Antes de prosseguir nestas memórias parece-me não descabido nem
despropositado, levantar a interrogação donde virá a nossa predilecção e
gosto pelo bacalhau salgado e seco, espécie pescável e de vivência nas
zonas árcticas tão distantes da costa ocidental da
Ibéria onde habitam além de nós portugueses, também os galegos
e os bascos, gente com igual gosto e preferência alimentar.
Por onde terá então começado tal inclinação e simpatia?
De certeza que não fora a partir de meados do século XIX,
quando à imitação dos colonos americanos, especialmente dos nossos
imigrantes ali, em que retomamos a sua pesca, depois de mais trezentos
anos dela afastados, porém sempre desejosos do seu sabor cujo hábito há
muito nos era alimentado pelas
importações dos bacalhoeiros.
Será então que esta nossa inclinação ou preferência gustativa terá sido
iniciada quando em meados do século XIV, depois de encontrado o
arquipélago dos Açores, descobrimos os bancos a que demos inicialmente o
nome de mares do bacalhau? Também
não creio que este entendimento seja o mais correcto.
Tal apetite gustativo alimentar, é quase certo ter sido iniciado no
bacalhau pescado nos mares do nordeste Atlântico, não pelos povos agora
ribeirinhos aqueles pesqueiros, que obviamente não necessitavam de o
salgar, mas e mais provável, pelos habitantes
da Ibéria onde as jazidas de sal abundam, quer pelos que deram
posteriormente lugar a Portugal, à Galiza e até às Vascongadas, áreas e
povos estes, onde os gadídeos salgados continuam muito apreciados.
Inicialmente, quando buscava no meu entendimento o que agora aqui venho
a expor, imaginava que esta nossa inclinação e preferência, nos tivessem
sido inoculada pelo pescado dos povos ribeirinhos aqueles mares do norte
que depois de o pescar viessem, por aí sul abaixo com ele salgado,
vendê-lo ou trocá-lo por mais sal.
Mas é evidente faltar a esta concepção alguma lógica por, não só aquela
gente do norte europeus, como ainda hoje, não gostar de comer bacalhau
salgado e seco, antes e sempre, tal e qual ele
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sai do mar. Além disso para o exportar em época tão recuada da história,
não precisava apenas de ter peixe, mas também sal para o tratar.
Ora in illo tempore, os navios para navegar à vela e muito
especialmente em zonas de tormentas e tempestades, necessitavam de ser
lastrados para conseguirem alguma imersão, que o mesmo
é dizer estabilidade, e o melhor material para o fazer era o sal que
além de mais, servia também para conservar um ou outro pescado que, no
decurso das viagens fossem capturando. Já não falo da precisão para
cozinhar as refeições, pois estas feitas com
água salgada não precisariam de sal.
Assim pensando julgo que, terão sido os povos meridionais, ibérico
mediterrânicos que muito antes, talvez mais de um milénio, de iniciarem
as viagens que os levaram às Descobertas, navegando a norte a pescar,
utilizaram o sal para desidratar o peixe, aumentando-lhe deste modo o
tempo da sua conservação.
Neste evoluir, a manter os bacalhaus salgados, comprimidos no porão, uns
sobre os outros, pressionados pelos balanços do navio, de modo a evitar
que entre eles se formassem bolsas de ar a desenvolver as bactérias de
putrefacção, chegara entretanto e por fim ao local de destino onde
descarregado, foram concluindo que, para o manter mais tempo em bom
estado, seria vantajoso retirar-lhes mais humidade expondo-o ao sol e ao
vento, a que se denominou por secagem do bacalhau.
Julgo que os tratados negociados pelos nosso reis D. Dinis, D. Afonso IV
e D. Pedro I com os ingleses, são consequências lógicas de práticas
antiquíssimas, dos povos deste rincão à beira mar plantado, que só muito
mais tarde veio a denominar-se de Portugal e cujos habitantes iam aos
mares, cerca das Ilhas Britânicas, à pesca dos gadídeos morua e eglefin
que ali então abundavam em compactos cardumes.
A sua história que nunca se fará, penso seja à semelhança da história de
todas as antigas gentes que desbravaram o nosso planeta e deram novos
mundos ao mundo, até chegar ao que herdamos e temos.
