Memórias de um pescador – pp. 31-46


II. Bacalhau com batatas

Antes de prosseguir nestas memórias parece-me não descabido nem despropositado, levantar a interrogação donde virá a nossa predilecção e gosto pelo bacalhau salgado e seco, espécie pescável e de vivência nas zonas árcticas tão distantes da costa ocidental da Ibéria onde habitam além de nós portugueses, também os galegos e os bascos, gente com igual gosto e preferência alimentar.

Por onde terá então começado tal inclinação e simpatia?

De certeza que não fora a partir de meados do século XIX, quando à imitação dos colonos americanos, especialmente dos nossos imigrantes ali, em que retomamos a sua pesca, depois de mais trezentos anos dela afastados, porém sempre desejosos do seu sabor cujo hábito há muito nos era alimentado pelas importações dos bacalhoeiros.

Será então que esta nossa inclinação ou preferência gustativa terá sido iniciada quando em meados do século XIV, depois de encontrado o arquipélago dos Açores, descobrimos os bancos a que demos inicialmente o nome de mares do bacalhau? Também não creio que este entendimento seja o mais correcto.

Tal apetite gustativo alimentar, é quase certo ter sido iniciado no bacalhau pescado nos mares do nordeste Atlântico, não pelos povos agora ribeirinhos aqueles pesqueiros, que obviamente não necessitavam de o salgar, mas e mais provável, pelos habitantes da Ibéria onde as jazidas de sal abundam, quer pelos que deram posteriormente lugar a Portugal, à Galiza e até às Vascongadas, áreas e povos estes, onde os gadídeos salgados continuam muito apreciados.

Inicialmente, quando buscava no meu entendimento o que agora aqui venho a expor, imaginava que esta nossa inclinação e preferência, nos tivessem sido inoculada pelo pescado dos povos ribeirinhos aqueles mares do norte que depois de o pescar viessem, por aí sul abaixo com ele salgado, vendê-lo ou trocá-lo por mais sal.

Mas é evidente faltar a esta concepção alguma lógica por, não só aquela gente do norte europeus, como ainda hoje, não gostar de comer bacalhau salgado e seco, antes e sempre, tal e qual ele / 32 / sai do mar. Além disso para o exportar em época tão recuada da história, não precisava apenas de ter peixe, mas também sal para o tratar.

Ora in illo tempore, os navios para navegar à vela e muito especialmente em zonas de tormentas e tempestades, necessitavam de ser lastrados para conseguirem alguma imersão, que o mesmo é dizer estabilidade, e o melhor material para o fazer era o sal que além de mais, servia também para conservar um ou outro pescado que, no decurso das viagens fossem capturando. Já não falo da precisão para cozinhar as refeições, pois estas feitas com
água salgada não precisariam de sal.

Assim pensando julgo que, terão sido os povos meridionais, ibérico mediterrânicos que muito antes, talvez mais de um milénio, de iniciarem as viagens que os levaram às Descobertas, navegando a norte a pescar, utilizaram o sal para desidratar o peixe, aumentando-lhe deste modo o tempo da sua conservação.

Neste evoluir, a manter os bacalhaus salgados, comprimidos no porão, uns sobre os outros, pressionados pelos balanços do navio, de modo a evitar que entre eles se formassem bolsas de ar a desenvolver as bactérias de putrefacção, chegara entretanto e por fim ao local de destino onde descarregado, foram concluindo que, para o manter mais tempo em bom estado, seria vantajoso retirar-lhes mais humidade expondo-o ao sol e ao vento, a que se denominou por secagem do bacalhau.

Julgo que os tratados negociados pelos nosso reis D. Dinis, D. Afonso IV e D. Pedro I com os ingleses, são consequências lógicas de práticas antiquíssimas, dos povos deste rincão à beira mar plantado, que só muito mais tarde veio a denominar-se de Portugal e cujos habitantes iam aos mares, cerca das Ilhas Britânicas, à pesca dos gadídeos morua e eglefin que ali então abundavam em compactos cardumes.

A sua história que nunca se fará, penso seja à semelhança da história de todas as antigas gentes que desbravaram o nosso planeta e deram novos mundos ao mundo, até chegar ao que herdamos e temos.

