Memórias de um pescador – pp. 13-29


I. A Seca do Muro Gordo

Por mero acaso ou por saberem quanto gosto de velharias, não apenas de contos e casos, como de enfeites e outras ninharias, vieram parar às minhas mãos algumas anotações de duas escrituras de compra e venda de outras tantas parcelas de terreno de cultivo, ali para as bandas do poente, junto à ria da velha e saudosa Vila da minha infância.

Com datas de Março de 1912, o assunto por correntio não seria merecedor de grande atenção, fosse para quem fosse incluindo-me a mim próprio, se tal compra não tivesse por fim com o seu emparcelamento, constituir um estendal para secagem de bacalhau, com armazenagem em palheiro integrado no conjunto, o que aqui entre nós ainda hoje é uma seca de bacalhau e no caso vertente a Seca do Muro Gordo.

Se estes factos tinham já alguma importância no aspecto histórico e cultural da nossa terra, tão parca em documentos escritos, especialmente sobre coisas do mar e das pescas, mais interesse então adquiriram a meus olhos, ao atentar ser o proeminente comprador a Parceria Marítima Boa União, representada pelo sócio gerente Francisco São Marcos, nem mais nem menos que o irmão mais velho de meu pai.

Este homem, primogénito de oito filhos de meus avós paternos que ao tempo ainda não havia planeamento familiar vivendo-se à mercê do Senhor, todos nascidos e criados ali à rua da Fontoura, assim chamada por no sopé da ladeira que nos levava então à Lagoa e ao Casal, haver uma fonte de água corrente e afamada nas redondezas, onde se dizia aparecer, pela calada da noite, uma moura encantada e sofredora, que umas vezes gemia e outras cantava coisas dolentes, estranhas e magoadas.

Filhos de Cristóvão de São Marcos e de Maria Rosa de Jesus Helena, sua mulher com a bênção da Igreja, mais conhecida por Maria Rosa do Calvo, por desde menina ter vivido e sido criada em casa do "Padre José António Morgado", por alcunha o "Calvo".

Ele, o Cristóvão, pescador como já tinha sido seu pai Alexandre, nas lides das companhas, artes de xávega na Costa Nova, nome / 14 / este, só nos aparece a partir de 1808 depois de construí do o paredão que não só fixou a barra, como dividiu em duas a então chamada Costa de S. Jacinto, continuando a de norte a designar-se de S. Jacinto e a sul do paredão passando a denominar por Costa Nova e mais tarde por Costa Nova do Prado.

O Cristóvão, que toda a sua vida fora sempre e só, homem das artes da borda do mar, à pesca das manjuas de sardinhas e outros peixes miúdos de superfície que desovam na praia, a quem ao tempo chamavam de gente do marzinho, a distingui-los dos marinheiros do mar alto, logo que passava meados de Setembro e se avizinhava o equinócio e as suas grandes marés e tempestades, ia com demais, às levas de viagem sul abaixo em demanda de outras paragens de costa menos bravia que este danado mar de A veiro, onde a maresia parece nascer e crescer aqui mesmo na arrebentação da praia.

Dos caminheiros pelo areal da costa, uns iam ficando por Buarcos, Gala e Cova, onde o mar a maior parte do tempo tocado do norte e noroeste, depois de rebentar no promontório da Boa Viagem se alonga nas praias a sul, mais ameno e menos bravio a permitir saídas ao mar e arribadas menos perigosas.

No entanto, a maioria continuava a sul, sempre pela borda do mar, descalça, que a areia é macia, de trouxa e botas ao ombro protegidas das topadas, já que os dedos e os pés, embora mais sofredores e exangues, depressa saravam e se recompunham.

Assim caminhando, atingiam S. Pedro de Muel donde, já internados no pinhal e com um ou outro camarada a desviar-se à Nazaré e mais raramente a Peniche, seguiam enfiados no sol ao meio-dia, até atingirem o Tejo nas imediações de Vila Franca e por ali ficavam a mourejar nas tarrafas do sável.

Mas a lezíria era mar de campino mais para o gado bravo, diferente dos mansos bois de olhar doce, que habitualmente os ílhavos incitavam na praia, aos berros e palmadas, quando emboçados à cala e ao reçoeiro da arte, com o saco cheio de sardinha até à armela, em maré de sorte e a bênção do Senhor.

No entanto, só por ali permaneciam algumas semanitas por desfeitio a retemperar forças da viagem, até seguirem rio abaixo a ficar por Algés ou mais adiante em Cascais.

Daqui à Trafaria, que alguns dizem colonizada também pelos / 15 / ílhavos, o que eu não acredito, por ali as águas serem ainda muito salobras para o seu gosto, era um saltinho.

