1.
Diário Intermitente (novembro
1994)
Desatei a “escrever
para publicar”, em maio de 1989. Nem mais nem menos: “para publicar”!
Isto escrevi eu em 20 de maio desse ano ( Diário Intermitente,
Eugénio Beirão, ed. do autor, Aveiro, 1994, p. 14). Mas registei mais. Que escrevia
“para encher um certo vazio. Para brincar com as palavras. Para (re)criar. Para
criticar. Para refletir, dizer o que sentia e pensava. Para comunicar...” E
assumia que “escrever a sério” e “para publicar” exigia e implicava uma grande
“responsabilidade”. Mas também proporcionava “aliciante aventura!”
E por que comecei eu a
escrever, abruptamente, com uma intenção literária?
Já ficou explicado no
capítulo 13 – “Ao serviço da Igreja e da comunidade (I)” (pp. 200-201).
Agora só recordo o essencial.
Desde outubro de 1980
eu trabalhava na pastoral litúrgica e outros setores na paróquia de São
Bernardo e em novembro de 1988 foi-me pedido para dar uma ajuda na
Igreja de Jesus, no Museu de Santa Joana. Ensaiava os
/ 396 / cânticos em minha casa
a um grupo de seis ou sete senhoras e, organizando também o serviço de
leitores, conseguimos dar à celebração dominical da Eucaristia mais
qualidade e um ar bastante festivo. E o número de participantes começou a aumentar.
Dois domingos antes da Páscoa, já em 1989, o padre António Oliveira, que
era o capelão, não pôde presidir por haver sofrido um pequeno acidente e
compareceu o pároco, que me disse quando o saudei:
– Então, já não lhe
chega São Bernardo?!
Expliquei-lhe por que
estava ali, desde quando e o que procurava fazer...
À tardinha aparece em
minha casa o senhor Simões, que me pedira aquela colaboração e
desempenhava na igreja de Jesus uma função semelhante à de sacristão.
Escandalizado, contou-me o que ouvira da boca do senhor prior (eu saía para São
Bernardo antes da bênção final) e o recado sumário: “Não quero cá o ....”.
Eu expliquei-lhe, e depois ao grupo, o que acontecera em 1980... e que era um
bem o que estávamos a fazer. Porém, pesando tudo e para evitar um
mal-estar e incómodo na comunidade cristã, decidi afastarmo-nos, o que entristeceu
o bondoso padre António Oliveira.
Este acontecimento
causou-me forte revolta interior e grande sofrimento espiritual. E uma
crise, não de fé, mas de relação e confiança entre membros da Igreja, uma “crise
de ordem espiritual”, de “dor espiritual” (cf. Entrevista para o Jornal do
Fundão, dada em janeiro de 2004, in
As palavras em Mão – Apontamentos de
Literatura, João Gamboa, ed.
do autor, Aveiro, 2011, pp. 309 e 317-318). Uma
crise que, tendo passado pela compra, na feira do livro desse
/ 397 / ano, de mais de
quarenta obras de “poesia, conto, romance, ensaio, estudo erudito, no
âmbito literário; e também o livro filosófico e religioso” (Diário Intermitente,
p. 22), se prolongou por muito tempo. Cerca de um ano depois, em 22 de
abril de 1990, eu confessava no soneto “Resignação” (Diário Intermitente,
p. 76) ter “murchado em mim a flor do entusiasmo”,
“ser um crente triste,
resignado”, “apontado a dedo pelo Anjo Negro”, mas
“querendo ser fiel à
Igreja” e “amar a Cristo”.
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Capa e ilustrações:
Jeremias Bandarra
Apresentação: Rosa
Lídia Coimbra
Leitura:
Fernando Pinto, Graça Veleda,
Inês Amorim, Maria
Isabel Casal
Música: Guitarra
Clássica: Miguel Lélis |
Tudo, porém, foi
ultrapassado. Se “no luto nasceu a escrita/ e a dor se fez palavra”, pude escrever
em “Na Luz das Palavras” (1988), p. 114, no poema que encerra o livro e
tem o mesmo título:
Caminho à luz inventada
do verbo
e nela me curo
da sombra e da noite.
Nem podia ser de outra
maneira. No auge da crise em maio de 1989, eu próprio me exortei a
preferir sempre o amor:
Não deixes fazer-se
noite
no teu coração.
No teu peito nunca se
acoite
a negra escuridão
do pérfido ódio.
Antes suba sempre ao
pódio
da tua vida
o Amor que tudo alumia
com sua doce alegria.
(Diário Intermitente,
p. 37)
Iniciado em 8 de maio
de 1989 e terminado no dia de Natal de 1991, este Diário
Intermitente só o publiquei em novembro de 1994. E, depois de o dedicar a meus Pais,
dediquei-o também “A quem me atirou / para a aventura
/ 396 /
das Palavras...”
Em abril do mesmo ano (1994), antes portanto, havia publicado Invocação
de Deus, que escrevi depois do Diário.
Quero fazer memória
ainda, para terminar, do gozo que vivi nos últimos dias de julho de 1991,
acampado com a família no parque de merendas de Montemor-o-Velho, que
servia de parque de campismo. Logo a partir das seis horas da manhã,
ainda na tenda ou já no carro, que me servia de “posto de observação, de
escuta, de leitura e de escrita”, era um enlevo ouvir e observar o que se passava à
volta.
