Memórias de um pescador – pp. 9-11


Prefácio

Jamais me tinha imaginado a iniciar o que hoje aqui estou a apresentar, brochura contando lembranças e memórias pessoais vividas e escritas na primeira pessoa do singular, isto é, por mim próprio.

Antes porém de isto terminar e fazer público, gostaria mais para satisfação pessoal com vistas a outrem que me venha a ler, não só explicar os motivos que me levaram a isto escrever, como também a especular o conceito filosófico da presunção e água benta cada um tomar a que quer.

Contar seja o que for através da escrita pressupõe, além de jeito e facilidade em escrever, também muito treino, pois não podemos esquecer que a função faz o órgão.

Além disso, gente avisada e eu julgo-me um deles, sabe bem que as falas leva-as o vento delas ficando apenas a ideia sumida do que fora dito consoante a memória curta dos homens que rápido esquecem quase tudo que ouvem, enquanto que o escrito fica ad aeternum a lembrar a quem leia o nome de quem disse e escreveu.

Ora acontecera-me ter nascido e até crescido em época relativamente recuada ao mundo de hoje e as suas múltiplas facilidades e encantamentos, na época em que as comunicações à distancia não iam além do telégrafo, sem rádios nem televisões, no tempo em que os homens não sabiam mais do que se ia passando ao seu redor e vizinhança, em que as famílias depois da ceia, rezado o terço em coro à lareira, todos ali ficavam acocorados ouvindo os mais idosos rememorar as suas histórias que outros velhos quando eles eram meninos, lhes tinham contado e recomendado que as recontassem aos filhos.

Tais histórias contadas de boca em boca principalmente por idosos e através de gerações, estropiadas pela fraca dicção, quem as ouvia, assim já com todos estes atropelos, ainda por cima acrescidas dos pontos que cada um que conta usa lhe aumentar, chegaram entretanto até mim, memórias só dignas de serem verbalmente contadas, já que a escrita não aceita a mouquice nem consegue tamurdear.

Assim e determinado a passar a mensagem que considerara / 10 / dever por legada de meus maiores, quando julguei oportuno tratei de preparar ambiente e circunstâncias de modo assemelharem-se às que muitos anos antes, quando eu criança as ouvira contar a meus pais e avós já velhinhos que diziam tê-las ouvido quando meninos, recomendando transmiti-las aos meus vindouros.

Então pensei convocar os filhos e os netos na convicção de todos estarem dispostos e até interessados em comigo se reunirem a saber o que eu teria para lhes dizer e contar; enquanto perdida a minha noção do tempo que tão depressa sem eu quase sentir passou, pus-me entretanto a procurar lugar ameno e em condições de reunidos, eu lhes poder falar.

Ora, lareiras confesso não ter sido nada difícil encontrar porém sem cinzas, frias por apagadas, só a fazerem de conta ao que eu procurava, faltando-lhe tudo o que o meu imaginário arreigado a um passado longínquo, ainda buscava, a chama, o calor e até o crepitar da lenha a fazer de música de fundo a obrigar-me, mas só a mim único desse tempo, a sonhar.

Porém o ambiente que inicialmente julgara no enfático conjunto o mais difícil de conseguir, acabara por ser de pouca monta face a outros pormenores muito mais difíceis e que não esperava deparar, como fora o caso dos meus ouvintes familiares.

Meus filhos a quem já pesam cinco décadas de anos, não se fizeram rogados e logo a mim se aconchegaram dispostos a ouvir-me sem dúvidas nem contestações. Diferente foi o que se passou com os netos, por nenhum deles encontrar tempo nem disposição de ali se sentarem a ouvir e me escutar.

Vez à vez pareciam combinados a faltar, espécie de desmancha prazeres a solicitarem um minutinho para se afastar, enquanto eu, tão habituado a ser obedecido fui fazendo das tripas coração, a contemporizar.

Até que um dia a mais nova, inconformada com a minha insistência que para ela pelos vistos, era despropositada teimosia de velho, no mundo já só a fazer de conta e numerário, me interpela risonha mas determinada a dizer: «Oh avozinho, tu não vês que o teu teimar em nos juntarmos para contares coisas passadas que nem ao menino Jesus interessam, mais quanto a nós, com tanta coisa que temos para atender é que não interessam mesmo nada.»

Confesso ter ficado siderado, pois o homem embora sendo um / 11 / animal de hábitos, eu não estava preparado para ouvir e enfrentar tal despautério, antes mandar e ser obedecido.

Contudo, sem perder a calma talvez até por habituado a enfrentar maus tempos, tormentas e até tempestades inesperadas, engoli em seco a rememorar o meu passado desde a longínqua infância, em busca das minhas relações com os meus avós, a tentar descobrir se
alguma vez me terá acontecido qualquer dito ou atitude semelhante, à que acabara de ouvir à minha neta mais nova acabada de se licenciar.

Então relembrei que os pais de minha mãe tinham falecido antes de eu nascer e o pai de meu pai finara-se ainda eu gatinhava, tendo ficado no mundo apenas a mãe de meu pai que muito velhinha veio a falecer aos 98 anos de idade numa sexta-feira véspera de Carnaval tinha eu 17 anos, a deixar-me irritadíssimo pois o raio da velha tinha-me estragado os folguedos do Entrudo.

Tal recordação levou-me não só a sorrir à minha neta, como a desistir do intento de lhes transmitir verbalmente o que eu julgava único modo de, dar continuidade e passar mais além da minha geração, o que de viva voz me tinha sido contado.

Só por isto e desajeitadamente, sem tendência natural nem treino, por não habituado a escrever, certo dia impelido pelo sentido do meu dever a cumprir, dei comigo debruçado sobre o papel a rascunhar isto que fora só meu intento e desejo de viva voz transmitir a contar, vi-me, contra tudo e todos, na contingência de escrever.

Entretanto e para além do que acabara de dizer, gostaria de ainda esclarecer que das memórias por mim ouvidas a outros que as contavam e que então e nas circunstâncias aceitei por verdadeiras, deixo aos meus possíveis leitores o critério de as julgar de outro modo as interpretar e concluir.

Quanto às recordações de coisas e histórias por mim vividas atrevo-me a jurar serem verdadeiras.

Porém, é meu dever alertar para quando eu era criança, sendo minha mãe costureira, ser correntio ela mandar-me à loja da Ti Carmina Moça comprar, e repetia-me o recado mais do que uma vez para eu não me enganar, um carrinho de linhas número trinta, brancas e eu chegado a casa com o carrinho de linhas do número que me fora pedido, verificar que as linhas em vez de brancas serem pretas.