Depois era a Caparica onde, aqui sim senhor, os ílhavos do marzinho devem ter gostado de se fixar, por em tudo lhes parecer e lembrar a sua Costa Nova, só menos bravia. Terá, então, sido daqui que de barco, em arribada forçada, debaixo de nortada rija e dura, montado o EspicheI pelo sul, se acoitaram à revessa de Sesimbra onde, com certeza, algum mais moço por lá fez filhos, casou e ficou.

E isto só para falar das levas de torna viagem, daqueles que para não ficarem de quedo todo o santo Inverno, tendo saúde, punham os pés a caminho do sul, para só tornarem ao Ílhavo das saudades, dos amores e à família, lá para os finais de Janeiro.

Em toda a costa portuguesa não há nenhum outro trecho parecido a este terrível mar de A veiro onde, desamparado de qualquer promontório ou até mesmo de pontalete rochoso, a ondulação desse imenso mar de Cristo que aqui se alteia, arrebentasse, antes de se alongar na praia.

Ficar na Laguna quando o mar galgando a lomba afugentava barcos, palheiros e tudo terra adentro até à ria, era modo de vida para velhos, doentes e chincheiros, gentes de águas salobras, já que a idade e as maleitas não perdoam e a estes qualquer arremedo de trabalho de certelas, os entretêm.

Naquele tempo os ílhavos do mar alto, quase só faziam vida nos navios de viagem, com alguns embarcados ao bacalhau na Figueira e em Lisboa, por esta navegação só tardiamente ao dobrar dos séculos XIX para XX, se ter radicado na Laguna.

Antes disto, pelo menos na Vila que alguém em maré feliz chamou de Maruja, o Natal era um dia santificado pouco ou nada festejado, nem mesmo na Igreja, por nessa época do ano os homens andarem todos longe, não só os do mar largo como os do marzinho, distantes lá pelo sul abaixo.

Aqui na terrinha além das mulheres e das crianças, e estas mesmo, os cachopos depois de os dez anos, iam mais os pais, só havia os velhos, os enfermos e os trancas.

A verdadeira festa de família neste Ílhavo, vindo do fundo dos tempos, era, após a viagem de muitos meses e às vezes de anos, com barco aportado Aveiro ou ao Douro, os marinheiros / 16 / de todas as categorias da escala de bordo, de saco de lona ao ombro ou à ilharga, ao chegar a casa, entrando na sala pela porta do Senhor, dar de frente com a mulher, sorridente e feliz, com o filho mais pequenino que ele ainda nem vira, ao colo e os demais, ao seu redor a esperá-lo. Era um mar de alegria, com ela dando graças a Deus da chegada do seu rico homem, e os filhos, embora risonhos, mas a princípio tímidos da presença do senhor pai. Só o mais pequenino, num berreiro e gritaria por ver aquele estranho homem de voz grossa e roufenha do tabaco e das molhas no convés, a tentar acaricia-lo.

Quando terá tido inicio a dispersão dos ílhavos para norte e sul a correr na costa de Portugal?

Seria trabalho para um ror de estudiosos desenvolver e julgo que chegariam ao fim sem resultados palpáveis e conclusivos, quer pelo hermetismo do meio, como especialmente pelas limitações das gentes, reduzidas ao labor primário das pescas, actividade sem história nem culto, mas apenas de natureza morta.

Por mim julgo-a como diáspora a perder-se na noite dos tempos, só que os ílhavos abertos, extrovertidos e flexíveis, sempre se integraram no meio onde foram parar a fecundar e a criar ramos de vínculo lagunar.

Posto isto, mesmo sem jeito para historiar, aconteceu-me ser dotado de memória e reflexos, não direi privilegiados mas de certo modo eivados de alguma predestinação que me levam por vezes a ficar obstinadamente a pensar e a relacionar factos que na sua essência e aparência nada tem de correlativo, acabo depois de muito cismar, neles encontrar e eu tirar a mesma conclusão. Fora o caso de duas ocorrências passadas e separadas de duas décadas no século XVIII.

O primeiro deste, fora em Lisboa na freguesia de S. Julião onde um casal de ílhavos, ele fragateiro de profissão Manuel Simões e ela peixeira Maria Manuel que registaram °nascimento do filho no dia 23 de Dezembro de 1734, a quem deram o nome de Francisco Manuel Nascimento que crescido se fez clérigo e professor da jovem Marquesa de Alorna que, entre endechas poéticas o crismou de Filinto Elísio.