Que terá sido perigoso e duro, arrostar com as inclemências da tormenta
da Biscaia, tripulando frágeis barineis, não me restam dúvidas, porém
naquele tempo, a vida humana era tão precária
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e de tão pouco valor, em relação às condições e tempo de vida actual,
que o melhor é não pensarmos mais nisso. No entanto, não posso deixar de
me lembrar que todos nós, seres viventes, quanto mais temos mais
queremos, não só dinheiro, como diz o ditado sobre os ricos, mas também
as mais diversas coisas consideradas boas na vida, como por exemplo,
pouco trabalho, muitas férias, ajudas vindas seja de quem for, etc, etc,
etc.
A pesca de bacalhau pelos portugueses, segundo a minha modestíssima
opinião de pescador dos mares árcticos, a confinar no Atlântico, desde o
George a oeste, passando pelo S. Laurence, Terra Nova, Labrador,
Groenlândia oeste e leste, Islândia, Ilha dos Ursos, Spitzberg e oeste
da Nova Zembla no mar de Barentz, penso podermos dividi-la em três
períodos longos e distintos.
O primeiro, desde tempos muito remotos que julgo indetermináveis, no
nordeste Atlântico, de certeza pelo sul das Ilhas Britânicas podendo no
entanto ter sido ainda mais a sul, possivelmente, muito antes do chefe
lusitano Viriato no século III a. C. ter sido denominado de «Amicus populi
Romani», até pouco depois de D. Dinis, sexto rei de Portugal, em 1279,
ter subido ao trono.
Este nosso monarca, figura ímpar não só entre os reis da primeira
dinastia como de todos os homens notáveis nascidos em Portugal, no tempo
e na longa vigência, desde D. Afonso Henriques a D. Fernando, viveu
desde a mais tenra infância e cresceu na corte de seu avô materno D.
Afonso X o Sábio, rei de Castela.
Senhor de primorosa educação intelectual e formação pessoal rara, aos 18
anos subiu ao trono por morte de seu pai D. Afonso III.
Fora, não apenas poeta como os nossos historiadores sempre e só o
elegeram quando dele falaram, mas muito mais do que isso o maior
estadista daquela dinastia.
D. Dinis fora além de um intelectual, homem de acção. Inicialmente
contra a oligarquia da Igreja, detentora de tudo quanto era arável,
essência do próprio Estado e explorado apenas na razão que bastasse para
a manutenção farta dos conventos e ordens monásticas. Daqui as suas
lutas contra o poder papal de quem retirou a posse das terras
produtivas, distribuindo-as pelos
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servos da gleba, a criar a burguesia rural e com esta a Nação
portuguesa.
Porém ao referir o rei D. Dinis não fora de modo nenhum para nomear a
sua grande figura e obra de acção confinada, no dizer dos seus
historiadores, que ao longo de sete séculos e meio, o nomearam sempre e
só por rei letrado e poeta, autor de: «Ai flores de verde Pinho»,
trecho entre nós comum, desde sempre ao referirmos e louvarmos os homens
como celebres, apenas os mencionando por terem escrito, bem ou muito
bem, coisas que nada de bom ou de mal trouxeram ao homem comum no seu
dia a dia.
Do que fez o rei D. Dinis e que eu gostaria aqui de mencionar
fora a criação da Escola Marítima de Lisboa, para ensinar aos pescadores
das nossas praias, isto é, da borda do mar, não apenas a arte de
construir caravelas mas acima de tudo, as artes de as tripular e nelas
ir para além de terra à vista.
Para isto D. Dinis contratou o genovês Manuel Pessagno que mais tarde
fez almirante de Portugal, com a obrigação de com ele trazer mais vinte
seus conterrâneos.
Génova no século XIII, era o centro da ciência astronómica e o modo de a
aplicar à navegação do largo, a calcular pela altura do Sol a latitude
do lugar.
Ora a Escola Marítima de Lisboa, que viria a ser a base dos Estudos
Gerais, não deve ter tido nem anfiteatro, com bancadas nem tão pouco
auditórios, seria a bordo da nau acabada de construir que os rudes e
pouco esclarecidos pescadores, apenas e só a ver, aprendiam a executar e
fazer.
Terá sido num desses ensaios laboratoriais, julgo eu que ao sabor da
ondulação do mar e do vento, em caravela capitaneada por um dos vinte
genoveses contratados pelo Pessagno, perdido de vista o Cabo da Roca e
açoitada por ventos de qualquer dos dois quadrantes do leste, que alguns
dias depois a sua tripulação avistara terra e verificara ser apenas uma
ilha que, só cerca de dois séculos mais tarde seria baptizada de S.
