto, de quando em vez, em voz bem timbrado e tom sonante
manda... "Sonda!" O pescador à proa, lança a chumbada fora da borda, por
barlavento, ao mesmo tempo que à ré o contramestre, abrindo a mão que
contém a linha, deixa-a correr, ao mesmo tempo que baixinho vai rezando
cada nó que lhe passa entre os dedos, até sentir o prumo bater no fundo
do mar e ele gritar, alto e bom som, capaz de todos ouvirem, "14
braças!"
Continuando o veleiro de proa ao farol e a baterem, cá e lá o fundo, à
ordem do piloto, ao chegar às oito braças, já só com a vela d' estais e
o traquete em cima, ordem do "Caveira", que entretanto fora subindo a
ficar no convés: "Leme todo a bombordo!"
Lento, mesmo muito lento por quase parado, o veleiro vai à orça, paneja
mas sempre a torcer, balanceia e enfia no vento. Parado, descai
ligeiramente e ordem de, carregar pano e largar a gata e duas manilhas e
meia, na água!
Feito cobro à amarra, pronta para correr, no caso do navio garrar ou
para virar e fazer-se ao largo, se o vento ou mar crescessem. Assim
ficou Santa Mafalda à espera e aguardar condições, incluindo água para
se fazer à barra e entrar, o que se calculava ser, se Deus quisesse e
segundo parecia, na próxima
Lua.
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Isto mesmo pensavam os novatos, pouco experientes das contrariedades da
vida, a verem tudo cor de rosa, pois não é só o uso do cachimbo, mas
acima de tudo, o tempo da sua usança que faz a boca torta.
Seria nas próximas águas ou nas seguintes ou noutras ainda mais tarde,
iam filosofando com os seus botões os mais experimentados e homens
feitos. É que nesta reentrância da costa, entre Espinho e a Boa Viagem,
a que chamam de Mar de Aveiro, a ondulação vinda do noroeste, parece
aqui nascer e crescer na praia, mais do que em qualquer outro lugar
deste mar de Cristo. Além disto, não se pode esquecer ainda, da quadra
equinocial e os seus rumores.
A dúvida crescia em iguais proporções à ansiedade, cada vez mais
avolumada, a tornar-se obsessiva a ideia da chegada.
Os pescadores, incapazes de esperar pacientemente, vão preparando os
haveres pessoais para à chegada, não haver demoras nem perdas de tempo,
logo saltarem em terra a caminho de casa, onde a mulher ansiosa, mas
mais comedida, o espera também.
Esvaziadas as enxergas, que são bens pessoais, cuja palha ainda emerge
ao redor do navio pela calmice, e ensacadas com as mantas, os oleados e
as botas, os pescadores dormem agora, como sempre vestidos mas sobre os
sacos e as tábuas do beliche.
As horas e os tremendamente longos dias, foram passando, a
rebentar a paciência e os nervos, de quem ansioso espera.
Um ou outro, de madrugada, incapaz de conciliar o sono, salta acima a
céu aberto sem ser chamado, por excitado e em busca de refrigério.
Com o sol a despontar por cima dos montes distantes e do casario quase
ali, o vento a arejar de terra, cálido, inebriante e tranquilizador, a
encher-lhe o peito. Inspirando mais forte e profundamente o ar da
madrugada, traz-lhe à mente os eflúvios e promessas da companheira que,
há mais de cinco meses a viver isolado, dela se separou.
Enfim as marés, com o passar dos dias foram crescendo à aproximação da
Lua Nova, e no primeiro dia de águas vivas, o Vouga Primeiro, fazendo
espessas nuvens de fumo, com o
João Marnoto
ao leme, a remirar todos os
pormenores ao redor, sai
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lento a barra, a passar a meia laranja, com o Zé Maio de vara empunhada,
empoleirado em cima da borda, por sotavento, apalpando o fundo, sob o
olhar atento do mestre e do Samuel Maia, piloto da barra.
A parecer cada vez mais lento para quem ansiava, o rebocador vem até ao
banco por fora dos molhes, onde torce por bombordo e aproa a lesnordeste,
seguindo ao rumo oposto a que tinha até ali vindo, assim, no enfiamento
de entrada da barra.