Este caso leva-me a pensar que na terceira década do século / 17 / XVIII já então havia em S. Julião, Lisboa, um casal de ílhavos do sector piscatório, mas não dos idos às levas costa abaixo a passar as invernias para depois regressar, porém de certeza já ali estabelecido e com vivência de tal modo definida que o pai de Filinto Elísio já não era pescador, mas sim coisa difícil, de se conseguir então, passar da pesca para marinheiro das fragatas do Tejo e muito especialmente no século XVIII para as fragatas reais.

O segundo exemplo, para mim ainda mais elucidativo e concludente, é o caso de António Morais da Silva notável lexicólogo nascido no Rio de Janeiro em 1756, licenciado em direito em Coimbra que, na primeira edição do seu dicionário cerca de 1775 já define o termo de Ílhavo como indivíduo natural da região costeira desde A veiro a Lisboa.

Isto leva-me a inferir que para o lexicólogo Morais já então no seu dicionário significar o termo Ílhavo deste modo, terá sido por ter ouvido ou lido, em outrem, a revelar e traduzir a prática de décadas ou de séculos, de pescadores a largar de Ílhavo costa abaixo, a criar ou colonizar outros centros piscatórios.

A cogitar na sua diáspora e deles a procurar saber mais do que hoje sei, fiz algumas pesquisas entre os pescadores dos ditos centros frequentados pelos antigos ílhavos, buscando através dos seus sobrenomes, ramos a comprovar relações familiares, o que deploro nada de positivo ter conseguido por duas óbvias razões.

A primeira é que nos meios ditos primários, além das mulheres casadas perderem o seu sobrenome familiar, ainda por cima sempre aparece alguém, que as crisma com alcunha que as torna irreconhecíveis. O caso da alcunha é também comum a atingir os homens porém o sobrenome do pai é imposto até por lei.

Ora vem isto a propósito de, na dita busca ter encontrado o nome de São Marcos em vários locais de pescadores onde dizem terem passado os ílhavos, tais como Figueira da Foz, Cova, Nazaré, Peniche, Cascais, Sesimbra, Olhão e Vila Real de Santo António. E sabendo eu, sem o poder no entanto documentar que o primeiro São Marcos aparecera em Ílhavo, ao redor do século XVII, nome dado pelas freiras do convento a uma criança enjeitada que lhe aparecera na roda, daqui se possa talvez algo concluir. / 18 /

Esta criança crescera e fez-se homem, e ao tempo em Ílhavo não podia ter sido feito outra coisa senão pescador. Entretanto casara tornando-se pai de filhos homens e pescadores também, a juntarem-se às levas que indo pelo sul abaixo por lá casaram, etc., etc.

Antes da década de trinta do século passado, Ílhavo era ainda a antiquíssima vila de pescadores da Ria e das praias do mar, errantes durante os invernos ao longo das costas de Portugal.

Fora a ida pela primeira vez em 1931 aos pesqueiros da longínqua Groenlândia, donde havia vagas informações, circulando entre os importadores de bacalhau, que levou um armador português, pressionado pela sua própria situação de insolvência empresarial, a estimular e convencer os três capitães dos seus navios a salvá-lo, fazendo o que embora não parecesse possível irem aquele mar pescar bacalhau.

Entre os comerciantes importadores portugueses de bacalhau, corria em segredo, por não lhes interessar a divulgação e concorrência, que pescadores dinamarqueses naquele mar, com navios de dimensões mais reduzidas do que os nosso, efectuarem ricas pescarias nos bancos do oeste da Groenlândia.

Porém, o que nada constava dos navios dinamarqueses serem construídos em aço e propulsados unicamente por motores, a dar-lhes mobilidade e resistência para se defender dos gelos flutuantes, além de que a pesca ser feita de bordo dos próprios navios.

Contrariamente os nossos veleiros, além de construí dos em madeira, dois deles apodrecidos, apenas se deslocavam com o vento e as correntes d' água.

Aos três capitães da EPA juntou-se um quarto, por demérito de um dos três, em razão de no ano anterior ter já tentado a mesma aventura e voltado atrás e pelo que viu e sofreu, ficara na convicção de necessitar de outros apoios e orientações Quatro navios fragilíssimos e quatro capitães, gente dura e audaz, cada um sozinho naquele mar de Cristo, tal e qual como em antanho, por e donde quatro séculos antes nenhum dos Corte Real voltou.

Manuel dos Santos Labrincha no Santa Isabel, João Ventura da Cruz no Santa Joana, João Pereira Cajeira no Santa Mafalda e / 19 / Aquiles Gonçalves Bilelo no Santa Luzia.

Com a fartura de bacalhau trazido por estes quatro navios, conjugadas às políticas de horizontes curtos do corporativismo da constituição de 1933, a implementar o obsoleto e escravizante artesanato da pesca do bacalhau à linha de mão, em pequenos dóris com um pescador, é que a nossa velha Vila Maruja radical e economicamente se modificou.