Miguel ou Santa Maria.
Já em 1351 na carta editada em Génova, o arquipélago de que essa
primeira ilha, então descoberta, fazia parte, ali era mencionada, bem
sei com outro nome, possivelmente até, o do
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capitão genovês que capitaneava a cara vela da Escola Marítima de Lisboa
que em primeiro lugar lá chegara.
Entretanto e não obstante naquele tempo a população de Portugal ser
muito reduzida, isso não impediu que alguns dos nossos avós, à mercê de
Deus naquela primeira ilha descoberta se
tenham radicado e a partir dali, outras ilhas daquele arquipélago,
encontradas, e indo sendo povoadas.
Obviamente que tal gente, sem outros afazeres que não fosse
o trabalho árduo e duro pela sobrevivência, porém livre de
tutela egoísta de violentos suseranos, durante o dia amanhava
a leira que aos poucos fora conquistando ao natural vulcânico e duro
solo, em um clima regradamente húmido para subsistir. Entretanto durante
a noite, nas longas horas do descanso, entrecortadas pelas exigências
das necessidades fisiológicas, único acto aprazível ao seu inteiro
dispor, era a comunhão de corpos sem peias nem receios de pecar, antes
ansiosos e desejos, por necessitados das ajudas, da procriação, em se
multiplicar.
E isto a prolongar-se por mais dez gerações com o número
deles sempre em crescendo, não só a povoar como a descobrir as restantes
ilhas que formam o arquipélago e a habitá-las. Assim se foram passando
os anos até que na corte de D. Duarte, o
Eloquente, daquelas ilhas se começara a falar, porém mais a quem
pertenciam do que propriamente o que ao mundo poderiam representar. Do
que se dizia então, à boca pequena, era já lá haver famílias com largos
teres e haveres em propriedades e de muita estima. Fora então que o
Infante D. Henrique, com fama
de mesquinho e avaro, mandara em 1445 aquele arquipélago o
seu fiel Gonçalo Velho Cabra!, com o propósito, não de o povoar,
conforme ouvi na escola quando por lá passei, mas para assumir a sua
posse em nome do Rei de Portugal.
Neste discorrer, sem qualquer apoio documental ainda que
apócrifo e extemporâneo, usualmente só por antigo tido como real, e a
que supostos historiadores, quer recontando-os como lhes acrescentando
algo de si, lhes deram créditos de verdade, só possível na imaginação de
quem, não os sentindo, apenas imaginou.
Antes de falar das Descobertas, cujo substantivo encerra o sentido de
incidental ou fortuito, não posso deixar de manifestar
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a opinião que, entre os séculos XIII e XIV depois de instituída a Escola
Marítima de Lisboa, uma coisa seria uma cara vela tripulada por simples
marinheiros pescadores chegar ou atingir qualquer ponto indeterminado do
Oceano Atlântico, e outra totalmente diferente era, essa mesma caravela
ou melhor dizendo um qualquer galeão, comandado sob as ordens do rei de
Portugal, atingir ou aportar à Ilha da Terra Nova situada muito para
além do meridiano que veio a ser firmado em Tordesilhas.
Quase sem nenhum esforço, porém num apelo à imaginação,
começo por pensar num dia de céu limpo e tempo calmoso, um pequeno grupo
de pescadores, com um ou outro marinheiro entre eles, tripulando uma
pequena e rudimentar cara vela, a pescar à roleta ao redor duma qualquer
das ilhas do grupo central do arquipélago, que só século e meio depois
viria a ser chamado de Açores, onde o planalto marítimo de qualquer
delas é extremamente exíguo para qualquer modalidade de pesca incluso à
linha de mão, eis que ao largo mas relativamente perto, avistam enorme
cardume de tonídeos que pelo tamanho dos que viam saltar, logo se
aperceberam ser patudo, perseguindo qualquer pequeno isco para se
alimentar.
Não obstante os pescadores bem saberem, pela sua experiência, ser este
peixe muito difícil de capturar, senão lhe for atirado isco vivo, para o
fazer parar e emergir, e que só nesta situação pode ser engatado pela
guelra e puxado para bordo do navio pescador,
foram no entanto no seu encalço e apesar da corrida, cá e lá um
ou outro exemplar, capturar.
No ar corria branda aragem do sueste, que entretanto fora crescendo mas
moderado, coisa comum nestas paragens com origem nas altas pressões e a
que os marinheiros açorianos chamavam de caparrinho.
