Migrações eram deslocações de gentes dos seus locais
de origem para outros, à procura de melhores proventos para desafogo da
sua vida.
Hoje, lembrei-me de ir ao encontro dos ratinhos,
trabalhadores rurais, vindos das Beiras, que demandavam a minha região
na época das “assêfas”(1), período que abrangia sobretudo os meses de
Junho, Julho e Agosto, no tempo em que os campos se doiravam de espigas
e o Alentejo se intitulava o “celeiro de Portugal”.
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Ceifas no Alentejo –
Imagem de marca de um restaurante típico de Aveiro. |
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Lembro-me muito bem de os ver nas décadas de quarenta
e cinquenta do século passado, formando “camaradas”(2) que se
distribuíam pelas herdades dos grandes latifundiários, conforme já fora
combinado, antecipadamente, entre aqueles e o respectivo manageiro, seu
representante. Eram homens simples, laboriosos, humildes, francos,
fraternos, pobres de bens materiais, mas ricos de valores éticos e
comportamentais. Viajavam de comboio até Ponte de Sor e, se o contrato
não se formalizara com transporte, iam a pé para os montes de
acolhimento, só descansando para consolar o estômago com bocados de broa
e vinho envinagrado.
Ao passarem pelas Galveias (minha terra), formavam
colunas ao descerem a estrada macadamizada até ao alto da Azinhaga de
Avis, embrenhando-se depois por caminhos de pé posto. Por vezes, surgiam
alguns cachopos mais atrevidos que, com o intuito de os ridicularizar,
diziam:
– Ratinhos da Bêra,
Cómim pão e dêxam a farrenhêra!
e
– Ó ratinhos, rátim o pão,
Rátim o quêjo e o focinho do mê cão!
Eles, serenos, não lhes ligavam ou, a rir,
respondiam-lhes:
– Olhem que não!
Comemos a farrenhêra e dêxamos o pão!
e
– Somos ratinhos, ratamos o pão e o quêjo,
E às meninas, pedimos um bêjo.
Chegados aos montes, ocupavam as camaratas que lhes
estavam destinadas, arrumavam os sacos com os poucos haveres que traziam
e, enquanto descansavam, esperavam pela papança a que ferravam o dente
para enfiar na tripa. Alguns dos mais velhos garganteavam lamentações
sobre o raio da vida que lhes coubera.
Assim que o sacristão do céu acendia as primeiras
estrelas, iam deitar-se em cima de esteiras de bunho e, cansados,
dormiam a sono solto. No dia seguinte, antes do Ti Manel(3) nascer,
estavam preparados para enregar a safra.
Habitualmente, os ratinhos comiam e bebiam por conta
dos lavradores à “boca livre”(4), cujos comeres, substanciais, à base de
feijão frade, feijão catarino, grão, batatas, sopas de pão “todo um”(5)
e bóias de toucinho e enchidos de porco, eram levados por um criado da
lavoura designado por mantieiro. Sendo assim, recebiam pouco dinheiro
que forravam para governo da família. Porém, a maior parte das
“camaradas” trabalhava a seco, isto é, só por dinheiro, sendo
responsável pela sua fraca mantença, não abdicando cada um dos seus
membros, de poupar, poupar, chegando até à sovinice.
Normalmente, as “assêfas” começavam pela aveia,
depois o centeio, a cevada e por fim o trigo.
Era um trabalho árduo! Feito de sol a sol, debaixo de
um calor tórrido, desempenhado corajosamente, encharcava-lhes o corpo de
suor e, eles, com ansiedade, esperavam, de quando em vez, a vasilha de
água que emborcavam com sofreguidão, para se dessedentarem. Mesmo assim
com o sol em brasa, algum dos mais afoitos interrompia o trabalho,
erguia a cabeça e, com voz vibrante, desabafava:
Fui ao livro do destino,
Minha sorte procurar.
Em todas as folhas li,
Que nasci p`ra trabalhar.
Chegados ao pôr-do-sol desapegavam do trabalho e, se
as noites estivessem quentes, estendiam uma manta sobre o restolho e ali
mesmo se entregavam a Deus para que lhes desse um santa noite e forças
para o dia seguinte.
Concluídas as “assêfas”, faziam as contas. Desta vez,
o manageiro oferecia uma boa pinga, cujo efeito se notava na algazarra
que alvoroçava os montes por meio de cantos, choros, gritos,
agradecimentos e vivas.
No dia seguinte, tocava a reunir e faziam-se ao
caminho do regresso. Chegados a casa, tinham caloroso acolhimento, sendo
recebidos com gritos de júbilo e lágrimas de saudade.
As minhas raízes ruralista e campesina de que me
orgulho e nunca esquecerei, levaram-me com este pequeno texto, a
perpetuar o trabalho destes homens “d`uma cana” (6) que, de pé firme e
mão vigorosa, ceifavam o pão que nos matava a fome.
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(1) – as ceifas ● (2) – Ranchos ● (3) – Sol ● (4) –
Barriga cheia ● (5) – Escuro ● (6) – Rijos |