Até ao começo do século XX ainda muitos dos seus homens por falta de navios, labutavam na Laguna ou no mar ao seu redor, nas xávegas e nas chinchas conhecidas aqui apenas por artes – trabalhos primevos de pescar – mas com muitos, pois era o seu errante destino, diferente de todos os outros povos da nossa Ria, embarcados no alto mar em navios de transportes comerciais a que se dava o nome de navios de viagem, em veleiros de pesca de bacalhau das praças de Lisboa, Douro e da Figueira e tantos outros, embora emigrados, mas também embarcados em navios do país de seu acolhimento como o Brasil e os Estados Unidos.

Fora exactamente daqui que os nossos emigrantes, especialmente açorianos trouxeram em 1830 a modalidade de pescar bacalhau à linha de mão, em dóris de um pescador, arriados do navio mãe a retomar assim pela terceira vez a pesca do bacalhau entre nós, desaparecida desde a Invencível Armada há cerca de 400 anos.

De Boston, Gloucester e Portland no século XIX ou antes, eram as escunas que pescavam bacalhau desde o George ribeirinho desses portos, até ao Grand Bank na Terra Nova, todas tripuladas por gente emigrada da Irlanda, Portugal, Suécia e Escócia ou por americanos descendentes destes.

Estas escunas, providas de seis a oito dóris, utilizando linhas de mão, zagaias e um curtíssimo espinheI, pescavam exclusivamente bacalhau, por ao tempo ali, só este peixe aparecer.

Em Portugal nos séculos XVIII e XIX, ou talvez antes o bacalhau salgado e não seco, era preferencial e corrente na alimentação, fornecido pelos importadores, ditos então dos bacalhoeiros que o compravam aos ingleses ou aos noruegueses, dinamarqueses, islandeses, canadianos e americanos que directamente dos pesqueiros vinham ao Porto e a Lisboa descarregar os veleiros.

Entre estes últimos contavam-se muitos açorianos, ali / 20 / imigrados e entre eles duas famílias que fizeram história nesta pesca entre nós, pois em 1835, mercê de circunstâncias especiais os Bensaúdes e os Marianos que sempre mantiveram dupla nacionalidade, em Lisboa arriaram nos seus navios o pavilhão dos EUA e hastearam o de Portugal, a dar início, segundo a minha opinião, ao terceiro período da pesca longínqua ao bacalhau entre nós.

Fora a partir daqui que muitas outras Parcerias para esta pesca se formaram para a compra de veleiros a ir pescar à Terra Nova, na senda dos imigrantes açorianos. Porém quase todos a falir no fim da primeira viagem por, maldosamente asfixiados pelos importadores que, à sua chegada, lançavam no mercado grandes quantidades de bacalhau a preços sem concorrência e então os pescadores tinham de vender o seu bacalhau a preço não compensador dos gastos efectuados, ou de manter o peixe nos porões sob as temperaturas continentais, a ser invadido pelo rouge.

Neste proceder ao longo de gerações, assim se fora estabelecendo o que se designou de pesca do bacalhau, em processo primevo e artesanal efectuado com linha de mão, vivida em rudimentares veleiros como navios mãe, feita em pequeninas embarcações tripuladas por um pescador em cada uma delas, exactamente como as usavam os americanos, desde o século XVIII de quem os copiamos e lhes chamavam de dóris.

Dory que em inglês significa xarroco, um peixe esguio e sem grandes formas, exactamente como a embarcação a que fora dado o seu nome, era uma adaptação americana construída em pinho de Flandres, moldável e flexível capaz de resistir às pancadas que sofre à borda do navio mãe, tanto ao desembarcar como ao recolhe-las. Empilhados uns dentro dos outros por o seu interior ser facilmente desmontável, formam lotes de três, quatro ou cinco dóris, fortemente amarrados à borda a cada lado do navio. Estes lotes ou pilhas não podiam ir além da altura a que trabalhavam as retrancas das velas para poderem correr ou manobrar dum bordo ao outro.

Julgo que os dóris terão sido copiados das trollas francesas que no decorrer do século XVII princípios do século XVIII, ao abandonarem a modalidade de linha de mão, efectuada de / 21 / bordo das caravelas, se iniciaram no sistema de pesca de trol para o que lhes era indispensável utilizar pequenas embarcações, desembarcadas do navio mãe, para os espalhar nos bancos.

Só que a trollas francesas não só por serem navios de maior porte como talvez pela noção de mais segurança, as suas embarcações eram tripuladas por dois pescadores.