Ou os trinados dos
rouxinóis “desafiando as voltas e harpejos do violino do Concerto em Ré
Maior de Tchaikovsky, que ouvia no auto-rádio (102); ou o toque da alvorada
feito pela pega, “de voz cinzenta e gaguejada, como que às
gargalhadas”(103); ou a “sinfonia matinal dos pássaros, festiva e
fresca, um hino singelo ao novo
dia”, em que sobressaía novamente “o solo de violino do rouxinol”
(103); ou, finalmente, o inesquecível encontro onírico e diálogo atemporal com
Fernão Mendes Pinto (103-104), concluindo que, quatrocentos anos
depois, pouco haviam mudado as convicções e motivações que comandam as ações
do homem (cf. Rosa Lídia Coimbra, “Notas de uma leitura de
Diário Intermitente de Eugénio Beirão”, in
As Palavra em Mão,
2011, pp. 128-129).
Em breve testemunho sem
data, a enfermeira irmã Isilda Pedro resume assim as impressões que
lhe deixou a leitura deste “Diário Intermitente”:
“Gostei imenso, li-o
com entusiasmo, à maneira de romance; à maneira que ia lendo, mais desejava
ler. Li, pois, com gosto.
Comunica vida e suas
curvas, acidentes do caminho; perseverança, luta; denúncia e sentido realista da
vida; linguagem apelativa – construção do mais e melhor”.
2.
Invocação de Deus (abril 1994)
A crise espiritual que
me empurrou para a escrita não era objetivamente uma crise de fé, mas
Deus estava lá nas margens. Dos trinta e dois poemas que integram o livro
Diário Intermitente, treze falam explicitamente de Deus. Saliento o
primeiro e o último. Naquele, com o título de “Fome
/ 399 /
de Eternidade”, é clara
a ânsia de “encontrar a Deus/ e vê-l’O” e “com Ele serenamente viver”.
Neste, um poema de Natal titulado “Fica connosco”, a súplica final é feita
em nome de todos os crentes e homens de boa vontade: “Fica connosco,
Deus-Menino./ Ilumina nosso destino”.
Não admira, assim, que
o livro que escrevi a seguir, mas publiquei antes, tenha Deus como tema e
se intitule “Invocação de Deus”. Ele é de facto uma reflexão sobre Deus
e o porquê e o como da vida à luz do cristianismo. E procurei falar de
Deus e invocar o seu nome “até à exaltação,/ com um pouco de música, se
possível,/ e alguma beleza” (13). Eu tinha necessidade desta experiência de
meditação, para ultrapassar a dor espiritual e consolidar a minha identidade e
vivência cristãs. Para resolver a “crise”.
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Capa e ilustrações:
Maria de Fátima Gamboa
Prefácio: Filipe
Rocha
Apresentação: Rosa
Lídia Coimbra
Leitura:
Ana Paula Cabrita, Fernando Pinto,
Maria Isabel Casal,
Rosa Edite Gonçalves
Música: Coro a
capella: Coro Litúrgico
de Milheirós de Poiares
Guitarra Clássica:
Miguel Lélis
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Os poemas são
autênticas orações, como salientaram o professor Filipe Rocha, no prefácio, e a
professora Rosa Lídia Coimbra, nas palavras de apresentação aquando do
seu lançamento, em 2 de julho de 1994. O texto de Rosa Lídia Coimbra foi
publicado na revista Brotéria, em abril de 1995, com o título de “O
sentimento orante do eu poético”, realçando assim o caráter suplicante desta
poesia. Estes poemas, além de prece são também exaltação, louvor, canto. E são
tudo isto com intenso sabor bíblico e litúrgico. O que não admira. Eu bebia
nesse manancial inesgotável há muitos anos, pois já ensaiava e dirigia o
canto litúrgico de maneira continuada desde os primeiros anos da década de 1970
e compunha para a liturgia desde um pouco mais tarde. Hoje (2017), que
continuo a fazer o mesmo, escolho, de vez em quando,
/ 400 /
e desde há bastantes
anos, um desses poemas
para ser
proclamado tal e qual ou com
adaptações na celebração da
eucaristia, depois da comunhão, de acordo com o tempo
litúrgico, ou com a Palavra do
dia. Alguns exemplos: “Ensina-nos
a Palavra”
(pp. 16-17), Advento
(pp. 22-23),
Vacilações (pp. 24-25), A Estrela de
Deus (p. 36), Libera nos II (p. 38), Comunhão (p.
39),
Páscoa I (p. 40),
Oferenda I (p. 44), Veni Sancte Spiritus (p. 45),
Cruz Florida
(pp. 48-49), Natal
II (pp. 74-75), Fazei memória (p. 80).
“Na poesia e na
liturgia, o meu trabalho é com a palavra”, disse eu em entrevista ao Correio do Vouga
(em 14 de abril de 2010, pp. 3 e 8), a propósito do lançamento do livro
“Nas asas da Liturgia e outros voos”. A palavra efémera do homem e a Palavra
eterna de Deus. A palavra escrita e a palavra musicada. A palavra lida e a
palavra cantada. No fundo, a palavra inspirada e bela que nos alimenta a alma e nos
enleva e eleva, em sua asa luminosa, pelo azul sem fim...
O poema O Cântico da
água (pp. 34-35), que transcrevo levemente podado, é imagem dessa fonte
viva de sabedoria e procura que dimana do tesouro que é a Bíblia e a
Liturgia.
Antes, a água não
corria
na bica do fontenário
(...)
Um dia, os mineiros
foram à sua procura
e encontraram-na a
correr em fio,
leve e pura,
a gemer na frescura
da pedra azul.
Hoje, a água desliza no
canal que lhe fizeram
e tomba na pia de pedra
do fontenário
(...)
/ 401 /
Eu encho a concha da
mão
e regalo-me,
no calor ardente do
verão.
(...)
É Deus que sacia a sede
de quem procura a água
viva
e bebe.