Que terá sido perigoso e duro, arrostar com as inclemências da tormenta da Biscaia, tripulando frágeis barineis, não me restam dúvidas, porém naquele tempo, a vida humana era tão precária / 33 / e de tão pouco valor, em relação às condições e tempo de vida actual, que o melhor é não pensarmos mais nisso. No entanto, não posso deixar de me lembrar que todos nós, seres viventes, quanto mais temos mais queremos, não só dinheiro, como diz o ditado sobre os ricos, mas também as mais diversas coisas consideradas boas na vida, como por exemplo, pouco trabalho, muitas férias, ajudas vindas seja de quem for, etc, etc, etc.

A pesca de bacalhau pelos portugueses, segundo a minha modestíssima opinião de pescador dos mares árcticos, a confinar no Atlântico, desde o George a oeste, passando pelo S. Laurence, Terra Nova, Labrador, Groenlândia oeste e leste, Islândia, Ilha dos Ursos, Spitzberg e oeste da Nova Zembla no mar de Barentz, penso podermos dividi-la em três períodos longos e distintos.

O primeiro, desde tempos muito remotos que julgo indetermináveis, no nordeste Atlântico, de certeza pelo sul das Ilhas Britânicas podendo no entanto ter sido ainda mais a sul, possivelmente, muito antes do chefe lusitano Viriato no século III a. C. ter sido denominado de «Amicus populi Romani», até pouco depois de D. Dinis, sexto rei de Portugal, em 1279, ter subido ao trono.

Este nosso monarca, figura ímpar não só entre os reis da primeira dinastia como de todos os homens notáveis nascidos em Portugal, no tempo e na longa vigência, desde D. Afonso Henriques a D. Fernando, viveu desde a mais tenra infância e cresceu na corte de seu avô materno D. Afonso X o Sábio, rei de Castela.

Senhor de primorosa educação intelectual e formação pessoal rara, aos 18 anos subiu ao trono por morte de seu pai D. Afonso III.

Fora, não apenas poeta como os nossos historiadores sempre e só o elegeram quando dele falaram, mas muito mais do que isso o maior estadista daquela dinastia.

D. Dinis fora além de um intelectual, homem de acção. Inicialmente contra a oligarquia da Igreja, detentora de tudo quanto era arável, essência do próprio Estado e explorado apenas na razão que bastasse para a manutenção farta dos conventos e ordens monásticas. Daqui as suas lutas contra o poder papal de quem retirou a posse das terras produtivas, distribuindo-as pelos / 34 / servos da gleba, a criar a burguesia rural e com esta a Nação portuguesa.

Porém ao referir o rei D. Dinis não fora de modo nenhum para nomear a sua grande figura e obra de acção confinada, no dizer dos seus historiadores, que ao longo de sete séculos e meio, o nomearam sempre e só por rei letrado e poeta, autor de: «Ai flores de verde Pinho», trecho entre nós comum, desde sempre ao referirmos e louvarmos os homens como celebres, apenas os mencionando por terem escrito, bem ou muito bem, coisas que nada de bom ou de mal trouxeram ao homem comum no seu dia a dia.

Do que fez o rei D. Dinis e que eu gostaria aqui de mencionar fora a criação da Escola Marítima de Lisboa, para ensinar aos pescadores das nossas praias, isto é, da borda do mar, não apenas a arte de construir caravelas mas acima de tudo, as artes de as tripular e nelas ir para além de terra à vista.

Para isto D. Dinis contratou o genovês Manuel Pessagno que mais tarde fez almirante de Portugal, com a obrigação de com ele trazer mais vinte seus conterrâneos.

Génova no século XIII, era o centro da ciência astronómica e o modo de a aplicar à navegação do largo, a calcular pela altura do Sol a latitude do lugar.

Ora a Escola Marítima de Lisboa, que viria a ser a base dos Estudos Gerais, não deve ter tido nem anfiteatro, com bancadas nem tão pouco auditórios, seria a bordo da nau acabada de construir que os rudes e pouco esclarecidos pescadores, apenas e só a ver, aprendiam a executar e fazer.

Terá sido num desses ensaios laboratoriais, julgo eu que ao sabor da ondulação do mar e do vento, em caravela capitaneada por um dos vinte genoveses contratados pelo Pessagno, perdido de vista o Cabo da Roca e açoitada por ventos de qualquer dos dois quadrantes do leste, que alguns dias depois a sua tripulação avistara terra e verificara ser apenas uma ilha que, só cerca de dois séculos mais tarde seria baptizada de S. Miguel ou Santa Maria.