O modo de pescar o bacalhau à linha de mão e à zagaia perdurou entre nós, desde os tempos em que os nossos emigrantes nos EUA, o trouxeram para Portugal, cerca de 1830 até 1933/34, em que face a abundância encontrada nos mares da Groenlândia os nosso pescadores passaram a usar pequenos troles feitos com os mesmos materiais da linha de mão.

De madre feita de duas a três linhas de cinquenta braças cada, com os anzóis a ela ligados por estralhos, espaçados de uma braça. O grande problema de assim pescar, era conseguir o indispensável isco, para atrair o peixe aos anzóis. Isto fora conseguido com as ovas do bacalhau, aproveitadas durante a escala do dia anterior, à mistura com pedaços do próprio bacalhau e de outros peixes não salgáveis. Os veleiros eram dotados com espingardas, legalmente cinco no máximo por navio, para a caça dos pombaletes e cagarIas, aves marinhas que em enormes bandos se posicionavam pela popa dos veleiros, a debicar durante a escala os detritos do peixe arrastado pela água da sua lavagem.

Entretanto com o andar dos anos e a construção de novos navios, providos de câmaras frigoríficas para isco, o número de linhas que o mesmo é dizer de anzóis, fora crescendo e em 1944 já havia bons pescadores a trabalhar com dezoito linhas isto é 1.000 anzóis, manualmente alados à força dos braços, duas e três vezes diariamente por um só homem, embarcado no pequeno e frágil dóri.

Curiosamente e não obstante termos durante tantas décadas, operado junto às trollas francesas, a usarem um sistema de pesca não só mais economicamente rendoso, como mais humano, o nosso espírito imobilista e rançoso, incapaz de por nós próprios dar um passo no sentido da evolução e do progresso, salvo quando nos é imposto, ficamos arreigados ao triste e atrasado artesanato de pescar.

Recordo a segunda viagem do Creoula, campanha de 1938, / 22 / depois de construído nos estaleiros da CUF na Rocha de Conde Óbidos em Lisboa, juntamente com um outro, encomendados pelo mesmo armador Vasco Bensaúde, mas cedido à Empresa Pesca de Viana onde passou a ser Santa Maria Manuela, que na mencionada viagem o capitão Aníbal Ramalheira, quer por influência de um amigo e capitão de trolla francesa, como por autorizado pelo Bensaúde, se dispôs a experimentar a modalidade de trol exercida em dóris, com o dobro do porte dos nossos e dois pescadores por bote, exactamente como os franceses.

Equipado de 26 dóris e 53 pescadores, os ganhos destes seriam a todos por igual, pescando para um só monte.

Porém, quando naquela viagem a carga do Creoula ia já para mais de metade do volume dos seus porões, o Aníbal Ramalheira viu que alguns dos sues bons pescadores ao despescar os troles, em vez de recolher os peixes, os lançavam borda fora. Tal facto considerado sem desculpa por inqualificável, era motivado por os bons pescadores tendo maior produtividade, passarem a ter, quando na preparação do pescado, igual volume de trabalho aos fracos pescadores. Irritado com o egoísmo e o distorcido entendimento destes homens, o Ramalheira mandou pregar os botes de trol ao convés e substitui-os por dóris de um pescador.

A propósito desta lembrança e como uma curiosidade de historietas da pesca artesanal ao bacalhau, recordo que a construção dos dois lugres de quatro mastros em aço, encomendados por Vasco Bensaúde à CUF, um destes a instâncias de João Alves Cerqueira, fora dispensado à empresa de Viana do Castelo, cuja primeira viagem fora feita em 1937 sob o comando de João Pereira Cajeira com o nome de Santa Maria Manuela.

Mas a maior curiosidade fora que, ao tempo da dita encomenda à CUF, estando incidentalmente na Azinheira na reparação dos navios de madeira o mestre João Bolais Mónica, exímio carpinteiro naval à semelhança de seus outros irmãos Manuel Maria e António, não só na habilidade manual como embora iletrados mas de grande visão e inteligência, ao debruçar-se sobre os planos de construção dos dois veleiros de aço gémeos, logo viu e avisou que aqueles navios jamais chegariam à seca na Azinheira, por a boca ser de largura superior à da ponte onde / 23 / teriam de passar para lá chegar.

Fora então que não só alterada a boca do Creoula por muito mais atrasada a sua construção, como o outro cedido a Viana do Castelo a ficar com o nome de Santa Maria Manuela.

Esta Parceria Geral das Pescarias, que fez história na pesca artesanal e que por muito pouco não inverteu o seu curso, quando nela intentou, em 1909 e 1910, experimentar o arrasto, mandando à Terra Nova o seu vapor Elite pescar.

Antes de continuar o que até aqui tenho vindo a referir ao sabor da memória que, nem sempre confesso, é tão concisa como eu gostaria, mas sujeita a lapsos óbvios, não só por falta de treino em me alongar escrevendo sobre o mesmo tema, como por falhas pessoais criadoras de confusões devidas à complexidade do tema.

