Memórias Entrelaçadas

   

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A AVENTURA

DA ESCRITA LITERÁRIA


1. Diário Intermitente (novembro 1994)

Desatei a “escrever para publicar”, em maio de 1989. Nem mais nem menos: “para publicar”! Isto escrevi eu em 20 de maio desse ano (Diário Intermitente, Eugénio Beirão, ed. do autor, Aveiro, 1994, p. 14). Mas registei mais. Que escrevia “para encher um certo vazio. Para brincar com as palavras. Para (re)criar. Para criticar. Para refletir, dizer o que sentia e pensava. Para comunicar...” E assumia que “escrever a sério” e “para publicar” exigia e implicava uma grande “responsabilidade”. Mas também proporcionava “aliciante aventura!”

E por que comecei eu a escrever, abruptamente, com uma intenção literária?

Já ficou explicado no capítulo 13 – “Ao serviço da Igreja e da comunidade (I)” (pp. 200-201). Agora só recordo o essencial.

Desde outubro de 1980 eu trabalhava na pastoral litúrgica e outros setores na paróquia de São Bernardo e em novembro de 1988 foi-me pedido para dar uma ajuda na Igreja de Jesus, no Museu de Santa Joana. Ensaiava os / 396 / cânticos em minha casa a um grupo de seis ou sete senhoras e, organizando também o serviço de leitores, conseguimos dar à celebração dominical da Eucaristia mais qualidade e um ar bastante festivo. E o número de participantes começou a aumentar. Dois domingos antes da Páscoa, já em 1989, o padre António Oliveira, que era o capelão, não pôde presidir por haver sofrido um pequeno acidente e compareceu o pároco, que me disse quando o saudei:

– Então, já não lhe chega São Bernardo?!

Expliquei-lhe por que estava ali, desde quando e o que procurava fazer...

À tardinha aparece em minha casa o senhor Simões, que me pedira aquela colaboração e desempenhava na igreja de Jesus uma função semelhante à de sacristão. Escandalizado, contou-me o que ouvira da boca do senhor prior (eu saía para São Bernardo antes da bênção final) e o recado sumário: “Não quero cá o ....”. Eu expliquei-lhe, e depois ao grupo, o que acontecera em 1980... e que era um bem o que estávamos a fazer. Porém, pesando tudo e para evitar um mal-estar e incómodo na comunidade cristã, decidi afastarmo-nos, o que entristeceu o bondoso padre António Oliveira.

Este acontecimento causou-me forte revolta interior e grande sofrimento espiritual. E uma crise, não de fé, mas de relação e confiança entre membros da Igreja, uma “crise de ordem espiritual”, de “dor espiritual” (cf. Entrevista para o Jornal do Fundão, dada em janeiro de 2004, in As palavras em Mão – Apontamentos de Literatura, João Gamboa, ed. do autor, Aveiro, 2011, pp. 309 e 317-318). Uma crise que, tendo passado pela compra, na feira do livro desse / 397 / ano, de mais de quarenta obras de “poesia, conto, romance, ensaio, estudo erudito, no âmbito literário; e também o livro filosófico e religioso” (Diário Intermitente, p. 22), se prolongou por muito tempo. Cerca de um ano depois, em 22 de abril de 1990, eu confessava no soneto “Resignação” (Diário Intermitente, p. 76) ter “murchado em mim a flor do entusiasmo”, “ser um crente triste, resignado”, “apontado a dedo pelo Anjo Negro”, mas “querendo ser fiel à Igreja” e “amar a Cristo”.

Capa e ilustrações: Jeremias Bandarra

Apresentação: Rosa Lídia Coimbra

Leitura: Fernando Pinto, Graça Veleda,

              Inês Amorim, Maria Isabel Casal

Música: Guitarra Clássica: Miguel Lélis

Tudo, porém, foi ultrapassado. Se “no luto nasceu a escrita/ e a dor se fez palavra”, pude escrever em “Na Luz das Palavras” (1988), p. 114, no poema que encerra o livro e tem o mesmo título:

Caminho à luz inventada

do verbo

e nela me curo

da sombra e da noite.

Nem podia ser de outra maneira. No auge da crise em maio de 1989, eu próprio me exortei a preferir sempre o amor:

Não deixes fazer-se noite

no teu coração.

No teu peito nunca se acoite

a negra escuridão

do pérfido ódio.

 

Antes suba sempre ao pódio

da tua vida

o Amor que tudo alumia

com sua doce alegria.

(Diário Intermitente, p. 37)

Iniciado em 8 de maio de 1989 e terminado no dia de Natal de 1991, este Diário Intermitente só o publiquei em novembro de 1994. E, depois de o dedicar a meus Pais, dediquei-o também “A quem me atirou / para a aventura / 396 / das Palavras...” Em abril do mesmo ano (1994), antes portanto, havia publicado Invocação de Deus, que escrevi depois do Diário.

Quero fazer memória ainda, para terminar, do gozo que vivi nos últimos dias de julho de 1991, acampado com a família no parque de merendas de Montemor-o-Velho, que servia de parque de campismo. Logo a partir das seis horas da manhã, ainda na tenda ou já no carro, que me servia de “posto de observação, de escuta, de leitura e de escrita”, era um enlevo ouvir e observar o que se passava à volta.

Ou os trinados dos rouxinóis “desafiando as voltas e harpejos do violino do Concerto em Ré Maior de Tchaikovsky, que ouvia no auto-rádio (102); ou o toque da alvorada feito pela pega, “de voz cinzenta e gaguejada, como que às gargalhadas”(103); ou a “sinfonia matinal dos pássaros, festiva e fresca, um hino singelo ao novo dia”, em que sobressaía novamente “o solo de violino do rouxinol” (103); ou, finalmente, o inesquecível encontro onírico e diálogo atemporal com Fernão Mendes Pinto (103-104), concluindo que, quatrocentos anos depois, pouco haviam mudado as convicções e motivações que comandam as ações do homem (cf. Rosa Lídia Coimbra, “Notas de uma leitura de Diário Intermitente de Eugénio Beirão”, in As Palavra em Mão, 2011, pp. 128-129).

Em breve testemunho sem data, a enfermeira irmã Isilda Pedro resume assim as impressões que lhe deixou a leitura deste “Diário Intermitente”: “Gostei imenso, li-o com entusiasmo, à maneira de romance; à maneira que ia lendo, mais desejava ler. Li, pois, com gosto.