Assim, foram. indo noroeste dentro, não obstante o cardume de patudo há
muito ter metido a cabeça ao fundo e desaparecido.
Os peixes capturados de tamanhos cada um a rondar os cinquenta quilos,
foram postejados e salgados com o sal que normalmente lastrava as
embarcações, não apenas para lhe aumentar o calado a diminuir a deriva
quando navegando a vela, como para a salga do peixe que cá e lá iam
pescando e com
que se alimentavam e sobreviviam.
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E lá foram indo dias e dias, com o caparrinho sempre em crescendo, até
por fim declinar e morrer, a deixá-los encalmados e à deriva, ao sabor
da ondulação que ali, só muito raramente corre de qualquer outro
quadrante, senão do noroeste.
O dia seguinte amanheceu de sol radioso, depois de uma noite por todos
bem dormida, na medida em que ao tempo, por não haver navegação que
obrigasse a estar alerta, nem vento, nem tão pouco ondulação a
exigir-lhes aproar, por isso coube a todos dormir. Mirados e remirados
os horizontes em busca de qualquer coisa especial e particularmente de
madeiros flutuando, onde com certeza haveria musgos e limos que
alimentassem pampos para eles pescarem.
Como era da norma e por não haver mais nada para cuidar e fazer, a
chumbada e a celha da linha de sonda fora puxada à borda e ensaiada com
a linha sobressalente, a tentar encontrar o fundo, mas nada.
O sol fora subindo céu acima até chegar ao cume, onde passa o meridiano
do lugar e de astrolábio atestado, foram medindo as alturas até
verificarem ter começado a baixar e com a declinação de uma tabela que
tinham, verificar a latitude ser de 41º 30' N. Ora a longitude ao tempo e
no mar, ainda faltavam vários séculos para ser possível calcular, no
entanto pela distancia mais ou menos navegada, seria a que Deus
quisesse.
Assim os dias foram decorrendo e passando sem nada de diferente
acontecer e como tal sem nada registarem, porquanto com calmice e
modorra nada há a pensar, o que iria posteriormente acontecer.
Naquele tempo, como ainda hoje acontece a quem do mar faz seu modo de
vida, murmura-se em solilóquio, mesmo sem nada pensar, a dizer não haver
nada neste mundo que mais depressa se pague, que o tempo pois, atrás da
tempestade vem sempre a bonança.
Nesta modorra desesperante para qualquer um, menos para os marinheiros
de veleiros em alto mar que, de canivete em punho, sempre encontravam
múltiplos afazeres para não notar a lentidão do tempo a passar.
Uma tarde com eles ainda encalmados, o céu começou a forrar pelo sul, e
era já noite desatara a chover. Lestos correm ao paiol, a
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safar e trazer ao convés um dos panos da andaina sobressalente, a
estender da amurada para meia nau, aproveitando a água abençoada caída
do céu. Mas eis que com a chuva o vento do sueste começou a soprar e até
a crescer e a chuva, a cair copiosamente como dilúvio, de modo a fazer
farta aguada e os barris cheios. Contudo, aquele vento sueste parecendo
vir do céu, nada tinha de semelhante aquele outro que desde o
arquipélago os trouxera até ali, além de que esse tinha soprado sempre
mais ou menos com a mesma intensidade, enquanto este que agora os
fustigava, era mais variável e de arranques com aguaceiros e trovoadas.
Cerca de cinco a seis séculos mais tarde depois desta ocorrência, outros
marinheiros saberiam pelos meteogramas diária e frequentemente
recebidos, ser resultante de uma depressão tropical que vinda do sul,
subia com o Colf Stream a norte a condicionar ali o tempo daquela
maneira.
Fora assim que naquele dia ao findar do século XIII ou talvez para
falarmos com mais segurança, do primeiro quarteirão do século XIV que,
naquela posição e momento, a rota de oeste continuou, com vento e a
chuva não apenas em crescendo como a rondar pela direita, lenta e
vagarosamente pelo sul, sem grande intensidade até se fixar no sudoeste
da agulha e a chuva a decrescer, até o vento encalmar.
Curiosa e quase repentinamente a temperatura atmosférica que até aí
tinha vindo amena e à vezes até ligeiramente cálida, desceu de um
momento para o outro a fazer bater o queixo, o céu forrou nevoento e a
noite tudo e todos deixou em completa escuridão. Com calma e o mar em
acentuada ondulação.
