Memórias de um pescador – pp. 5-7


Notas de Apresentação

A escrita de memórias dedica das à pesca do bacalhau tem registado um movimento crescente. Desde o começo dos anos noventa do século passado, capitães, pilotos e uns poucos pescadores têm correspondido aos apelos da memória e partilhado com a gente do mar e outra que ao mar se prende as suas vidas intensas nos mares longínquos do Atlântico Norte.

As venturas e desventuras das viagens olímpicas que, em plena segunda metade do século XX, os portugueses costumavam fazer à Terra Nova, ao arrepio do progresso técnico e da própria evolução do trabalho humano, têm sido o objecto favorito das memórias partilhadas por antigos tripulantes de navios bacalhoeiros. Quase invariavelmente, os escritos de memória incidem nas peripécias da navegação e da pesca, relatam os saberes e caprichos dos pescadores-marinheiros e evocam alguns aspectos mundanos dos interstícios de vida passados em terra, mormente no porto de abrigo de "São João da Terra Nova".

Mitificada em seus próprios exageros, a pesca à linha com dóris de um só homem – modalidade que o autor deste livro designa de "pesca artesanal e primitiva" – tem ocupado o lugar cimeiro no palco das memórias já inscritas no espaço público.

Não se deu ao vulgo o Capitão São Marcos. Estribado no seu pensar de maneiras próprias, num feitio persistente e fundamente irónico, o escritor destas memórias pegou no mapa das suas intuições, convocou os saberes vividos e o conhecimento feito de estudos - que tanto aprecia e continua a cultivar - e tudo verteu num texto de prosa corrida, saboroso e quente. O resultado da safra foi uma narrativa afectuosa e pouco presa a pudores de esquecimento, na qual se vislumbram muitas novidades e se assoalham diversas interpelações à memória feita.

 

A primeira originalidade deste escrito reside, a meu ver, no modo como o autor a si próprio se classifica. O facto de se apresentar como pescador e de prender as suas memórias a tal condição - uma herança de família, como bem conta – fixa com extrema clareza o perfil despretensioso da dupla personagem / 6 / que o livro encerra e combina – a do antigo capitão de navios de pesca do bacalhau, afinal não mais do que um pescador, e a do próprio escritor de memórias. Um e outro, por momento fundidos em prol da escrita destas lembranças vividas, se apresentam como anti-heróis; homens de viagens concretas e imaginárias, pouco dados à exaltação balofa de uma grandeza marítima de índole historicista, cuja construção pouco corporativa e assaz imposta pela oligarquia corporativa o autor denuncia com um desassombro fora do comum, aliás muito seu.

Igualmente curiosa e especialmente bem contada é a confessada condição do Capitão São Marcos como herdeiro dos "ílhavos da diáspora" e a sua sugestiva auto-definição como "ílhavo do mar alto". Nestes e noutros detalhes de natureza biográfica e de contexto, o meio sociocultural de Ílhavo, antiga vila de pescadores e posterior" terra dos capitães", surge representado com invulgar sensibilidade.

Conhecendo o Capitão São Marcos há uns bons anos, sempre confirmei nele a imagem que dele me fizeram: homem arguto e inteligente, incapaz de se levar muito a sério por ser dono de uma ironia mordaz. Marinheiro fugidio a quaisquer formas de tirania, assenta-lhe bem, mesmo que talo inquiete, como prevejo, a aura carismática de capitão dos capitães do arrasto bacalhoeiro.

Iniciado na pesca do bacalhau em plena Segunda Guerra Mundial, no ano de 1942, relata-se com um olhar agudo e singularmente crítico, evitando sacralizar a memória vivida a ponto de excluir outros afluentes de entendimento do "desgraçado mundo" em que se moveu durante várias décadas.

A seu jeito de viver e lembrar, não se lhe nota ponta de nostalgia. A dado passo do texto, fala-nos dos solilóquios a que se dava nos quartos, tempos monótonos que aproveitava para fazer viagens na história de Portugal, como se do convés do navio pudesse entrever e compreender todo o mar-oceano que fora nosso no pedaço de mar que dali via.

O hábito de ler história e de cultivar as humanidades é apanágio dos capitães bacalhoeiros que mais cultivaram uma consciência de elite, condição certamente recusada pelo Capitão São Marcos, mas que, creio, se lhe aplica.

Nas suas diferenças e idiossincrasias, os capitães da "grande / 7 / pesca" são extraordinários portadores de cultura marítima. As suas vidas de mar encerram histórias com sabor de odisseia, entre o épico e o dramático. Mas precisam de ser contadas com este desassombro e generosidade. Servida por testemunhos desta estirpe, a memória da pesca do bacalhau continuará a derramar-se por territórios sociais mais vastos, não apenas por conter narrativas fascinantes, mas também por ser plural e até desconcertante.

Álvaro Garrido

Historiador; Director do Museu Marítimo de Ílhavo