Comunica vida e suas curvas, acidentes do caminho; perseverança, luta; denúncia e sentido realista da vida; linguagem apelativa – construção do mais e melhor”.

 

2. Invocação de Deus (abril 1994)

A crise espiritual que me empurrou para a escrita não era objetivamente uma crise de fé, mas Deus estava lá nas margens. Dos trinta e dois poemas que integram o livro Diário Intermitente, treze falam explicitamente de Deus. Saliento o primeiro e o último. Naquele, com o título de “Fome / 399 / de Eternidade”, é clara a ânsia de “encontrar a Deus/ e vê-l’O” e “com Ele serenamente viver”. Neste, um poema de Natal titulado “Fica connosco”, a súplica final é feita em nome de todos os crentes e homens de boa vontade: “Fica connosco, Deus-Menino./ Ilumina nosso destino”.

Não admira, assim, que o livro que escrevi a seguir, mas publiquei antes, tenha Deus como tema e se intitule “Invocação de Deus”. Ele é de facto uma reflexão sobre Deus e o porquê e o como da vida à luz do cristianismo. E procurei falar de Deus e invocar o seu nome “até à exaltação,/ com um pouco de música, se possível,/ e alguma beleza” (13). Eu tinha necessidade desta experiência de meditação, para ultrapassar a dor espiritual e consolidar a minha identidade e vivência cristãs. Para resolver a “crise”.

Capa e ilustrações: Maria de Fátima Gamboa

Prefácio: Filipe Rocha

Apresentação: Rosa Lídia Coimbra

Leitura: Ana Paula Cabrita, Fernando Pinto,

             Maria Isabel Casal, Rosa Edite Gonçalves

Música: Coro a capella: Coro Litúrgico

              de Milheirós de Poiares

Guitarra Clássica: Miguel Lélis

Os poemas são autênticas orações, como salientaram o professor Filipe Rocha, no prefácio, e a professora Rosa Lídia Coimbra, nas palavras de apresentação aquando do seu lançamento, em 2 de julho de 1994. O texto de Rosa Lídia Coimbra foi publicado na revista Brotéria, em abril de 1995, com o título de “O sentimento orante do eu poético”, realçando assim o caráter suplicante desta poesia. Estes poemas, além de prece são também exaltação, louvor, canto. E são tudo isto com intenso sabor bíblico e litúrgico. O que não admira. Eu bebia nesse manancial inesgotável há muitos anos, pois já ensaiava e dirigia o canto litúrgico de maneira continuada desde os primeiros anos da década de 1970 e compunha para a liturgia desde um pouco mais tarde. Hoje (2017), que continuo a fazer o mesmo, escolho, de vez em quando, / 400 / e desde há bastantes anos, um desses poemas para ser proclamado tal e qual ou com adaptações na celebração da eucaristia, depois da comunhão, de acordo com o tempo litúrgico, ou com a Palavra do dia. Alguns exemplos: “Ensina-nos a Palavra” (pp. 16-17), Advento (pp. 22-23), Vacilações (pp. 24-25), A Estrela de Deus (p. 36), Libera nos II (p. 38), Comunhão (p. 39), Páscoa I (p. 40), Oferenda I (p. 44), Veni Sancte Spiritus (p. 45), Cruz Florida (pp. 48-49), Natal II (pp. 74-75), Fazei memória (p. 80).

“Na poesia e na liturgia, o meu trabalho é com a palavra”, disse eu em entrevista ao Correio do Vouga (em 14 de abril de 2010, pp. 3 e 8), a propósito do lançamento do livro “Nas asas da Liturgia e outros voos”. A palavra efémera do homem e a Palavra eterna de Deus. A palavra escrita e a palavra musicada. A palavra lida e a palavra cantada. No fundo, a palavra inspirada e bela que nos alimenta a alma e nos enleva e eleva, em sua asa luminosa, pelo azul sem fim...

O poema O Cântico da água (pp. 34-35), que transcrevo levemente podado, é imagem dessa fonte viva de sabedoria e procura que dimana do tesouro que é a Bíblia e a Liturgia.

Antes, a água não corria

na bica do fontenário

(...)

Um dia, os mineiros foram à sua procura

e encontraram-na a correr em fio,

leve e pura,

a gemer na frescura

da pedra azul.

Hoje, a água desliza no canal que lhe fizeram

e tomba na pia de pedra do fontenário

(...)

/ 401 /

Eu encho a concha da mão

e regalo-me,

no calor ardente do verão.

(...)

É Deus que sacia a sede

de quem procura a água viva

e bebe.

Quando este livro foi apresentado por Rosa Lídia Coimbra, em 2 de julho de 1994, eu li ao público o “discurso” seguinte:

A vida do Homem sobre a Terra é uma busca contínua. Uma busca do Bem e do Belo, uma busca da Perfeição, da Verdade e do Transcendente, uma busca de Deus. E por muitos e variados caminhos.

No caso pessoal deste vosso amigo, por duas formas, entre outras, se tem insinuado esta procura: pela música e pela palavra, pela palavra e pela música.

Olivier Messiaen, talvez o mais impressionante compositor do século XX, falecido em abril de 1992, com 84 anos, afirmava em 1966: “Tenho tentado ser músico cristão, isto é, colocar a minha fé na música que escrevo. Ainda não o consegui inteiramente até hoje. Quero escrever uma música que cante, que seja como um perfume desconhecido, uma ave sem poiso nem descanso; uma música como um vitral de igreja, uma música que anuncie, simultaneamente, o fim dos tempos e o tempo presente, uma música que exprima os mistérios sobrenaturais e divinos. Um arco-íris espiritual. Procuro saciar a sede humana pelo trans-real com a meditação musical dos mistérios sobrenaturais”. E em 1979 Messiaen ia mais longe: “A Música é a Arte mais próxima da Fé. Pertence-lhe “esclarecer” as coisas que escapam aos teólogos”.

Vós não sois, certamente – desculpai-me a frontalidade! –, o grande compositor e organista francês Olivier Messiaen. E eu, é claríssimo e óbvio, ainda menos. Porém todos somos feitos da mesma carne e osso que ele. Isto é: ressalvadas as devidas distâncias – Messiaen era um génio –, também nós procuramos chegar ao Transcendente, a Deus, através do Belo, procurando, assim, saciar a sede e o desejo pelo que está para além e acima de nós. / 402 /

Os poemas que vamos ouvir, inspirados em temas da Bíblia e da Liturgia, são ecos vivos desta procura religiosa e artística. Como o são, também, os hinos para a Liturgia.