Já em 1351 na carta editada em Génova, o arquipélago de que essa primeira ilha, então descoberta, fazia parte, ali era mencionada, bem sei com outro nome, possivelmente até, o do / 35 / capitão genovês que capitaneava a cara vela da Escola Marítima de Lisboa que em primeiro lugar lá chegara.

Entretanto e não obstante naquele tempo a população de Portugal ser muito reduzida, isso não impediu que alguns dos nossos avós, à mercê de Deus naquela primeira ilha descoberta se tenham radicado e a partir dali, outras ilhas daquele arquipélago, encontradas, e indo sendo povoadas.

Obviamente que tal gente, sem outros afazeres que não fosse o trabalho árduo e duro pela sobrevivência, porém livre de tutela egoísta de violentos suseranos, durante o dia amanhava
a leira que aos poucos fora conquistando ao natural vulcânico e duro solo, em um clima regradamente húmido para subsistir. Entretanto durante a noite, nas longas horas do descanso, entrecortadas pelas exigências das necessidades fisiológicas, único acto aprazível ao seu inteiro dispor, era a comunhão de corpos sem peias nem receios de pecar, antes ansiosos e desejos, por necessitados das ajudas, da procriação, em se multiplicar.

E isto a prolongar-se por mais dez gerações com o número deles sempre em crescendo, não só a povoar como a descobrir as restantes ilhas que formam o arquipélago e a habitá-las. Assim se foram passando os anos até que na corte de D. Duarte, o Eloquente, daquelas ilhas se começara a falar, porém mais a quem pertenciam do que propriamente o que ao mundo poderiam representar. Do que se dizia então, à boca pequena, era já lá haver famílias com largos teres e haveres em propriedades e de muita estima. Fora então que o Infante D. Henrique, com fama de mesquinho e avaro, mandara em 1445 aquele arquipélago o seu fiel Gonçalo Velho Cabra!, com o propósito, não de o povoar, conforme ouvi na escola quando por lá passei, mas para assumir a sua posse em nome do Rei de Portugal.

Neste discorrer, sem qualquer apoio documental ainda que apócrifo e extemporâneo, usualmente só por antigo tido como real, e a que supostos historiadores, quer recontando-os como lhes acrescentando algo de si, lhes deram créditos de verdade, só possível na imaginação de quem, não os sentindo, apenas imaginou.

Antes de falar das Descobertas, cujo substantivo encerra o sentido de incidental ou fortuito, não posso deixar de manifestar / 36 / a opinião que, entre os séculos XIII e XIV depois de instituída a Escola Marítima de Lisboa, uma coisa seria uma cara vela tripulada por simples marinheiros pescadores chegar ou atingir qualquer ponto indeterminado do Oceano Atlântico, e outra totalmente diferente era, essa mesma caravela ou melhor dizendo um qualquer galeão, comandado sob as ordens do rei de Portugal, atingir ou aportar à Ilha da Terra Nova situada muito para além do meridiano que veio a ser firmado em Tordesilhas.

Quase sem nenhum esforço, porém num apelo à imaginação, começo por pensar num dia de céu limpo e tempo calmoso, um pequeno grupo de pescadores, com um ou outro marinheiro entre eles, tripulando uma pequena e rudimentar cara vela, a pescar à roleta ao redor duma qualquer das ilhas do grupo central do arquipélago, que só século e meio depois viria a ser chamado de Açores, onde o planalto marítimo de qualquer delas é extremamente exíguo para qualquer modalidade de pesca incluso à linha de mão, eis que ao largo mas relativamente perto, avistam enorme cardume de tonídeos que pelo tamanho dos que viam saltar, logo se aperceberam ser patudo, perseguindo qualquer pequeno isco para se alimentar.

Não obstante os pescadores bem saberem, pela sua experiência, ser este peixe muito difícil de capturar, senão lhe for atirado isco vivo, para o fazer parar e emergir, e que só nesta situação pode ser engatado pela guelra e puxado para bordo do navio pescador, foram no entanto no seu encalço e apesar da corrida, cá e lá um ou outro exemplar, capturar.

No ar corria branda aragem do sueste, que entretanto fora crescendo mas moderado, coisa comum nestas paragens com origem nas altas pressões e a que os marinheiros açorianos chamavam de caparrinho.