No convés do lugre, cerca de duas milhas desta manobra,
quarenta homens expectantes e silenciosos, sustendo a respiração, seguem
atentos sem o mais pequeno gesto, tudo quanto à distância o rebocador
vai fazendo e, desanimados pelo novo rumo, tentam adivinhar se nesse dia
tudo já estaria arrumado.
Mas eis que um de entre eles, de olhar mais vivo e penetrante, desata,
primeiro a balbuciar excitado, para de seguida mais afoito
quase a gritar aos companheiros, ter o rebocador dado meia volta e
aproar de novo à saída, com o Zé Maio ainda empunhando a vara a sondar.
Calados e quedos, com medo de qualquer manifestação empecer o desejo que
lhes vai no íntimo, todos voltaram à expectativa...
Com o Vouga Primeiro cada vez mais lento, a parece-lhes parado, quem
sabe se propositadamente, a verrinar-Ihes a ansiedade, que o João
Marnoto pela calada era torto que nem um arrocho. Até que, passado o
banco, já por oeste dele, solta um rufenho silvo, mais adivinhado pelo
vapor que lhe sai do apito, do que do próprio som que emite.
No lugre, um enorme brado repercute-se no ar, saído de quarenta almas e
vozes em sufoco, pela espera da sentença. E meios loucos, ou melhor
eufóricos da descompressão provocada pelo sinal do rebocador, para se
prepararem, pois ir-se-ia tentar
o movimento de entrada, desataram todos em corrida, cada um ao seu
posto. O contramestre mais um magote, ao molinete a suspender o ferro,
enquanto ao bote, emboçado pela popa, saltam dois de retenida colhida ao
pescoço, pronta a lançar ao rebocador, a passar a amarreta.
Ao chegar à fala o Samuel Maia, empunhando o megafone, na aba da ponte
do rebocador, depois de saudar o seu camarada João
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Cajeira, anuncia-lhe haver um cabeço de quinze pés, mas com estas
condições de mar, talvez se pudesse fazer alguma coisa? Era
além da informação, a inquirição ao responsável se concordava irem
trabalhar? Ao que o capitão do lugre, prontamente lhe respondeu:" A água
ainda corre muito para dentro, a crescer! Vamos para a barra!"
Passada e talingada a pesada amarreta de manila, do rebocador à proa do
veleiro, com o chicote fortemente abotoado no mastro do traquete, e a
alça do outro chicote no gato de disparo do Vouga Primeiro. Depois de
engolido o ferro, ai vai o trem com
dois homens na roda do leme do lugre, de proa à barra.
Na meia laranja, apinhada por uma multidão, na sua maioria de mulheres
familiares da companha, vindas dos vários centros piscatória da costa,
que inicialmente entusiasmadas e quase
eufóricas durante os preparativos do trem de reboque para a entrada, mas
agora com a aproximação ao banco, que elas bem sabiam quantos lá tinham
ficado, todas mudas a rezar, balbuciando baixinho preces e promessas aos
santos da sua devoção, para que passe o traiçoeiro banco.
Lento, arrastado pela amarreta ligeiramente bamba, de seio metido no
mar, o lugre vem-se aproximando até que ao chegar ao
banco, as ondas começam a crescer em altura, pela aproximação
da quilha do navio ao fundo do mar, transformadas em vagas ruidosas,
rebentando e correndo a cada lado do costado, a encapelar para o convés,
por cima da borda e o navio a perder seguimento, agarrado ao fundo no
cabeço de areia, onde estava encalhado.
Á inércia que o Vouga Primeiro trazia, logo João Marnoto
pede ao telégrafo toda a força a vante, a fazer cabeça ao veleiro que, a
cada vaga que o envolve, o faz bater brutalmente com a quilha na areia,
sacudindo-lhe a mastreação e todo o aparelho – enxárcias e estais – a
vibrarem como guitarra do Apocalipse.
Na meia laranja, mais ainda a multidão emudece e até as mulheres mais
experientes pela idade, a engolirem as Aves Marias e os Padre Nossos,
não obstante alguma nova e histérica, a gritar pelo Senhor Jesus dos
Navegantes.