A arquitetura desta sequência de poemas é clara e simples: ao desejo inicial de Deus segue-se a expressão da dúvida, das vacilações, da fragilidade humanas; há, depois, e de forma interrogativa, a proclamação da dignidade da pessoa humana, transitando-se a seguir, sempre em crescendo, para atitudes de súplica, de oferta, de misticismo e contemplação, para se culminar na afirmação da Fé e no júbilo festivo da exaltação das maravilhas salvíficas de Deus e da comunhão dos crentes reunidos à mesa do banquete divino.

O Coro intervém de vez em quando, cantando hinos litúrgicos, para sublinhar, suscitar ou potenciar ideias, sentimentos e atitudes interiores; para sugerir respostas a interrogações e dúvidas; ou para aprofundar o sentido da busca, da prece, da contemplação, do louvor, da jubilação.

Não sei se poderá afirmar-se que a poesia implica e pressupõe a música e que a música implica e pressupõe a poesia. Mas sei que a música que compus, para além de se inspirar na palavra bíblica e litúrgica, procura – procura! – estar ao serviço dessa palavra de modo a que esta saia valorizada e facilite a oração do crente. E também sei que a música dá expressão ao mais profundo sentir da alma, e ajuda à festa.

Queridos Amigos! Espero, sinceramente, que esta sessão continue a ser agradável e constitua para todos um espaço e um tempo de pacificação interior e de felicidade e exaltação espiritual. Se não pelo valor da poesia e da música, seguramente pela sensibilidade e competência dos intervenientes: a já atentamente ouvida dra. Rosa Lídia; os dedicados declamadores Ana Paula Cabrita, Fernando Pinto, Maria Isabel Casal e Rosa Edite Gonçalves; o muito digno e seguro Coro / 403 / Litúrgico de Milheirós de Poiares e a sua competente diretora Clarinda Ferreira, conjunto pelo qual tenho a maior estima; e Miguel Lélis que à guitarra clássica acompanhará alguns poemas, criando assim um ambiente de dignidade e nobreza.

Quero confessar aqui alguma influência na redação de alguns poemas deste “Invocação de Deus”. É de José Augusto Mourão, através do seu livro “Dizer Deus ao (des)abrigo do Nome” (Difusora Bíblica, Lisboa, 1991).

Esta influência expressa-se na recuperação de alguns temas e palavras ou em simples ecos difusos.

E quero dizer que escrevi estes poemas (são quarenta mais um – o de abertura) entre janeiro de 1992 e agosto de 1993, tendo publicado o livro em abril de 1994.

Desejando que este texto, (este capítulo, este livro) possa ser a consumação de um sonho e o sítio de efetivação de um encontro belo e perfumado com a sabedoria do Saltério, quero terminar com esta:

Prece

Não te peço

a transfiguração do corpo

(...)

 

Peço-te a nuvem branca

que transporte o meu sonho.

(...)

 

Peço-te

a vertigem do azul,

(...)

o riso de amigos

e alguma luz e música

para a jubilação do encontro.

                    (Invocação de Deus, p. 20)

/ 404 /

3. Pétalas e Rubis (abril 1995)

As composições poéticas que constituem o terceiro livro que editei, num total de quarenta e três, foram escritas entre setembro de 1992 e junho do ano seguinte. O volume esteve para chamar-se Bagatelas, depois anunciei-o como Bagatelas e Rubis, mas acabou por intitular-se “Pétalas e Rubis”. É mais poético este título mas, sobretudo, traduz de maneira mais significava e fiel a minha intenção e simplicidade de escrita em poemas breves e despojados, quase sempre de versos curtos – as “pétalas singelas” que o poeta oferece, logo a abrir, ao possível leitor. Os rubis acrescentam à singeleza e graciosidade dos poemas e dos versos (das pétalas) a ideia de preciosidade e beleza, presentes sobretudo no último poema (Bagatelas), em expressões como estrelas luminosas, pequenas joias preciosas, pirilampos a luzir, feixes de luz (p. 80).

Capa e ilustrações: Afonso Henrique

Prefácio: Virgínia de Carvalho Nunes

Apresentação: Virgínia de Carvalho Nunes

Leitura: Ana Paula Cabrita, Graça Veleda,

             Inês Amorim

Música: Trio Cordas e Sopro (guitarra clássica,

             clarinete, violoncelo)

A empatia e a comunhão com as coisas simples (as bagatelas) da natureza é uma constante e o leitor pode comprazer-se, associando-se à fruição do poeta: desfruta a frescura da água, a beleza das flores, o canto da cotovia; deslumbra-se com os arrebóis, sente a “volúpia do silêncio”, tacteia e visualiza em associação sinestésica o aveludado do outono, a paleta das cores; volta a ser menino e saboreia as amoras do campo que se oferecem como guloseima apetecida e embriagante; experimenta sentimentos de fraternidade e amizade, esparsos nesta poesia perfumada ainda pela presença de Deus, / 405 / mesmo quando não está explícita (cf. o texto de Virgínia de Carvalho Nunes, in As Palavras em Mão, 2011, pp. 139-140). Mais uma vez, pétalas e rubis.

Por isso o Convite (p. 64): “Cerra os olhos/ do corpo/ e abre-te/ ao rosto/ iluminado/ das coisas.// Serás feliz/ como as crianças/ que traçam/ riscos e rabiscos/ nas loisas”.

O livro foi publicado em abril de 1995. Mais uma vez, abril!

Mas setembro pode ser fonte de

Bem-aventurança

 

Há frutos de setembro

no teu olhar

quando os lábios da noite

se cerram, aveludados.

 

Uma serena fulguração

brota então dos teus dedos

crescendo

como um fio de lua.

 

No teu rosto poisa

a bem-aventurança,

asa branca

de água e silêncio.

 

E uma quietude perfeita

respira na rosácea pura

do teu corpo

como um aroma de maçãs.