Quando este livro foi
apresentado por Rosa Lídia Coimbra, em 2 de julho de 1994, eu li ao
público o “discurso” seguinte:
A vida do Homem sobre a
Terra é uma busca contínua. Uma busca do Bem e do Belo, uma busca da
Perfeição, da Verdade e do Transcendente, uma busca de Deus. E por muitos e
variados caminhos.
No caso pessoal deste
vosso amigo, por duas formas, entre outras, se tem insinuado esta procura: pela
música e pela palavra, pela palavra e pela música.
Olivier Messiaen,
talvez o mais impressionante compositor do século XX, falecido em abril
de 1992, com 84 anos, afirmava em 1966: “Tenho tentado ser músico
cristão, isto é, colocar a minha fé na música que escrevo. Ainda não o consegui
inteiramente até hoje. Quero escrever uma música que cante, que seja como um
perfume desconhecido, uma ave sem poiso nem descanso; uma música
como um vitral de igreja, uma música que anuncie, simultaneamente, o fim
dos tempos e o tempo presente, uma música que exprima os mistérios
sobrenaturais e divinos. Um arco-íris espiritual. Procuro saciar a sede
humana pelo trans-real com a meditação musical dos mistérios
sobrenaturais”. E em 1979 Messiaen ia mais longe: “A Música é a Arte mais próxima da
Fé. Pertence-lhe “esclarecer” as coisas que escapam aos teólogos”.
Vós não sois,
certamente – desculpai-me a frontalidade! –, o grande compositor e organista francês
Olivier Messiaen. E eu, é claríssimo e óbvio, ainda menos. Porém todos somos
feitos da mesma carne e osso que ele. Isto é: ressalvadas as devidas distâncias –
Messiaen era um génio –, também nós procuramos chegar ao Transcendente, a
Deus, através do Belo, procurando, assim, saciar a sede e o desejo pelo que está
para além e acima de nós.
/ 402 /
Os poemas que vamos
ouvir, inspirados em temas da Bíblia e da Liturgia, são ecos vivos desta
procura religiosa e artística. Como o são, também, os hinos para a Liturgia.
A arquitetura desta
sequência de poemas é clara e simples: ao desejo inicial de Deus segue-se a
expressão da dúvida, das vacilações, da fragilidade humanas; há, depois, e de forma
interrogativa, a proclamação da dignidade da pessoa humana, transitando-se a
seguir, sempre em crescendo, para atitudes de súplica, de oferta, de misticismo e
contemplação, para se culminar na afirmação da Fé e no júbilo festivo da
exaltação das maravilhas salvíficas de Deus e da comunhão dos crentes reunidos à mesa
do banquete divino.
O Coro intervém de vez
em quando, cantando hinos litúrgicos, para sublinhar, suscitar ou potenciar
ideias, sentimentos e atitudes interiores; para sugerir respostas a interrogações e
dúvidas; ou para aprofundar o sentido da busca, da prece, da contemplação, do
louvor, da jubilação.
Não sei se poderá afirmar-se que a poesia implica e pressupõe a
música e que a música implica e pressupõe a poesia. Mas sei que a música
que compus, para além de se inspirar na palavra
bíblica e litúrgica, procura – procura! – estar ao
serviço dessa palavra de modo a
que esta saia valorizada e facilite a oração do crente. E também sei que a
música dá expressão ao mais profundo sentir da alma, e ajuda à festa.
Queridos Amigos!
Espero, sinceramente, que esta sessão continue a ser agradável e constitua para todos
um espaço e um tempo de pacificação interior e de felicidade e exaltação
espiritual. Se não pelo valor da poesia e da música, seguramente pela sensibilidade e
competência dos intervenientes: a já atentamente ouvida dra. Rosa Lídia;
os dedicados declamadores Ana Paula Cabrita, Fernando Pinto, Maria Isabel
Casal e Rosa Edite Gonçalves; o muito digno e seguro Coro
/
403 /
Litúrgico de Milheirós
de Poiares e a sua competente diretora Clarinda Ferreira, conjunto pelo qual
tenho a maior estima; e Miguel Lélis que à guitarra clássica acompanhará alguns
poemas, criando assim um ambiente de dignidade e nobreza.
Quero confessar aqui
alguma influência na redação de alguns poemas deste “Invocação de
Deus”. É de José Augusto Mourão, através do seu livro “Dizer Deus ao (des)abrigo
do Nome” (Difusora Bíblica, Lisboa, 1991).
Esta influência
expressa-se na recuperação de alguns temas e palavras ou em simples ecos
difusos.
E quero dizer que
escrevi estes poemas (são quarenta mais um – o de abertura) entre janeiro
de 1992 e agosto de 1993, tendo publicado o livro em abril de 1994.
Desejando que este
texto, (este capítulo, este livro) possa ser a consumação de um sonho e o sítio
de efetivação de um encontro belo e perfumado com a sabedoria do
Saltério, quero terminar com esta:
Prece
Não te peço
a transfiguração do
corpo
(...)
Peço-te a nuvem branca
que transporte o meu
sonho.
(...)
Peço-te
a vertigem do azul,
(...)
o riso de amigos
e alguma luz e música
para a jubilação do
encontro.
(Invocação de Deus, p.
20)
/ 404 /
3.
Pétalas e Rubis (abril 1995)
As composições poéticas
que constituem o terceiro livro que editei, num total de quarenta e
três, foram escritas entre setembro de 1992 e junho do ano seguinte. O volume
esteve para chamar-se Bagatelas, depois anunciei-o como Bagatelas e
Rubis, mas acabou por intitular-se “Pétalas e Rubis”. É mais poético este
título mas, sobretudo, traduz de maneira mais significava e fiel a minha intenção
e simplicidade de escrita em poemas breves e despojados, quase sempre de versos
curtos – as “pétalas singelas” que o poeta oferece, logo a abrir,
ao possível leitor. Os rubis acrescentam à singeleza e graciosidade dos poemas
e dos versos (das pétalas) a ideia de preciosidade e beleza, presentes
sobretudo no último poema (Bagatelas), em expressões como
estrelas luminosas, pequenas joias
preciosas, pirilampos a luzir, feixes de luz
(p. 80).