Assim, foram. indo noroeste dentro, não obstante o cardume de patudo há muito ter metido a cabeça ao fundo e desaparecido.

Os peixes capturados de tamanhos cada um a rondar os cinquenta quilos, foram postejados e salgados com o sal que normalmente lastrava as embarcações, não apenas para lhe aumentar o calado a diminuir a deriva quando navegando a vela, como para a salga do peixe que cá e lá iam pescando e com que se alimentavam e sobreviviam. / 37 /

E lá foram indo dias e dias, com o caparrinho sempre em crescendo, até por fim declinar e morrer, a deixá-los encalmados e à deriva, ao sabor da ondulação que ali, só muito raramente corre de qualquer outro quadrante, senão do noroeste.

O dia seguinte amanheceu de sol radioso, depois de uma noite por todos bem dormida, na medida em que ao tempo, por não haver navegação que obrigasse a estar alerta, nem vento, nem tão pouco ondulação a exigir-lhes aproar, por isso coube a todos dormir. Mirados e remirados os horizontes em busca de qualquer coisa especial e particularmente de madeiros flutuando, onde com certeza haveria musgos e limos que alimentassem pampos para eles pescarem.

Como era da norma e por não haver mais nada para cuidar e fazer, a chumbada e a celha da linha de sonda fora puxada à borda e ensaiada com a linha sobressalente, a tentar encontrar o fundo, mas nada.

O sol fora subindo céu acima até chegar ao cume, onde passa o meridiano do lugar e de astrolábio atestado, foram medindo as alturas até verificarem ter começado a baixar e com a declinação de uma tabela que tinham, verificar a latitude ser de 41º 30' N. Ora a longitude ao tempo e no mar, ainda faltavam vários séculos para ser possível calcular, no entanto pela distancia mais ou menos navegada, seria a que Deus quisesse.

Assim os dias foram decorrendo e passando sem nada de diferente acontecer e como tal sem nada registarem, porquanto com calmice e modorra nada há a pensar, o que iria posteriormente acontecer.

Naquele tempo, como ainda hoje acontece a quem do mar faz seu modo de vida, murmura-se em solilóquio, mesmo sem nada pensar, a dizer não haver nada neste mundo que mais depressa se pague, que o tempo pois, atrás da tempestade vem sempre a bonança.

Nesta modorra desesperante para qualquer um, menos para os marinheiros de veleiros em alto mar que, de canivete em punho, sempre encontravam múltiplos afazeres para não notar a lentidão do tempo a passar.

Uma tarde com eles ainda encalmados, o céu começou a forrar pelo sul, e era já noite desatara a chover. Lestos correm ao paiol, a / 38 / safar e trazer ao convés um dos panos da andaina sobressalente, a estender da amurada para meia nau, aproveitando a água abençoada caída do céu. Mas eis que com a chuva o vento do sueste começou a soprar e até a crescer e a chuva, a cair copiosamente como dilúvio, de modo a fazer farta aguada e os barris cheios. Contudo, aquele vento sueste parecendo vir do céu, nada tinha de semelhante aquele outro que desde o arquipélago os trouxera até ali, além de que esse tinha soprado sempre mais ou menos com a mesma intensidade, enquanto este que agora os fustigava, era mais variável e de arranques com aguaceiros e trovoadas. Cerca de cinco a seis séculos mais tarde depois desta ocorrência, outros marinheiros saberiam pelos meteogramas diária e frequentemente recebidos, ser resultante de uma depressão tropical que vinda do sul, subia com o Colf Stream a norte a condicionar ali o tempo daquela maneira.

Fora assim que naquele dia ao findar do século XIII ou talvez para falarmos com mais segurança, do primeiro quarteirão do século XIV que, naquela posição e momento, a rota de oeste continuou, com vento e a chuva não apenas em crescendo como a rondar pela direita, lenta e vagarosamente pelo sul, sem grande intensidade até se fixar no sudoeste da agulha e a chuva a decrescer, até o vento encalmar.

Curiosa e quase repentinamente a temperatura atmosférica que até aí tinha vindo amena e à vezes até ligeiramente cálida, desceu de um momento para o outro a fazer bater o queixo, o céu forrou nevoento e a noite tudo e todos deixou em completa escuridão. Com calma e o mar em acentuada ondulação.