Exactamente por isto não me parecer descabido na minha qualidade de pescador, interrogar-me a mim próprio, sobre duas questões que desde cedo me prenderam a atenção a atingir à obsessão.

Em primeiro lugar saber a razão que levara o bacalhau a ir viver e procriar tão longe de nós, e em segundo, procurar entender o motivo que desde os primórdios da nossa história nos levou a ir em sua procura, a pescá-lo.

Nisto a pensar, cheguei à conclusão de tudo se encerrar nos movimentos das massas oceânicas. Não só devidos à acção dos ventos a soprar na sua superfície, dando lugar às vagas do mar e à ondulação que tudo faz balouçar quanto nela flutua, nem tão pouco à atracção gravitacional da Lua e do Sol a dar lugar às ondas de maré.

O que deu vida ao mundo dos oceanos e neles continua a renová-la, fora a diferente incidência dos raios solares na sua superfície, aquecendo mais a zona equatorial do que as polares.

Assim enquanto no Equador por ser mais quente, as massas oceânicas dilatam a ficar menos densas e aumentam de volume, isto é, mais elevadas, as massas oceânicas nos pólos, por mais frias contraem-se ficando mais pesadas e baixas, por diminuírem de volume.
Estes dois estados numa mesma superfície de igual gravidade, dão lugar a uma corrente quente à superfície nos oceanos, do
/ 24 / Equador para os Pólos.

Estas massas oceânicas chegadas aos Pólos arrefecem e tornam-se não só mais pesadas, como menos volumosas, do que resulta afundarem-se num movimento a partir de cima para baixo, isto é, a dar inicio a uma nova corrente que batendo no fundo, inflecte na direcção do Equador, em sentido contrário à corrente na superfície, a arrastar-se no leito dos oceanos.

Acontece porém que o fundo dos mares é, a semelhança dos continentes, de crosta rugosa feita de montanhas e desfiladeiros, vales e picos descomunais, a dar às massas líquidas que nele se arrastam desvios a formar correntes ascensionais que cá e lá atingem a superfície onde corre água mais quente.

Esta mistura, feita em determinadas condições e circunstâncias, e sob a influência do dardejar dos raios solares, pode dar lugar e origem a fenómenos químicos que pela fotossíntese crie microrganismos que estejam na base da procriação das massas de filoplancton e zooplacton, a alimentar o grupo bentónico de modo atrai os predadores que servem e são indispensáveis à alimentação do homem.

Estes fenómenos dão-se e têm lugar tanto no pólo Sul como no pólo Norte. Na Antárctida, junta em cardumes compactos merlúcios, enquanto no Árctico de igual modo junta os gadídeos. Estes a que damos genericamente o nome de bacalhau como os do sul, o nome de pescada, têm estruturas e hábitos em tudo semelhantes.

Entretanto, quer pelo prometido como muito especialmente pelo maior interesse que nós portugueses damos aos gadídeos salgados e secos, permitam-me que aqui e agora esqueça os merlúcios, para só falar do gadus morua do nosso agrado gustativo.

Este demersal excepcionalmente voraz, vive, desenvolve-se e desloca-se em cardumes mais ou menos compactos consoante as estações do ano, a profundidades a que o seu ecos sistema e as massas bentónicas de que se alimenta, o obrigam a permanecer.

Chamar-lhe espécie migratória, julgo ser forçado dizê-lo, na medida em que a variável não é gadus mas o ecossistema dentro do qual vive, sendo este a deslocar-se ao longo do ano em conformidade às quatro estações climáticas, e que no final de / 25 / cada ano volta ao ponto inicial de partida.

Exemplificando com o por mim pessoalmente verificado como pescador nos Bancos da Terra Nova, na década de quarenta e metade da de cinquenta do século passado, onde dois enormíssimos cardumes se movimentavam ao longo do ano, desde o topo sul até ao seu extremo norte, indo e correndo próximo do fundo mas quase sempre a altura, a que a rede de arrasto passava por baixo do cardume sem o capturar.

Ao tempo os fish lupes, sondas muito sensíveis de recepção visual, ainda não faziam parte dos equipamentos de bordo, porém mesmo depois de serem instalados, os cardumes só eram ali visualizadas quando se encontravam próximo do fundo e curiosamente, em condições de capturáveis pelas redes de arrasto de fundo.

Este tipo de sonda só em 1952 fora instalado no Santo André. Antes disto eu tinha de me contentar em pressentir o bacalhau, fazendo curtos lanços de 10 e 15 minutos, para olhar a rede e apreciar o seu aspecto, de modo a calcular se o cardume andaria por ali perto ou orientar-me em outras direcções. Enfim era tudo muito contingente, errando a maior parte das vezes.