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Capa e ilustrações:
Afonso Henrique
Prefácio: Virgínia
de Carvalho Nunes
Apresentação:
Virgínia de Carvalho Nunes
Leitura:
Ana Paula Cabrita, Graça Veleda,
Inês Amorim
Música:
Trio Cordas e Sopro (guitarra clássica,
clarinete, violoncelo)
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A empatia e a comunhão
com as coisas simples (as bagatelas) da natureza é uma constante e o
leitor pode comprazer-se, associando-se à fruição do poeta: desfruta a
frescura da água, a beleza das flores, o canto da cotovia; deslumbra-se com os
arrebóis, sente a “volúpia do silêncio”, tacteia e visualiza em associação
sinestésica o aveludado do outono, a paleta das cores; volta a ser menino e
saboreia as amoras do campo que se oferecem como guloseima apetecida e
embriagante; experimenta sentimentos de fraternidade e amizade, esparsos
nesta poesia perfumada ainda pela presença de Deus,
/ 405 / mesmo quando não está
explícita (cf. o texto de Virgínia de Carvalho Nunes, in As Palavras em
Mão, 2011, pp. 139-140). Mais uma vez, pétalas e rubis.
Por isso o Convite
(p. 64): “Cerra os olhos/ do corpo/ e abre-te/ ao rosto/ iluminado/ das
coisas.// Serás feliz/ como as crianças/ que traçam/ riscos e rabiscos/ nas loisas”.
O livro foi publicado
em abril de 1995. Mais uma vez, abril!
Mas setembro pode ser
fonte de
Bem-aventurança
Há frutos de setembro
no teu olhar
quando os lábios da
noite
se cerram, aveludados.
Uma serena fulguração
brota então dos teus
dedos
crescendo
como um fio de lua.
No teu rosto poisa
a bem-aventurança,
asa branca
de água e silêncio.
E uma quietude perfeita
respira na rosácea pura
do teu corpo
como um aroma de maçãs.
(“Pétalas e Rubis”, p.
41)
/ 406 /
4.
Rosa-dos-Tempos (abril 1996)
Rosa-dos-ventos.
Rosa-dos-tempos. Sempre rosa. Aquela resulta dos variados rumos dos
ventos predominantes. Esta faz-se do “espanto dos dias ora fagueiros e leves,
ora brutais e amargos”(12). De facto, “é variada a rosa-dos-tempos,/enfeita-se
de muitas cores” (32). É rosácea. É “rosa de todas as pétalas,/ diferentes
e variadas nas cores” (45). Sim, é rosácea. Rosácea
luminosa e fulgurante,
rosácea florida, ornada do ouro mais fino, desfolhada no meu e no teu tempo
de humanidade. Rosácea fecunda que se desentranha em frutos. Rosácea
que gira e roda incansável no seu frutificar.
Tem sido a minha vida
uma “rosa no tempo desfolhada” (62), uma rosácea
fecunda?...
Tudo isto eu digo e
reflito, e muito mais, na obra de poesia “Rosa-dos-Tempos”, publicada em abril de 1996. São 70 os poemas que a constituem, escritos ao longo de
1994 e 1995.
O livro tem por tema o
tempo e divide-se em três partes:
Tempo breve, Circularmente,
Compaixão.
Todos temos a sensação
de que o tempo que vivemos nos foge “por entre as mãos, como enguia”
(142): “Um trilo de flauta:/ surpreendeu/ e emudeceu”(20).
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Capa e ilustrações:
Soraya
Prefácio: Idália
Sá-Chaves
Apresentação:
António Manuel Ferreira
Leitura:
Graça Veleda, João de Mancelos,
Maria Isabel Casal
Música:
Florbela Gonçalves, flauta
José Gonçalves,
guitarra clássica
|
Mas é variado o tempo
que nos arrasta consigo em sua marcha nupcial (24) e nós julgamos
viver: “Há dia e há noite,/ há manhã e há tarde,/ há
/ 407 / meio-dia e
meia-noite.// Há outono e há inverno,/ há primavera e há estio,/ há céu e inferno.// Há
morte e há vida,/ há luto e há festa. (...)// É variada a rosa-dos-tempos” (32).
Diz o Eclesiastes
3,1 que “Todas as coisas têm o seu tempo”. Sim,
Há um tempo para florir
e um tempo para
murchar:
há um tempo para rir
e um tempo para chorar.
(46)
Mas todo o tempo é
digno de ser vivido. E de ser cantado, desde o nascer
ao morrer. É o
que procuro fazer no poema Louvação das Horas(53), com nítida influência de S.
Francisco de Assis no que respeita ao elogio da morte.
Louvada seja a noite e
a madrugada,
a hora de laudes e o
meio-dia,
o pôr-do-sol com a sua
magia,
o tempo da lua branca e
alada.
Louvada seja a vida já
passada,
o presente com sua dor
e alegria,
o futuro que a
esperança alumia,
e a eternidade, em Deus
seja louvada.
Louvado seja o tempo
das colheitas,
o inverno e a primavera
multicor.
Louvado seja o tempo de
nascer.
Todas as horas são
horas perfeitas
e todo o tempo é tempo
de louvor.
Louvada seja a hora de
morrer.