O dia seguinte amanheceu semelhante ao anoitecer do dia anterior, escuro que nem breu e o navio aos baldões da acentuada ondulação do noroeste, porém calma e frio, muito frio.

No convés praguejava-se contra o que lhes parecia o inferno, não apenas pelo frio e escuridão como pelo escorrega dos balanços a atirar algum mais descuidado contra a borda.
Repentinamente um entre eles praguejou, mais grosseiramente, a lamentar-se estar sonhando, ali tão bem acordado e até agarrado para não ser sacudido pelo balanço, a parecer-lhe ter ouvido o piar de um pássaro.

Porém, logo outros o corrigiram de não estar a sonhar, pois / 39 / eles também ouviram piar e mais de um pássaro!

Desordenadamente sem qualquer mando, a parecerem impelidos por molas, uma porção deles corre à chumbada e à celha da linha de sonda, enquanto um outro lépido, à linha comprida sobressalente, para aumentar a da celha.

Num ápice a chumbada depois de talingada e num gesto brusco é atirada fora da borda, à proa por barlavento, ao mesmo tempo que à ré um outro homem possivelmente alguém mais graduado e sabedor, abrindo a mão esquerda suspende nela o seio da linha para a deixar correr ao sabor do peso da chumbada que se afundou mar abaixo. Quando um deles já tinha safo o chicote da linha dentro da celha, pronto a aumentá-la para chegar à fundura, eis que a chumbada bate no fundo do mar e o homem que estava a deixar a linha correr e contava os nós que ia sentindo na mão passar, brada para que todos ouvissem e tomassem boa conta: sessenta jardas!

Autonomamente, em gesto intuitivo sem qualquer ordem, meia dúzia de zagaias voam fora da borda e estas, ainda se afundavam mais ou menos a meia altura da água gritada pelo homem que a tinha sondado, quando todas as zagaias desataram a ziguezaguear a parecer terem caído no inferno.

Ala que ala e meia dúzia de braçadas colhidas, espanto dos espantos pois as zagaias traziam um bacalhau em cada um dos seus anzóis. E exactamente como sete séculos mais tarde, já em pleno século XX, era comum acontecer aos pescadores da linha de mão, quando o seu veleiro, feita a emposta e ancorado ao entardecer, fortuitamente sobre um cardume e eles experimentando o mar com zagaias à borda, logo diziam entusiasmados: «Encalhamos em bacalhau!»

Anos passados com um destes pescadores que tripulou a caravela, já velho, decrépito e bebedola, na taberna com o taberneiro a puxar-lhe pela língua para contar as suas peripécias e vida no mar, acontecera estar no mesmo tasco um outro beberão, mas académico e cronista que logo pegou no dito para escrever que nesse tempo, o bacalhau nos Bancos da Terra Nova ser tanto que os navios encalhavam nele.

No entanto, dado a caravela acidentalmente ter fundeado em local e momento duplamente propício à pescaria, quer pelas / 40 / condições de tempo atmosférico, de bruma cerrada a negar aos raios solares que incidissem sobre a superfície oceânica perturbando a vivência e quietude dos peixes, como por o ecossistema do bacalhau ao tempo se assoalhar, aquietado aquelas paragens, a criar óptimas condições para a pesca com a zagaia e o zagaim, se é que naquele tempo e aquela gente conhecesse já outro qualquer modo de pescar bacalhau.
Por isto e na oportunidade, a quantidade de sal que o navio armazenava no porão, apenas com a finalidade de o lastrar, isto é dar-lhe mais estabilidade e mais segurança, fora insuficiente para salgar além do peixe que conseguiu meter no porão, outro mais que não só as condições de pesca lhe permitiriam capturar como a capacidade do porão e o porte do navio, podiam comportar.

Mas aquela gente ou antes deles os seus maiores que lhes transmitiam o saber de sua muita experiência das coisas do mar e da pesca, incluindo a do bacalhau no nordeste Atlântico, logo encontraram uma solução para amenizar a dificuldade que a fartura de pescaria lhe levantava.