(“Pétalas e Rubis”, p. 41)

/ 406 /

4. Rosa-dos-Tempos (abril 1996)

Rosa-dos-ventos. Rosa-dos-tempos. Sempre rosa. Aquela resulta dos variados rumos dos ventos predominantes. Esta faz-se do “espanto dos dias ora fagueiros e leves, ora brutais e amargos”(12). De facto, “é variada a rosa-dos-tempos,/enfeita-se de muitas cores” (32). É rosácea. É “rosa de todas as pétalas,/ diferentes e variadas nas cores” (45). Sim, é rosácea. Rosácea luminosa e fulgurante, rosácea florida, ornada do ouro mais fino, desfolhada no meu e no teu tempo de humanidade. Rosácea fecunda que se desentranha em frutos. Rosácea que gira e roda incansável no seu frutificar.

Tem sido a minha vida uma “rosa no tempo desfolhada” (62), uma rosácea fecunda?...

Tudo isto eu digo e reflito, e muito mais, na obra de poesia “Rosa-dos-Tempos”, publicada em abril de 1996. São 70 os poemas que a constituem, escritos ao longo de 1994 e 1995.

O livro tem por tema o tempo e divide-se em três partes: Tempo breve, Circularmente, Compaixão.

Todos temos a sensação de que o tempo que vivemos nos foge “por entre as mãos, como enguia” (142): “Um trilo de flauta:/ surpreendeu/ e emudeceu”(20).

Capa e ilustrações: Soraya

Prefácio: Idália Sá-Chaves

Apresentação: António Manuel Ferreira

Leitura: Graça Veleda, João de Mancelos,

             Maria Isabel Casal

Música: Florbela Gonçalves, flauta

             José Gonçalves, guitarra clássica

Mas é variado o tempo que nos arrasta consigo em sua marcha nupcial (24) e nós julgamos viver: “Há dia e há noite,/ há manhã e há tarde,/ há / 407 / meio-dia e meia-noite.// Há outono e há inverno,/ há primavera e há estio,/ há céu e inferno.// Há morte e há vida,/ há luto e há festa. (...)// É variada a rosa-dos-tempos” (32).

Diz o Eclesiastes 3,1 que “Todas as coisas têm o seu tempo”. Sim,

Há um tempo para florir

e um tempo para murchar:

há um tempo para rir

e um tempo para chorar. (46)

Mas todo o tempo é digno de ser vivido. E de ser cantado, desde o nascer ao morrer. É o que procuro fazer no poema Louvação das Horas(53), com nítida influência de S. Francisco de Assis no que respeita ao elogio da morte.

Louvada seja a noite e a madrugada,

a hora de laudes e o meio-dia,

o pôr-do-sol com a sua magia,

o tempo da lua branca e alada.

 

Louvada seja a vida já passada,

o presente com sua dor e alegria,

o futuro que a esperança alumia,

e a eternidade, em Deus seja louvada.

 

Louvado seja o tempo das colheitas,

o inverno e a primavera multicor.

Louvado seja o tempo de nascer.

 

Todas as horas são horas perfeitas

e todo o tempo é tempo de louvor.

Louvada seja a hora de morrer.

 

Escrevi na Nota do Autor(143):

“Traduz este livro a minha postura face ao mundo e ao tempo que me é dado viver: o que corre dentro de mim e quase só a mim pertence, e o que /  408 / me é exterior e é pertença de nós todos, nele tendo cada um envolvimentos de graus diferentes. É este o tempo que eu amo. E é com ele, por ele e nele que eu choro ou rio, me alegro ou sofro. Sempre esperando o novo tempo futuro”.

Antes desse “novo tempo futuro”, eu “quero viver o presente(...)/ de modo forte e ardente”(42). Por isso

“Canto o azul e a maresia,

exalto o mar e a luz do sol.

Cavalgo o vento, noite e dia,

acendo o arrebol”.

E quero viver o presente com algum empenhamento social, por exemplo contra a mediocridade, contra a indiferença, para que haja luz na cidade:

Pela paixão é que vou,

(...)

conjugo sempre o verbo amar”.(93)

Nesta caminhada para o melhor e o mais belo, também a poesia, entre outros meios, é alimento que dá força: “Poesia/ é pão nosso/ de cada dia:/ sempre se come/ com alegria.// (...)// De poesia/ nos alimentamos./ Da palavra/ vivemos”(124).

E bem preciso é, pois a realidade temporal do mundo é composta de morte, de miséria, de sofrimento, de ódio, como o demonstram os poemas “Os Meninos Africanos”(94), “Sobre a Mesa”(30), “Os Cidadãos de Sarajevo”(118), “Os Meninos de Ninguém”(106).

Os meninos Africanos

Rosas negras ressequidas,

frágeis como bolas de sabão.

Olhos mortiços, sem gota de água,

da cor da fome e da ausência.

/ 409 /

Corpos secos, resignados,

oferecidos à dor e à morte.

Mártires do ódio e da guerra,

os meninos da fome africanos.

Por isso é indispensável assumir o sentimento da compaixão que nasce do amor - agapê, pondo nela a força e o entusiasmo da paixão, como mostra o poema

        Banquete


Abri o armário

e procurei pão:

saiu uma borboleta

voando.

 

Abri a gaveta

e peguei numa faca:

era uma flor

sorrindo.

 

Abri a carteira

e tirei uma moeda:

saltou uma estrela

brilhando.

 

Surpreendido,

interroguei-me sobre o que faria

com o pão e a borboleta,

com a faca e a flor,

com a moeda e a estrela.

/ 410 /

Com a moeda comprei mais pão.

Parti-o com a faca

e coloquei as fatias sobre uma enorme mesa,

enfeitada com toalhas brancas.

Colhi a flor em que poisara a borboleta

e pu-la no centro da mesa

para dar mais brilho e cor à sala.

 

Ao pão juntei leite e mel

em abundância.

E suspendi no teto a estrela

para iluminar todo o espaço.

 

Saí, a meio da tarde,

a convidar para o banquete

as crianças e os velhos do meu bairro...

 

Vieram às dezenas.

E comeram,

conversaram,

riram,

lambuzaram-se,

conheceram-se.

 

Quando já pareciam saciados,

peguei no acordeão e toquei...

Então dançámos,

cantámos,

rimos de alegria,

fizemos festa.

/ 411 /

Chegada a hora da despedida,

vi-lhes estrelas de água a brilhar nos olhos,

e um sorriso doirado a esvoaçar

nos rostos iluminados. (95-97)

O “novo tempo futuro” temos de lutar por ele todos os dias, com a mesma audácia com que “Henrique, o navegador”(112) “abriu no mar caminhos ao futuro”, e com o mesmo denodo com que “Os cidadãos de Sarajevo”(118), lutaram para que chegasse a ansiada paz e renascesse “a comunhão antiga”.