Escrevi na Nota do
Autor(143):
“Traduz este livro a
minha postura face ao mundo e ao tempo que me é dado viver: o que corre
dentro de mim e quase só a mim pertence, e o que
/ 408 / me é exterior e é
pertença de nós todos, nele tendo cada um envolvimentos de graus diferentes. É
este o tempo que eu amo. E é com ele, por ele e nele que eu choro ou rio, me
alegro ou sofro. Sempre esperando o novo tempo futuro”.
Antes desse “novo tempo
futuro”, eu “quero viver o presente(...)/ de modo forte e
ardente”(42). Por isso
“Canto o azul e a
maresia,
exalto o mar e a luz do
sol.
Cavalgo o vento, noite
e dia,
acendo o arrebol”.
E quero viver o
presente com algum empenhamento social, por exemplo contra a
mediocridade, contra a indiferença, para que haja luz na
cidade:
Pela paixão é que vou,
(...)
conjugo sempre o verbo
amar”.(93)
Nesta caminhada para o
melhor e o mais belo, também a poesia, entre outros meios, é
alimento que dá força: “Poesia/ é pão nosso/ de cada dia:/ sempre se come/ com
alegria.// (...)// De poesia/ nos alimentamos./ Da palavra/ vivemos”(124).
E bem preciso é, pois a
realidade temporal do mundo é composta de morte, de miséria, de
sofrimento, de ódio, como o demonstram os poemas “Os Meninos
Africanos”(94), “Sobre a Mesa”(30), “Os Cidadãos de Sarajevo”(118), “Os Meninos de
Ninguém”(106).
Os meninos Africanos
Rosas negras
ressequidas,
frágeis como bolas de
sabão.
Olhos mortiços, sem
gota de água,
da cor da fome e da
ausência.
/ 409 /
Corpos secos,
resignados,
oferecidos à dor e à
morte.
Mártires do ódio e da
guerra,
os meninos da fome
africanos.
Por isso é
indispensável assumir o sentimento da compaixão que nasce do amor - agapê,
pondo nela a força e o entusiasmo da paixão, como mostra o poema
Banquete
Abri o armário
e procurei pão:
saiu uma borboleta
voando.
Abri a gaveta
e peguei numa faca:
era uma flor
sorrindo.
Abri a carteira
e tirei uma moeda:
saltou uma estrela
brilhando.
Surpreendido,
interroguei-me sobre o
que faria
com o pão e a
borboleta,
com a faca e a flor,
com a moeda e a
estrela.
/ 410 /
Com a moeda comprei
mais pão.
Parti-o com a faca
e coloquei as fatias
sobre uma enorme mesa,
enfeitada com toalhas
brancas.
Colhi a flor em que
poisara a borboleta
e pu-la no centro da
mesa
para dar mais brilho e
cor à sala.
Ao pão juntei leite e
mel
em abundância.
E suspendi no teto a
estrela
para iluminar todo o
espaço.
Saí, a meio da tarde,
a convidar para o
banquete
as crianças e os velhos
do meu bairro...
Vieram às dezenas.
E comeram,
conversaram,
riram,
lambuzaram-se,
conheceram-se.
Quando já pareciam
saciados,
peguei no acordeão e
toquei...
Então dançámos,
cantámos,
rimos de alegria,
fizemos festa.
/ 411 /
Chegada a hora da
despedida,
vi-lhes estrelas de
água a brilhar nos olhos,
e um sorriso doirado a
esvoaçar
nos rostos iluminados.
(95-97)
O “novo tempo futuro”
temos de lutar por ele todos os dias, com a mesma audácia com que
“Henrique, o navegador”(112) “abriu no mar caminhos ao futuro”, e com o
mesmo denodo com que “Os cidadãos de Sarajevo”(118), lutaram para que
chegasse a ansiada paz e renascesse “a comunhão antiga”.
Enquanto não chegarem
os dias de “bebermos o vinho novo do futuro” e “comermos o
pão fresco do tempo novo”(117); enquanto não vivermos a felicidade de um
tempo não dividido, de um tempo inteiro de justiça humana (“À fragmentação
sucederá a unidade./ E na comunhão seremos felizes”(52)), tenhamos
esperança que haveremos de transitar deste tempo imperfeito e humano a um tempo
divino e eterno vivido na cidade de Deus:
É dura e longa a via
por onde caminhamos.
Mas a divina cidade
aonde nos dirigimos,
e cuja claridade
já vemos
nos signos que lemos,
espera-nos além,
por detrás da montanha”(60).
Porém, enquanto não
chega esse dia de amanhã, a minha poesia proclama que
“Enquanto puder, eu
direi
a canção desta hora”(43),
convidando a viver o
dia de hoje com suas dores e alegrias. E entoando um cântico de
amor(101-103), como sugere o “Cântico dos cânticos”, 2 –
Beije-me ele com os beijos
da sua boca.
/ 412 /
Tua boca
louca
beije-me os olhos
com beijos
aos molhos.
(...)
Beija-me, amor,
com os beijos em flor
da tua boca
barroca
e louca.
O Amor - agapê
move montanhas e salva o mundo, não tenho dúvidas. O amor - eros,
esse...
5.
Poemas aveirenses (abril 1997)
O livro “Poemas
Aveirenses” é, na sua essência, um hino de louvor à cidade dos canais e da
ria que é Aveiro. Basta ler o poema “Hino”.
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Capa e ilustrações:
Sara Bandarra
Posfácio: António
Manuel Ferreira
Apresentação: Teresa
Soares Correia
Leitura: ?
Música: Grupo de
Cantares Xailes de Aveiro
|
/ 413 /
Hino
Eu te canto, Aveiro,
linda cidade do
litoral.