Com um cordel, enfiado pela guelra do peixe de modo a sair-lhe pela boca, fazendo isto com vários peixes enfiados no mesmo cordel, fizeram uma fieira de bacalhau. Feitas várias fieiras, amarradas pela popa e mergulhadas no mar, conseguiram levar com eles peixe suficiente e capaz da tripulação se alimentar durante todo o tempo e duração da viagem de regresso aos Açores. É verdade que naquele tempo, por não haver leituras, o conhecimento de cada um limitava-se, à experiência pessoal ou alguém próximo que lha contasse, pelo que não esperavam que no caminho durante a viagem de regresso, iriam cruzar-se cá e lá com famintas e terríveis guelhas, tubarões comuns naquelas paragens, que não sendo corpulentos, são no entanto de uma voracidade sem igual.

Prontos para o regresso que o vento noroeste ali é quem mais ordena, faltava-lhes no entanto confirmar a posição geográfica afim de poderem ali, em outra ocasião novamente voltar aquele abençoado lugar, que pela riqueza de pesca parecia ter sido oferta, por intercepção de alguma alma santa bendita, que ali os trouxera, situado quer pelas condições de tempo e nevoeiro cerrado, mais se assemelhar ao inferno do que ao mar de Cristo. / 41 /

Até que um dia ainda mais frio de quantos ali tinham passado, de vento norte a enregelar, depois de muitos dias de espera, mas sem causar dificuldades, por força de habito em aceitar o inesperado, o céu continuava forrado mas mais diáfano do que anteriormente. O sol aparecia para logo desaparecer, além de não haver também horizonte onde assentar o arco da altura. Contudo eis que, numa marezada de sorte, e digo assim pela minha incapacidade em explicar este fenómeno ali tantas vezes acontecido, já quando o sol crescia para o Zénite, não só ele como o horizonte se mostraram limpos de qualquer impedimento, de modo a possibilitar a medição do arco que deu para calcular a latitude de 43º 10' N.

Quanto à longitude calculada, mais palmo menos polegada pela estima, que ao tempo ainda não era medível pelo menos no mar, seria o que Deus quisesse, porque navegando a oeste naquela latitude ir-se-ia encontrar 60 jardas de fundo, podendo ser em 48º 00' ou 52º 00' oeste.

Curiosamente, meses passados ou no ano seguinte, isto é, em outra época do ano, estes mesmos pescadores ou outros que desta ocorrência tivessem conhecimento e ali chegassem, pouco ou nenhum bacalhau iriam encontrar. Porém estes pescadores sendo gente experimentada a pescar bacalhau, por eles próprios ou por outros seus familiares das gerações que os antecederam, nas pescarias do nordeste Atlântico, já sabiam que este peixe no Verão foge para o norte a procurar as águas mais frias, para no Outono voltar a sul em busca delas mais quentes.

Enfim, curiosidades e teorias de alguém que perdera longos anos a trabalhar em todos os cantos onde os rabos do Árctico conseguiam penetrar no Atlântico, porém não apenas a pescar, mas também com a maior das atenções, a observar e tirar conclusões.

No encalço dos portugueses, seguiram-se os galegos e mais tarde e em força por serem muitos, os bascos, os normandos e os bretões.

Ora estes à imitação dos portugueses no início, espalharam-se pelos bancos a pescarem de bordo das caravelas. Mas aproximando-se de terra a fugir aos maus tempos do norte, abrigarem-se nas baías e enseadas, curiosamente a verificam aí / 42 / haver quase tanto peixe como no mar largo, e com a vantagem de, por não sentirem tanto incomodo e arrebentação do mar, poderem no mesmo dia pescar mais horas. E isto ainda com o benefício de os homens poderem dispersar-se por vários lugares com uns a pescar de bordo da nau e outros empoleirados nas rochas em terra à beira do mar. Além disto, o peixe em vez de ser escalado e salgado a bordo, passou a ser tratado em terra com a vantagem de, só depois de alguns dias de sal e com bacalhau já parcialmente desidratado, por conseguinte com menos volume e peso, é que era embarcado e estivado para a viagem de regresso à Europa.

Assim nasceram as feitorias e também o que ainda hoje é chamada de Costa francesa na Ilha da Terra Nova, que vai desde o Cabo da Bonavista no leste da Ilha, até ao Cabo Ray no seu extremo sudoeste.

Só cerca de três ou quatro décadas depois do que acabamos de referir, isto é da chegada dos franceses aos pesqueiros da Terra Nova e de constituídas as feitorias de apoio aos pescadores, é que começaram a chegar e estabelecer-se no centro e norte da Ilha, longe da orla costeira, os irlandeses e escoceses fugidos das Ilhas Britânicas às perseguições religiosas e civis do longo reinado de Henrique VIII.