Corridas as quatro ondas, transformadas em outras tantas vagas
alterosas, que poderiam ter feito desgraça, atravessando
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o Mafalda à maresia e à aguagem, se não fosse amarreta e o rebocador a
aguentá-lo. Embora sabendo nada mais puder fazer,
ainda o João Marnoto grita pelo tubo acústico ao fogueiro:" Abre a
válvula toda, Abel!" Ao que o cabo-verdiano ripostou: "Stá toda senhor
mestre João, na dá mais!"
Nesta situação e tremenda expectativa, com a estopa de algumas costuras
do costado, a ser sacudida pelas vibrações e sacudidelas do navio... eis
que, pela barra fora a se aproximar, uma enorme onda a crescer pela
barra dentro, muito maior do que todas as outras que tinham passado,
grande e alterosa de meter medo, a parecer vociferar no seu omnitonante
ruído" aqui quem manda sou eu!"
Era o Andaço, gigante e grandalhão, irmão gémeo de Adamastor. Só que,
enquanto este fora petrificado na ponta meridional do continente negro,
aquele, irrequieto e mexido, condenado a deambular pela imensidão dos
oceanos, excitado por Eolo, a só se fazer notado quando nos recortes
costeiros, a despedaçar tudo quanto apanhe e se lhe oponha, envolve o
frágil veleiro pela popa, levanta-o e empurra-o pela barra dentro.
No convés, respira-se fundo a dilatar o peito oprimido! E na
meia laranja, a multidão esbraceja eufórica e possessa a gritar: "Está
dentro! Está dentro!"
Como se nada tivesse acontecido de anormal, o lugre sempre rebocado
contorna o bico de S. Jacinto para nordeste, com o rebocador a parar a
máquina de modo, em espera que, com o seguimento, o rebocado se fosse
aproximando, para lhe passar um cabo curto, mais ajustado à manobra na
Ria, ao mesmo tempo que ordem para largar amarre ta que, depois de alada
e colhida em largas aduchas, ficou no convés do Vouga Primeiro a secar.
Mas a maré estava feita e na barra, por baixo, até já corria de vazante,
pelo que o veleiro encalhou na volta do Muranzel, muito antes de chegar
à seca onde iria ficar amarrado.
Ao lugre acorre meia centena de barcos de todos os tipos, incluindo
dóris e bateiras, mas ninguém atraca nem salta a bordo, à espera da
alfândega que também representa a saúde, que virá com o representante da
EPA, armador e proprietário do navio, isto é o patrão.
Eis porém que, a quatro remos, surge e atraca a bateira com o
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Egas, o Zé Marinheiro despachante, e o Pesador de alfândega.
Não havia novidades na saúde nem na ordem, e depressa o
convés se enche de gente.
Os sacos de lona e as goropelhas dos algarvios, emergem do rancho e o
convés, depressa se transforma num verdadeiro pinhal queimado.
Nesses sacos e goropelhas encardidas, ensebadas e mal cheirosas,
impregnadas dos cheiros apodrecidos das pestíferas águas das cavernas e
também do peixe frito da cozinha, instalada no conjunto do próprio
rancho, onde todos vivem e até alguns morrem, não vão só roupas e coisas
pessoais, mas também restos de pestilento tabaco mata ratos, fornecido
pelo navio, como
algumas meadas de gagim e linhas alcatroadas, umas dadas pelo capitão a
premiar os bons pescadores, e outras ensacadas à sorrelfa, a fazer da
mesma conta.
O pessoal que vai para o comboio, como os algarvios, nazarenos, os de
Cova, da Gala e alguns de Buarcos, baldeiam a sua bagagem para o barco
saleiro, ali atracado e pronto a seguir ao Côjo, para daqui, cada um
deles levar ao comboio. Os dali pescadores da região saltam, cada um à
sua bateira tripulada pela mulher e filhos, que o levará a casa.
A bordo fica o contramestre, a mulher e algum filho de mama, mais três
ou quatro moços e verdes solteiros, prontos a qualquer emergência.
Logo pela manhã, muito cedo, no dia seguinte, despregam-se as escotilhas e com meia maré de enchente, chega o Vouga Primeiro,
que traz a bordo uns quantos tripulantes avisados na véspera para a
manobra. Com estes, vem também Luís Castanho, um velho e derreado antigo
marinheiro pescador, já então não um galego mas um cão sem dono, depois
de uma vida, desde os onze anos de idade, embarcado em tudo que aboiasse
,à pesca do bacalhau.