Canto o teu sol,
a tua água,
o teu suor,
a tua terra;
canto o teu vento
e a maresia,
o azul e a luz
da ria.
Canto as tuas gentes
e a tua história.
Ergo o meu hino
à tua memória.
Canto João Afonso de
Aveiro
e Santa Joana Princesa,
José Estêvão
e Jaime de Magalhães
Lima;
todos os que te amaram
e tua seiva beberam,
os que te choraram
e por ti morreram.
Canto o teu peixe
e o teu sal,
o teu pão
e a tua planura,
os campos verdes
e a frescura.
Beijo-te as mãos
e percorro-te as ruas,
olho-te nos olhos
e admiro-te o perfil,
mato em ti saudades
– minhas e tuas.
Juro-te amor para
sempre,
cidade dos canais e da
ria
– tu, que és luz na
minha noite,
e meu alto e claro dia
(60-61).
/ 414 /
Eugénio Beirão
——————————————————
Novo Livro - POEMAS AVEIRENSES
No dia 19 de Abril de
1997, sábado,
às 16h30, na Biblioteca Municipal
de
Aveiro, lançamento do novo livro
de poesia -
Poemas Aveirenses.
A apresentação será
feita pela
Dr.ª Teresa Soares Correia e
haverá leitura de poemas.
Alavário.
Palavra que diz a terra
e a água,
o ovo e a asa que
foram,
o passado e a história
antiga,
a luz e o sal, o suor,
o azul.
Terra de peixe e de
barcos.
A voz que vem de longe
A cantar a espuma e a
areia.
Proa que avança no
vento,
à flor do sol e da maré
cheia.
Alavário.
In «Poemas Aveirenses»
Semanário “Litoral”, 17
abril 1997
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De facto o poeta canta
a terra e a água onde nasceu Alavário; canta as gentes que a fizeram
erguer-se, ao longo da história, com o seu suor, as suas lágrimas e o próprio
sangue; canta o sol, o azul e a luz benfazejos que a ajudaram a crescer e
lhe conferem beleza; canta o seu sal, o seu peixe e os barcos; e jura-lhe
amor para sempre, porque ela é a sua
cidade eleita, por ela tendo deixado outros
luares para lhe saborear o
leite e o mel (cf. 32).
O livro “Poemas
Aveirenses” oferece ao leitor uma viagem fascinante pela cidade, que é
constante cais de partida e de chegada. A navegação é feita em “barco de palavras e
nevoeiro”(21), que é sempre uma barca de fantasia.
Nessa navegação
fantástica podemos descobrir e comtemplar alguns “sítios”:
– As palmeiras do
Rossio, com suas “cabeleiras tropicais”, onde se acolhem
/ 415 / e cantam os
pardais, e são sentinelas que defendem a cidade e fadas boas que a “tornam
grácil” (40-41);
– A Beira-mar(46), de
“Casas pequeninas/ e ruas estreitas,/ um céu de palavras,/ vizinho às
direitas.// (...)/// A chave na porta,/ um rosto à janela,/ um sorriso amigo,/ a
luz duma estrela”; – O cruzeiro e a
pérgula, no adro da Sé, o bairro do Alboi, e o
políptico formado pelo Cais do
Paraíso, o Senhor das Barrocas, o
Largo das Cinco Bicas,
a Fonte dos Amores e o Senhor dos Aflitos.
– “A unir a cidade, a
ponte que enlaça”(18) e dá pelo nome de
Ponte-Praça(52).
Tendo quase a forma de um coração e sendo “espaço amado” dos aveirenses, é lá
que “pulsa o coração da cidade”, mas é, sobretudo, “traço que une as margens do
canal” e cordial “abraço cagaréu aos ceboleiros”; é ainda “estrela de seis
raios a luzir”, pois tantas são as ruas que nela confluem, como reforça a
ilustração de Sara Bandarra.
O livro também canta as
“coisas” de Aveiro que a caraterizam e tornam singular, para além do
sal, da água, do vento, da maresia, do peixe, do sol, da planura e dos campos
verdes.... Saliento:
– As “Torres de
Aveiro”, que se erguem acima das janelas e “são verdadeiramente as nossas asas/ subindo
no céu até às estrelas”(65), estabelecendo uma relação do homem
com o sagrado;
– Os “montes de sal”
das salinas, que são “novelos de linho/ dobados com amor/ e lágrimas”,
mas são sobretudo:
Montes de suor:
epopeias brancas
de anónimos heróis,
filhos da água
e do sol,
erigidos na dor
e no fogo.
Montes.
Montes de sal!
(76-77);
– A Fanfarra e a
Banda, que contribuem para a festa da música. Aquela, marchando pelas ruas,
os “cavalos à frente” e “em passo de gesta”, a inundar a cidade com o rufo dos
seus tambores e os “brilhantes clarins a tocar”(69); esta, lendo as
“partituras floridas de mágicas flores”, a fazer subir a emoção das gentes, fazendo
sorrir os rostos e levando as “almas a cantar”(cf. 83);
– Os ex-libris de
Aveiro que são o azulejo e os ovos moles. O primeiro é, entre outras coisas,
“barro pintado/ de azul do mar,/ azulejo sonhado/ a cintilar”(80); os ovos
moles são receita poética de açúcar e ovos, “feita dos fonemas mais
gostosos”(87).
6.
Na luz das palavras (abril 1998)
1. Gosto dos poemas
deste livro. Breves e luminosos. Passo os olhos por eles e que descubro e
contemplo? Luz, manhã, sol,
estrelas, meio-dia, halo intenso, lua,
constelações, galáxia, claridade, fulgor, vitral, rosácea...
Mas também o oposto:
sombra, noite, treva, penumbra, fumo, obscuridade...