O dia seguinte amanheceu semelhante ao anoitecer do dia anterior, escuro
que nem breu e o navio aos baldões da acentuada ondulação do noroeste,
porém calma e frio, muito frio.
No convés praguejava-se contra o que lhes parecia o inferno, não apenas
pelo frio e escuridão como pelo escorrega dos balanços a atirar algum
mais descuidado contra a borda.
Repentinamente um entre eles praguejou, mais grosseiramente, a
lamentar-se estar sonhando, ali tão bem acordado e até agarrado para não
ser sacudido pelo balanço, a parecer-lhe ter ouvido o piar de um
pássaro.
Porém, logo outros o corrigiram de não estar a sonhar, pois
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eles também ouviram piar e mais de um pássaro!
Desordenadamente sem qualquer mando, a parecerem impelidos por molas,
uma porção deles corre à chumbada e à celha da linha de sonda, enquanto
um outro lépido, à linha comprida sobressalente, para aumentar a da
celha.
Num ápice a chumbada depois de talingada e num gesto brusco é atirada
fora da borda, à proa por barlavento, ao mesmo tempo que à ré um outro
homem possivelmente alguém mais graduado e sabedor, abrindo a mão
esquerda suspende nela o seio da linha para a deixar correr ao sabor do
peso da chumbada que se afundou mar abaixo. Quando um deles já tinha
safo o chicote da linha dentro da celha, pronto a aumentá-la para chegar
à fundura, eis que a chumbada bate no fundo do mar e o homem que estava
a deixar a linha correr e contava os nós que ia sentindo na mão passar,
brada para que todos ouvissem e tomassem boa conta: sessenta jardas!
Autonomamente, em gesto intuitivo sem qualquer ordem, meia dúzia de
zagaias voam fora da borda e estas, ainda se afundavam mais ou menos a
meia altura da água gritada pelo homem que a tinha sondado, quando todas
as zagaias desataram a ziguezaguear a parecer terem caído no inferno.
Ala que ala e meia dúzia de braçadas colhidas, espanto dos espantos pois
as zagaias traziam um bacalhau em cada um dos seus anzóis. E exactamente
como sete séculos mais tarde, já em pleno século XX, era comum acontecer
aos pescadores da linha de mão, quando o seu veleiro, feita a emposta e
ancorado ao entardecer, fortuitamente sobre um cardume e eles
experimentando o mar com zagaias à borda, logo diziam entusiasmados:
«Encalhamos em bacalhau!»
Anos passados com um destes pescadores que tripulou a caravela, já
velho, decrépito e bebedola, na taberna com o taberneiro a puxar-lhe
pela língua para contar as suas peripécias e vida no mar, acontecera
estar no mesmo tasco um outro beberão,
mas académico e cronista que logo pegou no dito para escrever que nesse
tempo, o bacalhau nos Bancos da Terra Nova ser tanto que os navios
encalhavam nele.
No entanto, dado a caravela acidentalmente ter fundeado em local e
momento duplamente propício à pescaria, quer pelas
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condições de tempo atmosférico, de bruma cerrada a negar aos raios
solares que incidissem sobre a superfície oceânica perturbando a
vivência e quietude dos peixes, como por o ecossistema do bacalhau ao
tempo se assoalhar, aquietado aquelas paragens, a criar óptimas
condições para a pesca com a zagaia e o zagaim, se é que naquele tempo e
aquela gente conhecesse já outro qualquer modo de pescar bacalhau.
Por isto e na oportunidade, a quantidade de sal que o navio armazenava
no porão, apenas com a finalidade de o lastrar, isto é dar-lhe mais
estabilidade e mais segurança, fora insuficiente para salgar além do
peixe que conseguiu meter no porão, outro mais que não só as condições
de pesca lhe permitiriam capturar como
a capacidade do porão e o porte do navio, podiam comportar.
Mas aquela gente ou antes deles os seus maiores que lhes transmitiam o
saber de sua muita experiência das coisas do mar e da pesca, incluindo a
do bacalhau no nordeste Atlântico, logo encontraram uma solução para
amenizar a dificuldade que a fartura de pescaria lhe levantava.