Largos anos depois do seu casamento com Catarina de Aragão, sua primeira esposa, católica fervorosa e de quem tivera uma filha Maria Tudor, é que para se divorciar dela e casar com Ana Bolena, houve o corte de relações com Roma, acabando pela criação da Igreja Inglesa, efeitos da Reforma iniciada por Erasmo, Lutero e Calvino que assolara toda a Europa, excepto a península Ibérica, o que deu motivo às lutas intestinas nas Ilhas Britânicas e à fuga clandestina daquela gente para a Terra Nova.

Aqui, ao longo de gerações foram crescendo e se multiplicando, a viver frugalmente e a pescar trutas e salmões nos lagos e rios da Ilha, para sobreviverem.

Até que num Inverno, quando já eram muitos, na ausência dos franceses que sempre e só fizeram pesca sazonal, abandonando as feitorias à aproximação do Natal até fins de Fevereiro, invadiram a costa francesa dando lugar a uma longa e sangrenta guerra entre a França e a Inglaterra que só veio a terminar em 1904. / 43 /

Só então é que as duas grandes potências chegando à conclusão que pelas armas jamais encontrariam qualquer solução, se decidiram recorrer aos meios políticos e diplomáticos com os quais sanaram o pleito e chegaram ao fim da contenda.

A França em defesa do seu enorme núcleo migratório que se alastrou por todo o norte do Canadá, desistiu dos seus direitos históricos de pescar e tratar o seu pescado na costa sul da Ilha. E a Inglaterra e os EUA face a isto, cederam à França o direito de considerar como sua colónia, o arquipélago de S. Pierre e Miquelon porém condicionado de todo e qualquer desenvolvimento e reforço bélico.

O facto de não lhe ser permitido desenvolver S. Pierre levou a França a enviar periodicamente para ali, navios de abastecimento e de assistência, quer aos seus colonos como às tripulações dos seus navios em pesca naquelas paragens.

Ora aconteceu em 1920, um destes navios franceses, acidentalmente assistir em plenos bancos dois veleiros portugueses onde encontrou, numa vivência miserável a parecer do século XV, uma série de tripulantes tuberculosos, cujo quadro lhes mereceu um relatório tão violento e cru, que em França o fizeram correr pelas chancelarias diplomáticas até chegar a Lisboa.

O nosso governo de então, magoado na sua dignidade de querer parecer nação civilizada, em vez de iniciar o controle sanitário dos pescadores antes de embarcarem, a exigir condições mínimas de saúde para o fazer, fora-lhe mais fácil e até espectacular, mandar aos bancos da Terra Nova um navio a fingir assim resolver o problema.

Não devemos esquecer que, o nosso atraso cultural era então, como ainda hoje continua a ser, vertical, atingindo não apenas os ignaros das classes primárias mas toda a sociedade onde aqueles se integram e convivem Assim em 1923, estando indigitado o cruzador Carvalho Araújo para fazer o cruzeiro com os cadetes saídos da Escola Naval, como era hábito anualmente aos mares do sul, fora decidido que esse navio de guerra em vez de ir para o Sul, fizesse rota para o noroeste, nessa mesma missão de treino. Desta maneira o cruzador com a mesma cajadada mataria dois coelhos, exercitava / 44 / os cadetes e fazia nessa mesma viagem assistência médica aos veleiros e suas tripulações.

Porém o relatório de viagem do cruzador, depois de enumerar tudo quanto fez e assistiu aos bacalhoeiros, referia com tal veemência não ser o navio Carvalho Araújo próprio e capaz de enfrentar a agressividade e condições de mar e clima daquelas paragens, a ficar sujeito a qualquer imprevisto e até a possível desgosto como, digo eu, a sua tripulação por ser dita guarnição, fosse constituída por gente filha de Deus, já que as tripulações dos veleiros todos pescadores, eram gente do diabo.

Face a isto, em vez de serem estabeleci das condições de controle sanitário em terra antes do embarque, a exigir robustez física capaz de suportar as dificuldades da vivência deletéria nos veleiros, amontoados à maneira de formigueiros e sujeitos a trabalho descomunal, para a missão de aparente apoio no mar, à semelhança dos franceses, fora escolhido em 1927, um navio mercante apresado aos alemães na guerra 14-18, a que fora dado o nome de Gil Eannes.