Às vezes há uma
miscelânea entrelaçada de luz,
música, água, sombras, silêncio...,
como se fossem cores de uma mesma pintura.
Mas é a luz que o poeta
deseja e procura: “Uma luz eu procuro/ que me acenda o rosto/ e
ilumine as mãos”(17).
E é na luz das
palavras que ele habita e viaja: “Na luz das palavras/ habito/ e nelas viajo”, porque
sou “pássaro/ com asas de fogo” (113).
|
Capa e ilustrações:
Tânia Vieira
Prefácio: António
Capão
Apresentação:
António Manuel Ferreira
Leitura: Ana Paula
Cabrita, Inês Amorim
Música:
GRADUALE
(Grupo de Música Sacra
de Aveiro)
|
/ 417 /
A luz das palavras
é a medicina e a cura dos seus males: “Caminho à luz inventada/ do verbo/ e
nela me curo/ da sombra e da noite”(114).
A luz pode ser
oceânica e o poeta quer que chegue ao olhar e ao conhecimento do leitor, por isso lha
envia por carta através do mar:
“O poema é a carta
que te escrevo
da ilha onde habito.
A carta que te envio,
levada pela água
ao sopro leve do vento.
Leva a luz dos meus
dedos” (99).
2. Há a água também: a
água suave e benfaseja que fecunda a terra: “cai a chuva/ sobre a terra
ressequida/ e dela não se elevará/ ao céu/ sem a fecundar”(48);
A água “corola acesa
do mar” que o amante descobre apaixonado no rosto da sua amada:
“Para ti o fulgor
do estio,
imagem regressada
ao meu olhar em flor,
corola acesa do mar
e procura do teu rosto”
(101).
Ou “as águas (que)
arrastarão/ para o abismo/ as cinzas/ da purificação”(44), como um dilúvio.
3. Gosto muito do texto
com que António Manuel Ferreira, da UA, apresentou esta obra. Luminoso.
Artístico. Pode ser lido no livro “As Palavras em Mão”, Aveiro, 2011, pp.
189-195, ou em “Folhas-Letras & Outros Ofícios”, Ano 3, n.º 4, Grupo
Poético de Aveiro, Aveiro, fevereiro de 1999, pp. 38-41.
/ 418 /
4. Só dois poemas.
(1) Os boémios
(71)
Pela madrugada,
erram os boémios,
ébrios de desejos
e mistérios.
É o cerne da noite
que assim os traz
a erguer o olhar.
Levam nos ombros
constelações
imperfeitas;
no rasto, passos
perdidos
por dentro das vielas.
O corpo sonâmbulo
defende-os da claridade
que chega,
enquanto brilham
esparsamente.
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(2) Regresso
(91)
Beijo o chão
de caruma
que outrora
pisei
e rio
até às lágrimas.
Colho com ternura
a mística flor
do rosmaninho
e acendo
na palma da mão
seu róseo perfume.
|
5. Um convite ao
leitor: faça como o poeta!
“Para a dança dos
fonemas
e das rimas
me visto de alegria.
Na luz das palavras”
(114).
/ 419 /
7.
Novamente Diário (abril 1999)
Este “Novamente Diário”
foi publicado em abril de 1999 e em 19 de junho é que foi o seu
lançamento. Dediquei-o à memória do padre Arménio, falecido cerca de dois anos
antes, e a sua figura foi evocada pela leitura de vários textos (poemas e prosa)
que falam dele e estão publicados neste Diário.
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Capa e ilustrações:
Hélder Bandarra
Apresentação: Armor
Pires Mota
Leitura:
Ana Paula Cabrita, Graça Veleda,
Maria Amélia Pinheiro,
Maria Isabel Casal
Música:
Vítor Saudade, saxofone
Manuel Álvaro Martins,
guitarra
Rui Baptista, flauta de
bisel contralto
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Também o dediquei ao
meu neto Davis, “mon petit prince”, na altura com cinco anos, que
muito andava sofrendo pois teve de passar, logo desde os primeiros meses de
vida, por várias intervenções cirúrgicas e a mais demorada e dolorosa tinha
acontecido em finais de agosto de 1997, em Lisboa, pelas mãos do professor
Seruca. Eu próprio lá estive com ele, durante o dia, pelo tempo de uma
semana, para a mãe poder descansar.
“Mon petit prince”,
porque o Davis bebeu, durante os primeiros
anos, todo o ambiente parisiense... Em fins de fevereiro de
1998, estivemos a Maria de Fátima e eu
com eles em Paris... Um ano antes (fevereiro de
1997), esteve em Aveiro a Ouiza Ladlani, antiga
aluna de português da Natália... Só mais uma
pequena memória deste Davis impagável. Ao
deitar-se, rezava a Jesus “pela mamã”, “pelo
papá”, “pelo Davis”, e um dia rezou “pelo arroz”
(de que gostava e aos 25
/ 420 /
anos continua a gostar
muito), e “pelo Cricas” (o cão de um amigo com que brincava à bola).
Só mais um apontamento
a propósito do Davis (“Novamente Diário”, 21 de novembro de
1998): “Sempre que fala comigo ao telefone” [a partir de Paris], diz-me o meu
petit prince: “... dormir à côté de toi”.
Foi o jornalista e
escritor Armor Pires Mota que apresentou este livro, de maneira muito viva e
eficaz. O seu texto foi publicado na revista “Brotéria”, vol. 149(5), em
novembro de 1999 (pp. 470-475), e depois foi incluído no meu “As palavras em Mão
- Apontamentos de Literatura”, Aveiro, 2011, pp. 205-212.