Com um cordel, enfiado pela guelra do peixe de modo a sair-lhe pela boca, fazendo isto com vários peixes enfiados no mesmo cordel,
fizeram uma fieira de bacalhau. Feitas várias fieiras, amarradas pela
popa e mergulhadas no mar, conseguiram levar
com eles peixe suficiente e capaz da tripulação se alimentar durante
todo o tempo e duração da viagem de regresso aos Açores. É verdade que
naquele tempo, por não haver leituras, o conhecimento de cada um
limitava-se, à experiência pessoal ou
alguém próximo que lha contasse, pelo que não esperavam que no caminho
durante a viagem de regresso, iriam cruzar-se cá e lá com famintas e
terríveis guelhas, tubarões comuns naquelas paragens, que não sendo
corpulentos, são no entanto de uma
voracidade sem igual.
Prontos para o regresso que o vento noroeste ali é quem mais ordena,
faltava-lhes no entanto confirmar a posição geográfica afim de poderem
ali, em outra ocasião novamente voltar aquele abençoado lugar, que pela
riqueza de pesca parecia ter sido oferta, por intercepção de alguma alma
santa bendita, que ali os trouxera, situado quer pelas condições de
tempo e nevoeiro
cerrado, mais se assemelhar ao inferno do que ao mar de Cristo.
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Até que um dia ainda mais frio de quantos ali tinham passado, de vento
norte a enregelar, depois de muitos dias de espera, mas sem causar
dificuldades, por força de habito em aceitar o inesperado, o céu
continuava forrado mas mais diáfano do que anteriormente. O sol aparecia
para logo desaparecer, além de não haver também horizonte onde assentar
o arco da altura. Contudo eis que, numa marezada de sorte, e digo assim
pela minha incapacidade em explicar este fenómeno ali tantas vezes
acontecido, já quando o sol crescia para o Zénite, não só ele como o
horizonte se mostraram limpos de qualquer impedimento, de modo a
possibilitar a medição do arco que deu para calcular a latitude de 43º
10' N.
Quanto à longitude calculada, mais palmo menos polegada pela estima, que
ao tempo ainda não era medível pelo menos no mar, seria o que Deus
quisesse, porque navegando a oeste naquela latitude ir-se-ia encontrar
60 jardas de fundo, podendo ser em 48º 00' ou 52º 00' oeste.
Curiosamente, meses passados ou no ano seguinte, isto é, em
outra época do ano, estes mesmos pescadores ou outros que desta
ocorrência tivessem conhecimento e ali chegassem, pouco ou nenhum
bacalhau iriam encontrar. Porém estes pescadores sendo gente
experimentada a pescar bacalhau, por eles próprios ou por outros seus
familiares das gerações que os antecederam,
nas pescarias do nordeste Atlântico, já sabiam que este peixe no Verão
foge para o norte a procurar as águas mais frias, para no Outono voltar
a sul em busca delas mais quentes.
Enfim, curiosidades e teorias de alguém que perdera longos anos a
trabalhar em todos os cantos onde os rabos do Árctico conseguiam
penetrar no Atlântico, porém não apenas a pescar, mas também com a maior
das atenções, a observar e tirar conclusões.
No encalço dos portugueses, seguiram-se os galegos e mais tarde e em
força por serem muitos, os bascos, os normandos e os bretões.
Ora estes à imitação dos portugueses no início, espalharam-se pelos
bancos a pescarem de bordo das caravelas. Mas
aproximando-se de terra a fugir aos maus tempos do norte, abrigarem-se
nas baías e enseadas, curiosamente a verificam aí
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haver quase tanto peixe como no mar largo, e com a vantagem de, por não
sentirem tanto incomodo e arrebentação do mar, poderem no mesmo dia
pescar mais horas. E isto ainda com o benefício de os homens poderem
dispersar-se por vários lugares com uns a pescar de bordo da nau e
outros empoleirados nas rochas em terra à beira do mar. Além disto, o
peixe em vez de ser escalado e salgado a bordo, passou a ser tratado em
terra com a vantagem de, só depois de alguns dias de sal e com bacalhau
já parcialmente desidratado, por conseguinte com menos volume e peso, é
que era embarcado e estivado para a viagem de regresso à Europa.
Assim nasceram as feitorias e também o que ainda hoje é chamada de Costa
francesa na Ilha da Terra Nova, que vai desde o Cabo da Bonavista no
leste da Ilha, até ao Cabo Ray no seu extremo sudoeste.
Só cerca de três ou quatro décadas depois do que acabamos de
referir, isto é da chegada dos franceses aos pesqueiros da Terra Nova e
de constituídas as feitorias de apoio aos pescadores, é que começaram a
chegar e estabelecer-se no centro e norte da Ilha, longe da orla
costeira, os irlandeses e escoceses fugidos das Ilhas Britânicas às
perseguições religiosas e civis do longo reinado de Henrique VIII.
