Mugina, o frio é intenso, e um prenúncio de vento norte parece
agitar a planície. Contudo, estranhamente o céu está limpo e
estrelado e a lua cheia torna a noite clara. As escassas árvores,
quase todas mães de azeite, mexem-se suavemente como que inquietas.
Os cães, silenciosos, aconchegam-se debaixo da arramada do
monte, junto à porta de entrada. Mais afastados, na estrebaria, os
cavalos batem os cascos no chão provocando um ruído de todo
enquadrado no ambiente. A uma distância maior, onde antigamente
corria sussurrante barranco, um mar de água quieto/espelhado
reflecte hoje a disposição, neste caso estrelada e luminosa, do céu.
Envolvidos no silencio especifico que reina nesta
lonjura bela, os pensamentos surgem, atropelando-se, em cambulhão,
vindo-me à memória os amigos e os “amigos”, bem como recordações de
outros. Relativamente ao primeiro grupo, surgem os que a morte levou
mais os que circunstâncias avulsas da vida afastaram; quanto ao
segundo, afastam-se sempre que saímos da ribalta e que perdemos
influência/poder/capacidade de compra; do grupo dos outros, talvez
porque ao longo da vida ouvi o meu pai e outras pessoas de quem fui
estando perto, dele falarem com algum respeito e admiração, surgiu
Agostinho Fortes, filho desta região e defensor da sua cultura. Por
isso, talvez seja boa ideia aprofundar a conversa...
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Agostinho José Fortes, catedrático, nasceu em Mourão em 26 de
Outubro de 1869, vindo a morrer em Lisboa no dia 10 de Março de
1940.
Formado em letras e muito versado em literatura grega, concorre em
1904 à cadeira de história antiga, medieval e moderna, ficando
aprovado.
Em 1906 foi eleito, em congresso, membro substituto do directório do
Partido Republicano Português, vindo a ser, após a proclamação da
Republica, chefe de gabinete de Teófilo Braga.
Durante o ano de 1910 fundou o jornal A Reforma Social, que se
pretendia ser porta-voz da corrente radical socialista.
Em 1911 substitui Consiglieri Pedroso, por falecimento deste, na
regência da cadeira de História Geral, tendo passado para a
Faculdade de Letras que secretariou durante muitos anos.
Foi vereador do Município do Lisboa na primeira vereação Republicana
e Presidente da Junta Geral do Distrito de Lisboa.
Segundo a informação da época, foi Republicano convicto com
acentuados princípios socialistas, filiando-se no Partido Socialista
Português em 1919.
Apesar de ter sido jornalista, escritor, vereador, deputado e
senador, na prática viveu sempre da sua actividade de professor,
tendo leccionado em inúmeras escolas, e fundado a Escola Estefânia,
em Arroios, da qual foi director e proprietário. Fundou também a
Escola Agrícola da Paiã.
Profundamente ligado ao Alentejo e apaixonado pelo associativismo
regionalista, foi fundador e destacado dirigente da Liga Alentejana
e do Grémio Alentejano, mais tarde, e até hoje, Casa do Alentejo.
Na sua qualidade de jornalista e escritor, colaborou na História
da Literatura Portuguesa e na História do Regime Republicano.
Escreveu várias obras, entre as quais “O Homem Antes da
Civilização”, “A Sociedade”, “O Homem Como Factor
Social”, “Portugal Novo”, “História das Nações
Europeias”, “Nótulas Acerca de um Falar da Margem Esquerda do
Guadiana”, “Os últimos 100 Anos” e Alexandre Herculano.
Escreveu também em muitos jornais e revistas, tendo em alguns deles
o importante papel de fundador e/ou director, sendo a maioria destes
periódicos com sede no Alentejo.
Quando morreu, tinha em preparação uma edição escolar, anotada, dos
Lusíadas e uma História de Portugal.
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... Esta humidade, apesar do abrigo da samarra sobre os ombros,
entranha-se até aos ossos. A noite já vai alta e os cigarros já são
poucos. Os devaneios por vezes são óptima companhia, nem sentimos o
passar do tempo ante tanta beleza e paz, facilitada pela
ausência da conspurcação habitualmente provocada pelo ser humano, o
pior é que daqui a pouco já é dia e, forçosamente, temos que voltar
às conversas e sorrisos de circunstância, fingindo ser/sentir o que
não somos/sentimos.
Mereceu a pena pensar e falar em Agostinho Fortes, especialmente
tendo em conta a sua paixão, e a minha, por esta região, suas gentes
e cultura.
Um último afago aos cães, que retribuem com singelo rosnar de
agradecimento, e cama que as botas já pesam.
Sem margem para dúvidas, este é o meu chão.
Luís Jordão –
2008 |