Um desses dois cardumes quando me iniciei na pesca do arrasto em 1945, aparecia a partir de meados de Fevereiro nas águas fundas, a descambar do canal a que os cartógrafos franceses deram o nome de Canal do Fletan, pelo sudoeste do Banco Verde. De cor esbranquiçada e de tamanhos acima do meão e graúdo, a proporcionar boas pescas. Fora exactamente ali que conclui, o grande erro dos biólogos de então, que davam o gadus morua incapaz de suportar pressões de água superiores às exercidas em profundidades, acima de 200 metros.

Este conceito era de tal maneira aceite pelos pescadores de então, que se calhava acidentalmente a rede cair em locais mais fundos do que 200 metros, era logo recolhida. Não porque fosse perda de tempo, trazer o aparelho de pesca onde não havia bacalhau, mas pela obsessão de além dos 200 metros, poderia haver alguma coisa que não permitisse alar o aparelho e ficasse por lá perdido.

Ao tempo o meio piscatório era tão primário e mesquinho que, para os capitães pescadores, contava mais os materiais gastos ou / 26 / perdidos, do que o próprio pescado e o seu valor.

É bem certo que tal mediocridade não atingia só os pescadores, gente boçal e primária, mas todos os chamados empresários em Portugal, cuja mentalidade, como diziam as velhas matriarcas, pretendia fazer filhoses de água.

Fora muito difícil e levado muito tempo aos capitães, entenderem eles próprios que eram empresários e que aqueles a quem chamavam de patrões, isto é os proprietários dos navios, apenas seus sócios capitalistas.

Se alguma vez a minha produtividade na pesca fora acima da média, é que eu sempre e só procurei o bacalhau, alheando-me do pesqueiro onde o encontrasse e algumas vezes em locais, que julgo piores do que o inferno.

Mas voltando ao que logo na minha primeira viagem a pescar bacalhau na modalidade de arrasto, de oficial imediato no Santa Joana, o primeiro navio português deste tipo construído em 1936, comecei a observar o cardume já acima mencionado, de tonalidades esbranquiçadas, se acolhia no descambar do canal por oeste do Banco Verde, a que os cartógrafos chamaram de Canal de Fletan e que, com a ampliação e subida do Golf Stream para norte, em conformidade ao aumento da temperatura sazonal, o bacalhau ia nele subindo também a norte.

Entretanto, à aproximação do extremo sueste da Ilha da Terra Nova, uma pequena parte desse cardume entrava nas baías e reentrâncias da costa, seguindo também para oeste até ao arquipélago de St. Pierre e Miquelon, enquanto o grosso da coluna de peixe continuava a norte pelo canal do Avalon acima, a distribuir-se em conformidade ao que ia encontrando de águas mais frias ou quentes. Assim subindo costa acima, com o cardume a ramificar-se, quer para leste como oeste, chegava ao Grande Norte, espalhando-se desde o Cabo de Bonavista até cerca dos 49º de longitude oeste.

Um segundo cardume de tonalidade mais acinzentada e escura, pelas mesmas razões climáticas do arrefecimento e avanço da corrente fria do Labrador, refugiava-se na mesma beirada sul dos bancos nas águas profundas, frente a um outro canal situado por leste do mesmo Banco Verde a que os mesmos cartógrafos chamavam de Canal de Eglefin. Com este peixe acontecia / 27 / fenómeno semelhante ao descrito com o do cardume do oeste, só que aqui, logo que o gadus morua atingia os 200 a 210 metros de profundidade, seguia para leste, ao longo da beirada até ao extremo do banco, para daí seguir a norte até Fleming Cap.

Obviamente que tais conclusões foram conseguidas ao longo de anos, a fazer duas viagens por ano.

Além disto, fui também de ano para ano, constatando que o bacalhau cada vez se deixava ficar mais pelo norte, devido a que a "banquise", como todos lhe chamávamos à imitação dos franceses, se ia cada vez mais amontoando na costa nordeste da Ilha da Terra Nova, a deixar ficar o sueste e sul dos banco completamente livres de gelos e a mostrar à evidência, haver qualquer coisa de estranho no planeta, a alterar as condições climatéricas oceânicas.

Obviamente que os seres vivos, no seu instinto de sobrevivência, foram-se deslocando com o seu ecossistema e como tal, refugiando-se em outras paragens, com certeza, a ressentir-se da adaptação aos novos locais e disto a haver consequências, especialmente nos órgãos e actos da reprodução, quer na postura das fêmeas como na fecundação dos machos.