Largos anos depois do seu casamento com Catarina de Aragão, sua primeira
esposa, católica fervorosa e de quem tivera
uma filha Maria Tudor, é que para se divorciar dela e casar com
Ana Bolena, houve o corte de relações com Roma, acabando pela criação da
Igreja Inglesa, efeitos da Reforma iniciada por Erasmo, Lutero e Calvino
que assolara toda a Europa, excepto a península Ibérica, o que deu
motivo às lutas intestinas nas Ilhas Britânicas e à fuga clandestina
daquela gente para a Terra Nova.
Aqui, ao longo de gerações foram crescendo e se multiplicando, a viver
frugalmente e a pescar trutas e salmões nos lagos e rios da Ilha, para
sobreviverem.
Até que num Inverno, quando já eram muitos, na ausência dos franceses
que sempre e só fizeram pesca sazonal, abandonando as
feitorias à aproximação do Natal até fins de Fevereiro, invadiram
a costa francesa dando lugar a uma longa e sangrenta guerra entre a
França e a Inglaterra que só veio a terminar em 1904.
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Só então é que as duas grandes potências chegando à conclusão que pelas
armas jamais encontrariam qualquer solução, se decidiram recorrer aos
meios políticos e diplomáticos com os quais sanaram o pleito e chegaram
ao fim da contenda.
A França em defesa do seu enorme núcleo migratório que se alastrou por
todo o norte do Canadá, desistiu dos seus direitos históricos de pescar
e tratar o seu pescado na costa sul da Ilha. E a Inglaterra e os EUA
face a isto, cederam à França o direito de considerar como sua colónia,
o arquipélago de S. Pierre e Miquelon porém condicionado de todo e
qualquer desenvolvimento e reforço bélico.
O facto de não lhe ser permitido desenvolver S. Pierre levou a França a
enviar periodicamente para ali, navios de abastecimento e de
assistência, quer aos seus colonos como às tripulações dos seus navios
em pesca naquelas paragens.
Ora aconteceu em 1920, um destes navios franceses, acidentalmente
assistir em plenos bancos dois veleiros
portugueses onde encontrou, numa vivência miserável a parecer do século
XV, uma série de tripulantes tuberculosos, cujo quadro lhes mereceu um
relatório tão violento e cru, que em França o fizeram correr pelas
chancelarias diplomáticas até chegar a Lisboa.
O nosso governo de então, magoado na sua dignidade de
querer parecer nação civilizada, em vez de iniciar o controle sanitário
dos pescadores antes de embarcarem, a exigir condições mínimas de saúde
para o fazer, fora-lhe mais fácil e até espectacular, mandar aos bancos
da Terra Nova um navio a fingir assim resolver o problema.
Não devemos esquecer que, o nosso atraso cultural era então, como ainda
hoje continua a ser, vertical, atingindo não apenas os ignaros das
classes primárias mas toda a sociedade onde aqueles se integram e
convivem
Assim em 1923, estando indigitado o cruzador Carvalho Araújo para fazer
o cruzeiro com os cadetes saídos da Escola Naval, como era hábito
anualmente aos mares do sul, fora decidido que esse navio de guerra em
vez de ir para o Sul, fizesse rota para o noroeste, nessa mesma missão
de treino. Desta maneira o
cruzador com a mesma cajadada mataria dois coelhos, exercitava
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os cadetes e fazia nessa mesma viagem assistência médica aos veleiros e
suas tripulações.
Porém o relatório de viagem do cruzador, depois de enumerar tudo quanto
fez e assistiu aos bacalhoeiros, referia com tal veemência não ser o
navio Carvalho Araújo próprio e capaz de enfrentar a agressividade e
condições de mar e clima daquelas paragens, a ficar sujeito a qualquer
imprevisto e até a possível desgosto como, digo eu, a sua tripulação por
ser dita guarnição, fosse constituída por gente filha de Deus, já que as
tripulações dos veleiros todos pescadores, eram gente do diabo.
Face a isto, em vez de serem estabeleci das condições de
controle sanitário em terra antes do embarque, a exigir robustez física
capaz de suportar as dificuldades da vivência deletéria nos veleiros,
amontoados à maneira de formigueiros e sujeitos a
trabalho descomunal, para a missão de aparente apoio no mar, à
semelhança dos franceses, fora escolhido em 1927, um navio mercante
apresado aos alemães na guerra 14-18, a que fora dado o nome de Gil Eannes.
