A escrita de memórias dedica das à pesca do bacalhau tem registado um
movimento crescente. Desde o começo dos anos noventa do século passado,
capitães, pilotos e uns poucos pescadores têm correspondido aos apelos
da memória e partilhado com a gente do mar e outra que ao mar se prende
as suas vidas intensas nos mares longínquos do Atlântico Norte.
As venturas e desventuras das viagens olímpicas que, em plena segunda
metade do século XX, os portugueses costumavam fazer à Terra Nova, ao
arrepio do progresso técnico e da própria evolução do trabalho humano,
têm sido o objecto favorito das memórias partilhadas por antigos
tripulantes de navios bacalhoeiros. Quase invariavelmente, os escritos
de memória incidem nas peripécias da navegação e da pesca, relatam os
saberes e caprichos dos pescadores-marinheiros e evocam alguns aspectos
mundanos dos interstícios de vida passados em terra, mormente no porto
de abrigo de "São João da Terra Nova".
Mitificada em seus próprios exageros, a pesca à linha com dóris de um só
homem – modalidade que o autor deste livro designa de "pesca artesanal e
primitiva" – tem ocupado o lugar cimeiro no palco das memórias já
inscritas no espaço público.
Não se deu ao vulgo o Capitão São Marcos. Estribado no seu pensar de
maneiras próprias, num feitio persistente e fundamente irónico, o
escritor destas memórias pegou no mapa das suas intuições, convocou os
saberes vividos e o conhecimento feito de estudos - que tanto aprecia e
continua a cultivar - e tudo verteu num texto de prosa corrida, saboroso
e quente. O resultado da safra foi uma narrativa afectuosa e pouco presa
a pudores de esquecimento, na qual se vislumbram muitas novidades e se
assoalham diversas interpelações à memória feita.
A primeira originalidade deste escrito reside, a meu ver, no modo como o
autor a si próprio se classifica. O facto de se apresentar como pescador
e de prender as suas memórias a tal condição - uma herança de família,
como bem conta – fixa com extrema clareza o perfil despretensioso da
dupla personagem
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/ que o livro encerra
e combina – a do antigo capitão de navios de pesca do bacalhau, afinal
não mais do que um pescador, e a do próprio escritor de memórias. Um e
outro, por momento fundidos em prol da escrita destas lembranças
vividas, se apresentam como anti-heróis; homens de viagens concretas e
imaginárias, pouco dados à exaltação balofa de uma grandeza marítima de
índole historicista, cuja construção pouco corporativa e assaz imposta
pela oligarquia corporativa o autor denuncia com um desassombro fora do
comum, aliás muito seu.
Igualmente curiosa e especialmente bem contada é a confessada condição
do Capitão São Marcos como herdeiro dos "ílhavos da diáspora" e a sua
sugestiva auto-definição como "ílhavo do mar alto". Nestes e noutros
detalhes de natureza biográfica e de contexto, o meio sociocultural de
Ílhavo, antiga vila de pescadores e posterior" terra dos capitães",
surge representado com invulgar sensibilidade.
Conhecendo o Capitão São Marcos há uns bons anos, sempre confirmei nele
a imagem que dele me fizeram: homem arguto e inteligente, incapaz de se
levar muito a sério por ser dono de uma ironia mordaz. Marinheiro
fugidio a quaisquer formas de tirania, assenta-lhe bem, mesmo que talo
inquiete, como prevejo, a aura carismática de capitão dos capitães do
arrasto bacalhoeiro.
Iniciado na pesca do bacalhau em plena Segunda Guerra Mundial, no ano de
1942, relata-se com um olhar agudo e singularmente crítico, evitando
sacralizar a memória vivida a ponto de excluir outros afluentes de
entendimento do "desgraçado mundo" em que se moveu durante várias
décadas.
A seu jeito de viver e lembrar, não se lhe nota ponta de nostalgia. A
dado passo do texto, fala-nos dos solilóquios a que se dava nos quartos,
tempos monótonos que aproveitava para fazer viagens na história de
Portugal, como se do convés do navio pudesse entrever e compreender todo
o mar-oceano que fora nosso no pedaço de mar que dali via.
O hábito de ler história e de cultivar as humanidades é apanágio dos
capitães bacalhoeiros que mais cultivaram uma consciência de elite,
condição certamente recusada pelo Capitão São Marcos, mas que, creio, se
lhe aplica.
Nas suas diferenças e idiossincrasias, os capitães da "grande
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pesca" são extraordinários portadores de cultura marítima. As suas vidas
de mar encerram histórias com sabor de odisseia, entre o épico e o
dramático. Mas precisam de ser contadas com este desassombro e
generosidade. Servida por testemunhos desta estirpe, a memória da pesca
do bacalhau continuará a derramar-se por territórios sociais mais
vastos, não apenas por conter narrativas fascinantes, mas também por ser
plural e até desconcertante.
Álvaro Garrido
Historiador; Director do Museu Marítimo de Ílhavo |