O lugar de vigia no Santa Mafalda era-lhe assegurado pelo sobrinho, nem
mais nem menos que o capitão João Cajeira, conseguindo desta maneira
arranjar alguns tostões e uma ou outra oncita de tabaco da pana, em vez
de ter de esmolar metido nos rebanhos das segundas-feiras das almas e
apanhar por iscas às portas da farmácia e da Igreja.
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Iniciada a manobra do desencalhe, da cama de areia feita pelas correntes
de maré, enchente e vazante, em torno do navio, com o rebocador a puxar
e a torcer dum lado para o outro, eis que com a ajuda da própria água,
chegado o preia-mar, descola e fora levado até frente à seca, para de
novo ali torcer dando meia volta e aproar à enchente.
Era já noite com a maré a vazar com força, quando acabou a amarração, a
ficar com o ferro de estibordo estaiado pela proa fora e um ancorote na
alheta do mesmo bordo estaiado à vazante também. E à terra, com quatro
lançantes e dois espringues.
Assim, bem amarrado e ao largo, ficou e iria permanecer por longos meses
o Santa Mafalda, com Deus e o Luís Castanho de guarda e vigia à
amarração.
Na manhã seguinte, muito cedo, mas já dia roto, chega o Egas, de
bicicleta à seca. Débil e pequeno de estatura, um fraca tripa como
diziam as matriarcas da minha terra, em oposição aos homens fortes e
grandes como castelos e associações.
Chegado e sem uma única palavra de resposta aos cumprimentos de Alberto
Amândio, faz-lhe sinal com a cabeça para o seguir, e lesto, como era em
tudo, dirige-se para o dóri de trol, meio encalhado na praia e salta-lhe
para dentro.
O Amândio forte, atarracado e todo abanante, a mostrar dificuldade em se
locomover, segue-o. Empurra o dóri para a água e salta para a popa, a
pegar no remo, que à ginga o leva à ré do lugre.
Ali chegados, o Egas, leve e saltitão, põe um pé na falca e salta, por
cima da borda, para o convés e ligeiro, dirige-se à escotilha da ré, já
aberta, a observar o que pretendia, e que à chegada no dia anterior o
capitão o informara de os porões estarem abarrotados e com empanque.
Ora o vigia, velho, achacado e bronquítico, sentado à proa na braçola da
escada do rancho, à revessa da gaiúta, ao vislumbrar aquele estranho e
pequeno vulto em correria à ré do navio, levanta-se brusca e
apressadamente, tão depressa quanto lho permitiam os seus males e,
arrastando os tamancos a tentar cumprir o seu dever de guardião, desata
a chamar, ao que pela sombra da sua fraca visão, lhe parecera: "Ó
rapazote! Ó rapazote!"
Mas o Egas, como qualquer outra fraca tripa, pois ninguém
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gosta de ser assim, quanto mais atirarem-lho à cara e ainda por cima,
saído da boca dum seu assalariado, não respondeu, julgo por ofendido.
Entretanto, o Amândio, depois de saltar a borda para o convés, onde na
mesa das malaguetas deu volta ao chicote da boça do dóri, aterrorizado
na sua subserviência, pelo que estava a ouvir chamar ao Senhor Egas, o
Patrão, enquanto corria nos seus modos amaneirados, chamava: "É ti Luís!
É ti Luís é o patrão home de deus! É o senhor Egas!"
Mas o Castanho, surdo que nem uma porta ou a fingir que o era, continuou
no cumprimento do seu sagrado dever e missão de vigia e guarda,
arrastando os tamancos em direcção à escotilha, continuava a chamar: "á
rapazote! á rapazote!"
E só quando o Amândio, chegado por trás dele lhe pôs a mão no ombro a
puxá-lo e a dizer: "É ti Luís, é o patrão home de deus. É o senhor
Egas!"
É então que o Castanho, aparecer ainda ser o marinheiro que em tempos
tinha sido, levanta a cabeça em ar desassombrado e autoritário de quem
conhece e sabe dos seus deveres e ofícios, a ripostar: "Aqui não há Egas
nem Viegas! Nem eu nunca tive patrão! A bordo quem manda, é só o
capitão!!
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