Enquanto não chegarem os dias de “bebermos o vinho novo do futuro” e “comermos o pão fresco do tempo novo”(117); enquanto não vivermos a felicidade de um tempo não dividido, de um tempo inteiro de justiça humana (“À fragmentação sucederá a unidade./ E na comunhão seremos felizes”(52)), tenhamos esperança que haveremos de transitar deste tempo imperfeito e humano a um tempo divino e eterno vivido na cidade de Deus:

É dura e longa a via

por onde caminhamos.

Mas a divina cidade

aonde nos dirigimos,

e cuja claridade

já vemos

nos signos que lemos,

espera-nos além,

por detrás da montanha”(60).

Porém, enquanto não chega esse dia de amanhã, a minha poesia proclama que

“Enquanto puder, eu direi

a canção desta hora”(43),

convidando a viver o dia de hoje com suas dores e alegrias. E entoando um cântico de amor(101-103), como sugere o “Cântico dos cânticos”, 2 – Beije-me ele com os beijos da sua boca. / 412 /

Tua boca

louca

beije-me os olhos

com beijos

aos molhos.

(...)

Beija-me, amor,

com os beijos em flor

da tua boca

barroca

e louca.

O Amor - agapê move montanhas e salva o mundo, não tenho dúvidas. O amor - eros, esse...

 

5. Poemas aveirenses (abril 1997)

O livro “Poemas Aveirenses” é, na sua essência, um hino de louvor à cidade dos canais e da ria que é Aveiro. Basta ler o poema “Hino”.

Capa e ilustrações: Sara Bandarra

Posfácio: António Manuel Ferreira

Apresentação: Teresa Soares Correia

Leitura: ?

Música: Grupo de Cantares Xailes de Aveiro

/ 413 /

         Hino


Eu te canto, Aveiro,

linda cidade do litoral.

 

Canto o teu sol,

a tua água,

o teu suor,

a tua terra;

canto o teu vento

e a maresia,

o azul e a luz

da ria.

 

Canto as tuas gentes

e a tua história.

Ergo o meu hino

à tua memória.

 

Canto João Afonso de Aveiro

e Santa Joana Princesa,

José Estêvão

e Jaime de Magalhães Lima;

todos os que te amaram

e tua seiva beberam,

os que te choraram

e por ti morreram.

 

Canto o teu peixe

e o teu sal,

o teu pão

e a tua planura,

os campos verdes

e a frescura.

 

Beijo-te as mãos

e percorro-te as ruas,

olho-te nos olhos

e admiro-te o perfil,

mato em ti saudades

– minhas e tuas.

 

Juro-te amor para sempre,

cidade dos canais e da ria

– tu, que és luz na minha noite,

e meu alto e claro dia (60-61).

/ 414 /

Eugénio Beirão

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Novo Livro - POEMAS AVEIRENSES

 

No dia 19 de Abril de 1997, sábado,

às 16h30, na Biblioteca Municipal

de Aveiro, lançamento do novo livro

de poesia - Poemas Aveirenses.

A apresentação será feita pela

Dr.ª Teresa Soares Correia e

haverá leitura de poemas.

 

Alavário.

Palavra que diz a terra e a água,

o ovo e a asa que foram,

o passado e a história antiga,

a luz e o sal, o suor, o azul.

 

Terra de peixe e de barcos.

A voz que vem de longe

A cantar a espuma e a areia.

Proa que avança no vento,

à flor do sol e da maré cheia.

Alavário.

 

                           In «Poemas Aveirenses»

Semanário “Litoral”, 17 abril 1997

De facto o poeta canta a terra e a água onde nasceu Alavário; canta as gentes que a fizeram erguer-se, ao longo da história, com o seu suor, as suas lágrimas e o próprio sangue; canta o sol, o azul e a luz benfazejos que a ajudaram a crescer e lhe conferem beleza; canta o seu sal, o seu peixe e os barcos; e jura-lhe amor para sempre, porque ela é a sua cidade eleita, por ela tendo deixado outros luares para lhe saborear o leite e o mel (cf. 32).

O livro “Poemas Aveirenses” oferece ao leitor uma viagem fascinante pela cidade, que é constante cais de partida e de chegada. A navegação é feita em “barco de palavras e nevoeiro”(21), que é sempre uma barca de fantasia.

Nessa navegação fantástica podemos descobrir e comtemplar alguns “sítios”:

– As palmeiras do Rossio, com suas “cabeleiras tropicais”, onde se acolhem / 415 / e cantam os pardais, e são sentinelas que defendem a cidade e fadas boas que a “tornam grácil” (40-41);

– A Beira-mar(46), de “Casas pequeninas/ e ruas estreitas,/ um céu de palavras,/ vizinho às direitas.// (...)/// A chave na porta,/ um rosto à janela,/ um sorriso amigo,/ a luz duma estrela”; – O cruzeiro e a pérgula, no adro da Sé, o bairro do Alboi, e o políptico formado pelo Cais do Paraíso, o Senhor das Barrocas, o Largo das Cinco Bicas, a Fonte dos Amores e o Senhor dos Aflitos.

– “A unir a cidade, a ponte que enlaça”(18) e dá pelo nome de Ponte-Praça(52). Tendo quase a forma de um coração e sendo “espaço amado” dos aveirenses, é lá que “pulsa o coração da cidade”, mas é, sobretudo, “traço que une as margens do canal” e cordial “abraço cagaréu aos ceboleiros”; é ainda “estrela de seis raios a luzir”, pois tantas são as ruas que nela confluem, como reforça a ilustração de Sara Bandarra.

O livro também canta as “coisas” de Aveiro que a caraterizam e tornam singular, para além do sal, da água, do vento, da maresia, do peixe, do sol, da planura e dos campos verdes.... Saliento:

– As “Torres de Aveiro”, que se erguem acima das janelas e “são verdadeiramente as nossas asas/ subindo no céu até às estrelas”(65), estabelecendo uma relação do homem com o sagrado;

– Os “montes de sal” das salinas, que são “novelos de linho/ dobados com amor/ e lágrimas”, mas são sobretudo:

Montes de suor:

epopeias brancas

de anónimos heróis,

filhos da água

e do sol,

erigidos na dor

e no fogo.