A frota francesa da pesca de bacalhau, desde os séculos XVI e XVII, em que iniciou esta actividade, teve desde então fazendo parte das suas tripulações, um homem responsável pela farmácia do navio e que tratava das enfermidades que iam parecendo. Na frota bacalhoeira nacional, jamais houve alguém a quem o doente se queixasse, quanto mais tratasse. Salvo havendo ferimentos à vista.

Queixume de doente era manifestação de malandrice, tentando fugir ao penoso trabalho do dia a dia.

Entre nós no entanto, recordo que em 1942, quando me iniciei na pesca do bacalhau, o pessoal das companhas ao ser inspeccionado sanitariamente pelos médicos, talvez nem todos ressalvo, quase em fila, arriavam as calças a mostrar o baixo ventre e o escroto, a saber se havia hérnias inguinais visíveis a olho nu e à distancia, por se admitir que, depois de embarcados, a existência de hérnias ser devida ao trabalho a bordo dos navios, e a respectiva cirurgia, a ser paga pela seguradora Mútua dos Bacalhoeiros.

Foi exactamente neste ano de 1942, que os oficiais pilotos embarcados à pesca de bacalhau, foram obrigados, a expensas / 45 / do grémio dos armadores, a frequentar durante trinta dias em Lisboa, o banco do Hospital de Marinha com o fim de adquirirem conhecimentos e experiência de primeiros socorros.

O Gil Eannes, propriedade do Estado e auxiliar de Marinha, tripulado por militares, fez quatro viagens aos bancos entre 1927 e 1937.

Em 1941 este navio fora desarmado, perdendo a qualidade de auxiliar de Marinha, e negociado o seu título de propriedade para os organismos de pesca de bacalhau.

Desde então, como unidade mercante, passou a exclusivamente trabalhar como navio de apoio aos bacalhoeiro e no regresso, a carregar bacalhau seco nos portos da Terra Nova, para CRCB em Lisboa, pelo que passou a ter equipagem civil, mantendo no entanto como chefe da assistência, aos navios de pesca no mar, um oficial superior de marinha, com as prorrogativas de capitão do porto.

Esta situação, a que a legislação não dava cobertura, deu por vezes lugar a excessos de cedências e desmandos.

Por um lado, capitães de navios a alienarem a sua autoridade e responsabilidades, e do outro o chefe da assistência a assumir posições de comando que não lhe eram devidas nem legalmente reconhecidas.

Em 1955, o velho Gil Eannes propulsado por máquina a vapor, fora substituído por um navio motor construído em Viana do Castelo, especialmente para o fim em vista, porém de maiores dimensões e porte que o substituído, de aspecto exterior a parecer um regalista e interiormente dotado de bons e modernos alojamentos, para os tripulantes e eventuais enfermos, e a fazerem-se notar instalações especiais para o chefe da assistência, com um grande salão de recepções às visitas.

O seu equipamento propulsor era desajustadíssimo – às dimensões e porte do navio, pois mesmo com óptimas condições de tempo, não ia além de nove nós de velocidade, para contactar e assistir os sessenta navios dispersos, por mais de 900 mil milhas quadradas. E debaixo de tempestade, nem de capa conseguia aguentar-se.

A saga do navio Gil Eannes na assistência aos pescadores no mar, foi um embuste, servindo apenas e ridiculamente para / 46 / propagandear, entre quem não tinha a noção da realidade, a obra assistencial do Estado Novo aos pescadores do bacalhau.

Só os cegos e os beóceos não viam nem entendiam o chocante e ridículo da situação que, em pleno terceiro quarteirão do século XX, ainda houvesse um navio para apoiar aquele atraso, conhecido por pesca do bacalhau.

Algumas vezes me senti amesquinhado, com perguntas torci tas de gente estranha a Portugal, especialmente do ridículo cartaz do navio de apoio e assistência, a tanta miséria e atraso.

Mas eles mal sabiam, porque ainda ninguém adivinha o futuro, que depois de passada toda aquela dura e enganosa farsa, ainda iria aparecer quem viesse a glorificar o Gil Eannes por aquilo que representou, mantendo-o em doca como chamariz e atracção turística, memorial lastimoso de um passado cinzento recente.