Deste conjunto acima, resultou além da fuga do peixe dos seus locais habituais, também a diminuição do volume dos cardumes.

Curiosamente o que há cerca de 50 anos atrás, nas lides de pesca e in loco observei, fora com o andar do tempo concluindo, só mais de quatro décadas depois li e ouvi na comunicação social relatar, terem os geofísicos estudiosos das ocorrências astronómicas, anunciar estar o planeta a ser atingido por graves e acentuados fenómenos de aquecimento devido a enorme buraco na massa ozónica que o protege.

Entretanto surge-me à memória o facto de, em 1972 quando já deixado de ser pescador e assentado arrais como director dos serviços de armamento da EPA, onde curiosamente nela e ao seu redor trabalhei 57 anos, fora convidado pelo GANPB. A assessorar a representação portuguesa ao XXIII congresso da ICNAF. (International Comission Norwest Atlantic Fishing) a realizar em Copenhaga, onde acontecera ali juntar-se enorme multidão de políticos representando especialmente os países ribeirinhos / 28 / U.S.A, Canadá e Dinamarca que eram quem ali pontificava.

A representação portuguesa presidida por António Esteves Cardoso, um oficial de marinha de guerra licenciado em Engenharia de Construção Naval, ao tempo director do gabinete de estudos de pesca no Ministério da Marinha, onde tudo quanto não fosse militar era lateral e secundário, porém homem extremamente inteligente, brilhante e de grande eloquência a expressar-se na língua de Shakespeare, de tal maneira a fazer emudecer os representantes dos países de língua inglesa, para ouvir o "captain Cardoso".

Não obstante, era pessoa muito simples e afável com uma carrada de defeitos como ele próprio reconhecia, ligado ao elemento feminino, etc.

Além dele a presidir, éramos mais três assessores. O Dr. Ruy Monteiro do Instituto de Biologia Marinha de Lisboa, homem ponderado, discreto e dado ao tímido, António dos Santos Gaspar, oficial da marinha de guerra e chefe da Assistência no mar, aos navios bacalhoeiros e como tal embarcado no Gil Eannes, e eu, humilde e simples pescador.

Ora na Comissão e Plenário, só os presidentes opinavam e quem punha e dispunha eram os representantes dos países ribeirinhos. Acontecia porém que fora dos plenários tínhamos as nossas pequenas reuniões, em que todos nós manifestávamos a opinião a extravasar o seu saber, e eu como não podia deixar de ser, chamava a atenção dos meus camaradas de grupo para o que aqui acabo de opinar, manifestando a opinião de que a diminuição e depauperamento das massas de gadídeos, era mais devido a fenómeno natural da evolução climática do próprio mundo onde vivem, isto é do nosso planeta, do que dos excessos da sobrepesca quer dos homens como dos animais que dele se alimentam, tais como as focas.

Ora o Esteves Cardoso, mirou-me e remirou-me a mastigar a minha conclusão e de certo a compará-la à tão diferente opinião que sobre o bacalhau e sua pesca havia na ICNAF. Além disso para ainda mais o confundir, acrescentei-lhe ser da opinião que, para novamente termos bacalhau como o tivemos até aqui, será preciso passarem mais umas centenas de milhares de anos, por novo período glaciar, e só depois o bacalhau voltará a aparecer. / 29 /

Entre nós, cerca de 30 anos eram passados, desde um fugaz convívio aos vinte e poucos anos de idade, quando em 1943 durante a segunda guerra mundial, ele comandara um navio de pesca, armado em patrulheiro na barra do porto de Lisboa, e eu mobilizado da marinha mercante, assumia o cargo de oficial imediato de um outro barco de pesca, armado também em navio militar da rocega de minas, na mesma barra do porto de Lisboa.

Naquele momento ignoro, se este passado ressoara na memória do Esteves Cardoso a lembrar-lhe que o que eu dissera, ser merecedor de alguma atenção, pois a analisar casos destes, eu não era um qualquer capitão de mar e guerra licenciado em engenharia naval, mas um pescador de trinta anos no longínquo Árctico, desde o oeste, norte como nordeste deste Oceano.

O que sei é que o Cardoso, não com o à vontade que lhe era peculiar, mas até um pouco ensimesmado me respondeu: «Nunca tinha ouvido nem tal coisa imaginado, que pudesse vir acontecer! Mas o que você diz é estribado em observações de uma vivência e experiência plenas no mar, do que fico receoso que tal coisa possa vir acontecer! Contudo não irei lançar na mesa das discussões essa cataclismática cartada, que não beneficiaria a ninguém. Aqui, a nossa presença e trabalho, resume-se a evitar e contrariar, seja quem for, que pretenda diminuir a nossa actual quota de pesca.»

1