Montes.
 

Montes de sal! (76-77);

– A Fanfarra e a Banda, que contribuem para a festa da música. Aquela, marchando pelas ruas, os “cavalos à frente” e “em passo de gesta”, a inundar a cidade com o rufo dos seus tambores e os “brilhantes clarins a tocar”(69); esta, lendo as “partituras floridas de mágicas flores”, a fazer subir a emoção das gentes, fazendo sorrir os rostos e levando as “almas a cantar”(cf. 83);

– Os ex-libris de Aveiro que são o azulejo e os ovos moles. O primeiro é, entre outras coisas, “barro pintado/ de azul do mar,/ azulejo sonhado/ a cintilar”(80); os ovos moles são receita poética de açúcar e ovos, “feita dos fonemas mais gostosos”(87).

 

6. Na luz das palavras (abril 1998)

1. Gosto dos poemas deste livro. Breves e luminosos. Passo os olhos por eles e que descubro e contemplo? Luz, manhã, sol, estrelas, meio-dia, halo intenso, lua, constelações, galáxia, claridade, fulgor, vitral, rosácea... Mas também o oposto: sombra, noite, treva, penumbra, fumo, obscuridade...

Às vezes há uma miscelânea entrelaçada de luz, música, água, sombras, silêncio..., como se fossem cores de uma mesma pintura.

Mas é a luz que o poeta deseja e procura: “Uma luz eu procuro/ que me acenda o rosto/ e ilumine as mãos”(17).

E é na luz das palavras que ele habita e viaja: “Na luz das palavras/ habito/ e nelas viajo”, porque sou “pássaro/ com asas de fogo” (113).

Capa e ilustrações: Tânia Vieira

Prefácio: António Capão

Apresentação: António Manuel Ferreira

Leitura: Ana Paula Cabrita, Inês Amorim

Música: GRADUALE

              (Grupo de Música Sacra de Aveiro)

/ 417 /

A luz das palavras é a medicina e a cura dos seus males: “Caminho à luz inventada/ do verbo/ e nela me curo/ da sombra e da noite”(114).

A luz pode ser oceânica e o poeta quer que chegue ao olhar e ao conhecimento do leitor, por isso lha envia por carta através do mar:

“O poema é a carta

que te escrevo

da ilha onde habito.

 

A carta que te envio,

levada pela água

ao sopro leve do vento.

 

Leva a luz dos meus dedos” (99).


2. Há a água também: a água suave e benfaseja que fecunda a terra: “cai a chuva/ sobre a terra ressequida/ e dela não se elevará/ ao céu/ sem a fecundar”(48);

A água “corola acesa do mar” que o amante descobre apaixonado no rosto da sua amada:

“Para ti o fulgor

do estio,

imagem regressada

ao meu olhar em flor,

corola acesa do mar

e procura do teu rosto” (101).

Ou “as águas (que) arrastarão/ para o abismo/ as cinzas/ da purificação”(44), como um dilúvio.

3. Gosto muito do texto com que António Manuel Ferreira, da UA, apresentou esta obra. Luminoso. Artístico. Pode ser lido no livro “As Palavras em Mão”, Aveiro, 2011, pp. 189-195, ou em “Folhas-Letras & Outros Ofícios”, Ano 3, n.º 4, Grupo Poético de Aveiro, Aveiro, fevereiro de 1999, pp. 38-41.  / 418 /

4. Só dois poemas.

(1) Os boémios (71)

Pela madrugada,

erram os boémios,

ébrios de desejos

e mistérios.

 

É o cerne da noite

que assim os traz

a erguer o olhar.

 

Levam nos ombros

constelações imperfeitas;

no rasto, passos perdidos

por dentro das vielas.

 

O corpo sonâmbulo

defende-os da claridade

que chega,

enquanto brilham

esparsamente.

(2) Regresso (91)

Beijo o chão

de caruma

que outrora

pisei

e rio

até às lágrimas.

 

Colho com ternura

a mística flor

do rosmaninho

e acendo

na palma da mão

seu róseo perfume.

5. Um convite ao leitor: faça como o poeta!

“Para a dança dos fonemas

e das rimas

me visto de alegria.

Na luz das palavras” (114).

/ 419 /

7. Novamente Diário (abril 1999)

Este “Novamente Diário” foi publicado em abril de 1999 e em 19 de junho é que foi o seu lançamento. Dediquei-o à memória do padre Arménio, falecido cerca de dois anos antes, e a sua figura foi evocada pela leitura de vários textos (poemas e prosa) que falam dele e estão publicados neste Diário.

Capa e ilustrações: Hélder Bandarra

Apresentação: Armor Pires Mota

Leitura: Ana Paula Cabrita, Graça Veleda,

             Maria Amélia Pinheiro, Maria Isabel Casal

Música: Vítor Saudade, saxofone

              Manuel Álvaro Martins, guitarra

              Rui Baptista, flauta de bisel contralto

Também o dediquei ao meu neto Davis, “mon petit prince”, na altura com cinco anos, que muito andava sofrendo pois teve de passar, logo desde os primeiros meses de vida, por várias intervenções cirúrgicas e a mais demorada e dolorosa tinha acontecido em finais de agosto de 1997, em Lisboa, pelas mãos do professor Seruca. Eu próprio lá estive com ele, durante o dia, pelo tempo de uma semana, para a mãe poder descansar.

“Mon petit prince”, porque o Davis bebeu, durante os primeiros anos, todo o ambiente parisiense... Em fins de fevereiro de 1998, estivemos a Maria de Fátima e eu com eles em Paris... Um ano antes (fevereiro de 1997), esteve em Aveiro a Ouiza Ladlani, antiga aluna de português da Natália... Só mais uma pequena memória deste Davis impagável. Ao deitar-se, rezava a Jesus “pela mamã”, “pelo papá”, “pelo Davis”, e um dia rezou “pelo arroz” (de que gostava e aos 25 / 420 / anos continua a gostar muito), e “pelo Cricas” (o cão de um amigo com que brincava à bola).

Só mais um apontamento a propósito do Davis (“Novamente Diário”, 21 de novembro de 1998): “Sempre que fala comigo ao telefone” [a partir de Paris], diz-me o meu petit prince: “... dormir à côté de toi”.