A frota francesa da pesca de bacalhau, desde os séculos XVI e XVII, em
que iniciou esta actividade, teve desde então fazendo parte das suas
tripulações, um homem responsável pela farmácia
do navio e que tratava das enfermidades que iam parecendo. Na frota
bacalhoeira nacional, jamais houve alguém a quem o doente se queixasse,
quanto mais tratasse. Salvo havendo ferimentos à vista.
Queixume de doente era manifestação de malandrice, tentando fugir ao
penoso trabalho do dia a dia.
Entre nós no entanto, recordo que em 1942, quando me iniciei na pesca do
bacalhau, o pessoal das companhas ao ser inspeccionado sanitariamente
pelos médicos, talvez nem todos ressalvo, quase em fila, arriavam as
calças a mostrar o baixo ventre e o escroto, a saber se havia hérnias
inguinais visíveis a olho nu e à distancia, por se admitir que, depois
de embarcados, a existência de hérnias ser devida ao trabalho a bordo
dos navios, e a respectiva cirurgia, a ser paga pela seguradora Mútua
dos Bacalhoeiros.
Foi exactamente neste ano de 1942, que os oficiais pilotos embarcados à
pesca de bacalhau, foram obrigados, a expensas
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do grémio dos armadores, a frequentar durante trinta dias em Lisboa, o
banco do Hospital de Marinha com o fim de adquirirem conhecimentos e
experiência de primeiros socorros.
O Gil Eannes, propriedade do Estado e auxiliar de Marinha, tripulado por
militares, fez quatro viagens aos bancos entre 1927 e 1937.
Em 1941 este navio fora desarmado, perdendo a qualidade de auxiliar de
Marinha, e negociado o seu título de propriedade para os organismos de
pesca de bacalhau.
Desde então, como unidade mercante, passou a exclusivamente trabalhar
como navio de apoio aos bacalhoeiro e no regresso, a carregar bacalhau
seco nos portos da Terra Nova, para CRCB em Lisboa, pelo que passou a
ter equipagem civil, mantendo no entanto como chefe da assistência, aos
navios de pesca no mar, um oficial superior de marinha, com as
prorrogativas de capitão do porto.
Esta situação, a que a legislação não dava cobertura, deu por vezes
lugar a excessos de cedências e desmandos.
Por um lado, capitães de navios a alienarem a sua autoridade e
responsabilidades, e do outro o chefe da assistência a assumir posições
de comando que não lhe eram devidas nem legalmente reconhecidas.
Em 1955, o velho Gil Eannes propulsado por máquina a vapor, fora
substituído por um navio motor construído em Viana do Castelo,
especialmente para o fim em vista, porém de maiores dimensões e porte
que o substituído, de aspecto exterior a parecer um regalista e
interiormente dotado de bons e modernos alojamentos, para os tripulantes
e eventuais enfermos, e a fazerem-se notar instalações especiais para o
chefe da assistência, com um grande salão de recepções às visitas.
O seu equipamento propulsor era desajustadíssimo – às dimensões e porte
do navio, pois mesmo com óptimas condições de tempo, não ia além de nove
nós de velocidade, para contactar e assistir os sessenta navios
dispersos, por mais de 900 mil milhas quadradas. E debaixo de
tempestade, nem de capa conseguia aguentar-se.
A saga do navio Gil Eannes na assistência aos pescadores no mar, foi um
embuste, servindo apenas e ridiculamente para
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propagandear, entre quem não tinha a noção da realidade, a obra
assistencial do Estado Novo aos pescadores do bacalhau.
Só os cegos e os beóceos não viam nem entendiam o chocante e ridículo da
situação que, em pleno terceiro quarteirão do século XX, ainda houvesse
um navio para apoiar aquele atraso, conhecido por pesca do bacalhau.
Algumas vezes me senti amesquinhado, com perguntas torci tas de gente
estranha a Portugal, especialmente do ridículo cartaz do navio de apoio
e assistência, a tanta miséria e atraso.
Mas eles mal sabiam, porque ainda ninguém adivinha o futuro, que depois
de passada toda aquela dura e enganosa farsa, ainda iria aparecer quem
viesse a glorificar o Gil Eannes por aquilo que representou, mantendo-o
em doca como chamariz e atracção turística, memorial lastimoso de um
passado cinzento recente.
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