Foi o jornalista e escritor Armor Pires Mota que apresentou este livro, de maneira muito viva e eficaz. O seu texto foi publicado na revista “Brotéria”, vol. 149(5), em novembro de 1999 (pp. 470-475), e depois foi incluído no meu “As palavras em Mão - Apontamentos de Literatura”, Aveiro, 2011, pp. 205-212.

Também escreveram sobre “Novamente Diário”: João Estrela, o meu alter ego, por três vezes: no “Correio do Vouga”, em 16 de junho de 1999 (p. 5), n’ “O Aveiro”, em 17 de junho de 1999 (p. 6), no “Notícias da Covilhã”, em 23 de julho de 1999 (p. 4), e novamente n’ “O Aveiro”, em 4 de novembro de 1999 (p. 5); e François Baradez, um cidadão francês que se enamorou pela cultura portuguesa, no “Diário de Aveiro”, em 25 de fevereiro de 2000, (p. 4) – (cf. O mesmo “As palavras em Mão...”, respetivamente pp. 201-202, 203-204, 213-215, 216-218 e 219-221).

François Baradez, filho de um oficial da Marinha francesa, nasceu em 1928 e acompanhou o pai, enviado à embaixada francesa em Lisboa, durante a Segunda Guerra Mundial, “para fazer todo o possível para manter relações entre Portugal e a França” (carta de 18 de abril de 2011). Estudou na École Supérieure de Commerce de Paris e trabalhou na companhia sueca SKF, com fabricação exclusiva de rolamentos, como chefe do serviço de exportação, viajando muito, e depois foi diretor da SKF Portugal, na praça da Alegria, em Lisboa. “Intressou-me muito Portugal que, do fundo do coração, considero meu segundo país”. Foi amigo de Fernando Namora e cita o padre António Vieira. A sua “maior paixão [foi] entrevistar portugueses de todas as classes sociais” e publicar esses textos na imprensa regional. Possui uma casa no Cabo da Roca.

Este “Novamente Diário” abarca o período de dois anos – do Natal de 1996 ao Natal de 1998 – e estende-se por muitas localidades e variadíssimos acontecimentos e reflexões, alguns muito densos e dramáticos. / 421 /

Só dois poemas:

O Mar (80)

O mar é um mistério,

um mundo desconhecido,

azul como não há céu.

 

O mar é imenso

e dá a volta ao mundo,

tão grande e extenso

que ninguém o abarca.

Às vezes mata,

mas é muito bonito,

lá por dentro, com peixes

de todas as cores.

 

A criança é que o domina:

mete-o dentro de três riscos

e diz: “Aqui é o mar”.

E o mar não se importa,

fica ali quietinho – o Mar.

O Meu Diário (30)

É vinho bebido

o meu diário,

espelho cingido

em ondulação de palavras;

é presença e ausência

do muito e de nadas.

 

O meu diário

é folha caída

ao soprar do vento;

é força em movimento,

é memória e é vida,

é luz futura;

é mão insegura

a tocar o fogo

que levo comigo,

entre silêncios e sombras

de quanto escrevo e digo.

8. Beira: Um rosto interior (outubro 1999)

Oito textos é que reuni nas pp. 227 a 257 de “As Palavras em Mão”, acerca deste livro de poemas sobre a Beira Interior: quatro de João Estrela; um de alunos da turma 4B do 12.º ano, ano letivo 1999/2000, da Escola Secundária do Fundão, lecionada por Estrela Correia, que em 2017, já jubilada, vem publicando crónicas no “Jornal do Fundão”; o texto de Idalécio Cação, da UA, com que fez a apresentação da obra, em 27 de novembro de 1999, em Aveiro; a recensão da “Brotéria”; e o texto de François Baradez.

Falta apenas a reflexão feita por Fernando Marques, em Paris, em 22 de / 422 / janeiro de 2000, na apresentação realizada em colaboração com a Livraria Lusophone, de João Heitor, mas esse texto perdeu-se.

Aí, perante os emigrantes presentes, oriundos sobretudo das Beiras e Alentejo, eu apresentei-me assim:

“Quem vos fala é um filho humilde e anónimo da Beira Interior, “filho da gleba” como Vergílio Ferreira, e, ainda por cima, “mudo e tartamudo”, como gostava de se apresentar Miguel Torga. Se estou aqui é apenas por uma razão: ter-me feito à aventura da escrita. E cheguei perante vós pela mão de dois homens a quem muito estimo e trato por amigos: João Heitor, o “livreiro da esperança”, a quem François Baradez chama, com toda a razão e propriedade, “Ardente Bardo da Lusofonia”; e Fernando Marques, artista de grande sensibilidade e com criação de relevo nos campos da palavra, da música e do teatro”.

A seguir, filosofei um pouco:

“A nossa vida é demanda insatisfeita, constante e continuada, do Belo e do Infinito. E por variados caminhos. A Poesia é um deles. Ao pôr em ação a intuição, a sensibilidade, a “vibração emotiva” (António José Saraiva), “o poeta (...) busca o total Absoluto” (Eugénio Beirão, “Diário Intermitente”, p. 98). E, ao ansiar o Transcendente, o poeta torna-se espelho, a sua voz constitui-se instrumento e mediação do Belo. É o que diz, maravilhosamente, a poetisa alentejana Fernanda Seno, desaparecida em 1996: / 423 /

“Tudo o que é Belo, Alto e Transcendente

está para além de nós.

Somos o chão onde se pousam estrelas.

E o brilho não é nosso. O brilho é delas.

Somos o espelho a refletir os céus,

mas por detrás do espelho é que está Deus.

As glórias e os louvores não são para nós,

mas para quem deu acordes de infinito

à nossa breve voz”.

E retomei a minha apresentação autobiográfica:

“Sou beirão por nascimento e assumo-o no nome literário que escolhi. Na minha terra natal – Peraboa – bebi o leite da ruralidade no contacto com a terra, os animais, as árvores, os pássaros; correndo e labutando por montes e vales, atrás do meu pai, pude guardar nos olhos, para sempre, o colorido da flor da giesta, da urze, da esteva e do tojo, e inalar o místico perfume do rosmaninho; crestou-me o rosto e as mãos o sopro áspero do gelo e o sol escaldante de agosto; comi o pão de cada dia amassado com suor e amor, laborando nas tarefas agrícolas; fui tocado e esmagado pela visão imensa e tremenda da montanha primeira, alta e imponente, mãe de todas as montanhas; fui ungido com o óleo sagrado do afeto daqueles que me ajudaram a crescer e a iniciar a dura caminhada da vida. Não admira, pois, que, transplantado da beira-serra para a beira-mar, eu tenha escrito, num dia de junho de 1989, numa das rápidas idas ao palco dos primeiros anos:

“Por algumas horas, vim à casa paterna da minha meninice. É quase um regressar às raízes, furtivo e clandestino. Mas saboroso. Ao menos pela contemplação gozada desta paisagem verde e acidentada. Verde de muitos tons, pincelada de largas manchas amarelas da giesta negral. E também pelo céu azul que me aclara a vista e o ar puro que me tonifica a alma.

Minha Beira colorida, minha serra da Estrela altaneira e magnífica, como gosto de vos rever!”

(“Diário Intermitente”, 1994, p. 18) / 424 /

Acrescentei que o livro que ia ser apresentado (ali em Paris, na livraria Lusophone) significava o meu regresso àquela Beira onde havia nascido e que amava.

E encerrei o retrato do poeta Eugénio Beirão lendo o poema seguinte (que em 2009 vim a publicar no livro “Os dias férteis”, p. 19), apelando à capacidade de deslumbramento:

Finjo que sou poeta

e construo flores de palavras

que uso na lapela.

Mas poeta eu não sou.

Assomo apenas à janela

a contemplar os astros;

e com luminosos traços

ensaio dizer o deslumbramento.

Fernando Marques apresentou o livro e foram lidos alguns poemas, mesmo por alguns dos presentes.

Sobre Fernando Marques deixo o seguinte apontamento das pp. 145-146 do meu “Novamente Diário”, de 1999, a propósito da representação do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, em Aveiro, em 20 de julho de 1998.

O Grupo do Odéon ofereceu ontem aos aveirenses, num palco inadequado porque de chão irregular e aberto, erguido no Rossio, um Gil Vicente vivo, inteligente, quente e convincente. Apesar da hora tardia (meia-noite), o povo não arredou pé e apreciou a representação: riu com as momices e jocosidades do companheiro do Diabo e do Parvo; mostrou entender a modernidade e atualidade da figura da Alcoviteira, de ambiguidade acrescida por ser representada por um ator; embarcou na mensagem de Mestre Gil, meditando porventura sobre os caminhos e as opções da vida, com suas vaidades, manigâncias e coisas vãs, com seus valores e ideais mais elevados, não perdendo de vista que também ele poderia estar ali, a tomar lugar na barca dos danados. / 425 /

De facto o Auto da Barca do Inferno é um desafio à análise interior, ao confronto eu – Bem, e, quer pelo riso – ridendo castigat mores – quer pela seriedade do discurso, pode chegar-se à correção dos erros.

O trabalho do grupo, sob a liderança de Fernando Marques, tem sido insano: pela exigência da montagem de uma peça e também porque dois dos atores residem em Portugal e a preparação foi feita em Paris, onde vivem todos os outros.

Este “Beira: Um Rosto Interior” é o meu livro mais viajado. Antes de se apresentar em Paris passou por Peraboa, Covilhã, Penamacor, Belmonte, Idanha-a-Nova, Fundão e Aveiro, visitando várias escolas, o que muito me apraz. Saliento a Secundária do Fundão (com um belo estudo!) e a José Silvestre Ribeiro, de Idanha-a-Nova.

Dois poemas apenas – o primeiro, um dos escolhidos pelos alunos da Secundária do Fundão (sob a orientação da professora Estrela Correia), o segundo, selecionado pelos alunos da Secundária de Idanha-a-Nova, (orientados pelas professoras Cecília Afonso, Cecília Mendes e Luísa Coelho, no Clube de Leitura). / 426 /

(1) Comes o Pão (p. 35)
 

Comes o pão com

o labor dos teus pulsos

e acendes nos dias

a força da criação.

 

No cume da montanha

contemplas o mistério da luz.

E, à vista do chão que habitas,

cantas, no fervor das palavras,

a melodia interior

que trazes nos olhos.

 

És flor de argila a crescer.

Iluminas a noite

na terra que amas.

(2) Beirão (p. 53)
 

Trago na palma das mãos

as linhas do meu destino

e um anúncio de sorriso.

 

Dói-me na planta dos pés

o sulco de mil granitos

e a poeira dos caminhos.

 

Venho de muitos lugares

navegando à luz e com brisas.

Carrego em mim muitas vidas.

 

Beirão na seiva e na alma,

meus olhos olham alturas,

buscam sombras e verduras.

Mas o livro também teve apresentação na minha aldeia, logo em 16 de outubro de 1999, a abrir a campanha, integrada no 2.º Encontro de Naturais de Peraboa.

Capa e ilustrações: Sara Bandarra

Prefácio: João Estrela

Apresentação: Idalécio Cação

Leitura: Ana Paula Cabrita, Graça Veleda,

             Maria Amélia Pinheiro

Música: ?

O programa foi cheio, variado e rico. A abrir, às 15h30, dançou o rancho infantil “Os Perinhas”; a seguir, houve uma breve alusão ao livro feita pela / 426 / vereadora da cultura, dra. Maria do Rosário Pinto da Rocha, e Graça Veleda e António Morais, idos de Aveiro, leram textos de Eugénio Beirão e poemas deste “Beira: Um Rosto Interior”; às 17h15, na igreja paroquial, o Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares apresentou um concerto coral com música de João Gamboa; e às 18h00, foi celebrada a eucaristia festiva com o canto do mesmo coro.

O encontro continuou com jantar e convívio.

               Poema do Beirão
 

Eu beirão que à beira da Estrela nasci

e sua imensidão logo observei

e hoje canto a terra que sempre vi

com palavras e versos que vos darei.

 

Eu beirão que por aqui deambulo

e leio as paisagens e as gentes

e de pedra em pedra salto e pulo

e vejo no céu as estrelas cadentes.

 

Eu beirão que à luz do sol me purifico

olhando no céu o azul e o traço

que une as sílabas das palavras e assim fico

a saber o poema escrito no espaço.

 

Eu beirão de minha terra nostálgico

sofrendo no coração o mal da distância

entoo meu canto de granito metálico

e digo os cravos e saudades da infância.

 

Eu beirão que em mim trago as marcas e a sina

das luas e dos ventos, dos gelos e do verão

e nas asas de uma ave peregrina

vou correndo para o mar. Eu beirão (p. 67).

 
 

 

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