Também escreveram sobre
“Novamente Diário”: João Estrela, o meu
alter ego, por três
vezes: no “Correio do Vouga”, em 16 de junho de 1999 (p. 5), n’ “O Aveiro”, em
17 de junho de 1999 (p. 6), no “Notícias da Covilhã”, em 23 de julho de 1999
(p. 4), e novamente n’ “O Aveiro”, em 4 de novembro de 1999 (p. 5); e
François Baradez, um cidadão francês que se enamorou pela cultura
portuguesa, no “Diário de Aveiro”, em 25 de fevereiro de 2000, (p. 4) – (cf. O mesmo
“As palavras em Mão...”, respetivamente pp. 201-202, 203-204, 213-215,
216-218 e 219-221).
François Baradez, filho
de um oficial da Marinha francesa, nasceu em 1928 e acompanhou o
pai, enviado à embaixada francesa em Lisboa, durante a Segunda Guerra
Mundial, “para fazer todo o possível para manter relações entre Portugal
e a França” (carta de 18 de abril de 2011). Estudou na École Supérieure
de Commerce de Paris e trabalhou na companhia sueca SKF, com fabricação
exclusiva de rolamentos, como chefe do serviço de exportação, viajando muito, e
depois foi diretor da SKF Portugal, na praça da Alegria, em Lisboa.
“Intressou-me muito Portugal que, do fundo do coração, considero meu segundo
país”. Foi amigo de Fernando Namora e cita o padre António Vieira. A sua
“maior paixão [foi] entrevistar portugueses de todas as classes sociais” e
publicar esses textos na imprensa regional. Possui uma casa no Cabo da Roca.
Este “Novamente Diário”
abarca o período de dois anos – do Natal de 1996 ao Natal de 1998 –
e estende-se por muitas localidades e variadíssimos acontecimentos e
reflexões, alguns muito densos e dramáticos.
/ 421 /
Só dois poemas:
O Mar (80)
O mar é um mistério,
um mundo desconhecido,
azul como não há céu.
O mar é imenso
e dá a volta ao mundo,
tão grande e extenso
que ninguém o abarca.
Às vezes mata,
mas é muito bonito,
lá por dentro, com
peixes
de todas as cores.
A criança é que o
domina:
mete-o dentro de três
riscos
e diz: “Aqui é o mar”.
E o mar não se importa,
fica ali quietinho – o
Mar.
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O Meu Diário (30)
É vinho bebido
o meu diário,
espelho cingido
em ondulação de
palavras;
é presença e ausência
do muito e de nadas.
O meu diário
é folha caída
ao soprar do vento;
é força em movimento,
é memória e é vida,
é luz futura;
é mão insegura
a tocar o fogo
que levo comigo,
entre silêncios e
sombras
de quanto escrevo e
digo.
|
8.
Beira: Um rosto interior (outubro
1999)
Oito textos é que reuni
nas pp. 227 a 257 de “As Palavras em Mão”, acerca deste livro de
poemas sobre a Beira Interior: quatro de João Estrela; um de alunos da turma
4B do 12.º ano, ano letivo 1999/2000, da Escola Secundária do Fundão, lecionada
por Estrela Correia, que em 2017, já jubilada, vem publicando crónicas
no “Jornal do Fundão”; o texto de Idalécio Cação, da UA, com que fez a
apresentação da obra, em 27 de novembro de 1999, em Aveiro; a recensão da “Brotéria”;
e o texto de François Baradez.
Falta apenas a reflexão
feita por Fernando Marques, em Paris, em 22 de
/ 422 /
janeiro de 2000, na
apresentação realizada em colaboração com a Livraria Lusophone, de João
Heitor, mas esse texto perdeu-se.
Aí, perante os
emigrantes presentes, oriundos sobretudo das Beiras e Alentejo, eu
apresentei-me assim:
“Quem vos fala é um
filho humilde e anónimo da Beira Interior, “filho da gleba” como Vergílio
Ferreira, e, ainda por cima, “mudo e tartamudo”, como gostava de se
apresentar Miguel Torga. Se estou aqui é apenas por uma razão: ter-me feito
à aventura da escrita. E cheguei perante vós pela mão de dois homens a
quem muito estimo e trato por amigos: João Heitor, o “livreiro da
esperança”, a quem François Baradez chama, com toda a razão e propriedade, “Ardente
Bardo da Lusofonia”; e Fernando Marques, artista de grande sensibilidade
e com criação de relevo nos campos da palavra, da música e do teatro”.
A seguir, filosofei um
pouco:
“A nossa vida é demanda
insatisfeita, constante e continuada, do Belo e do Infinito. E por
variados caminhos. A Poesia é um deles. Ao pôr em ação a intuição, a
sensibilidade, a “vibração emotiva” (António José Saraiva), “o poeta (...) busca o
total Absoluto” (Eugénio Beirão, “Diário Intermitente”, p. 98). E, ao ansiar o
Transcendente, o poeta torna-se espelho, a sua voz constitui-se instrumento e
mediação do Belo. É o que diz, maravilhosamente, a poetisa alentejana
Fernanda Seno, desaparecida em 1996:
/ 423 /
“Tudo o que é Belo,
Alto e Transcendente
está para além de nós.
Somos o chão onde se
pousam estrelas.
E o brilho não é nosso.
O brilho é delas.
Somos o espelho a
refletir os céus,
mas por detrás do
espelho é que está Deus.
As glórias e os
louvores não são para nós,
mas para quem deu
acordes de infinito
à nossa breve voz”.
E retomei a minha
apresentação autobiográfica:
“Sou beirão por
nascimento e assumo-o no nome literário que escolhi. Na minha terra natal –
Peraboa – bebi o leite da ruralidade no contacto com a terra, os animais, as
árvores, os pássaros; correndo e labutando por montes e vales, atrás do meu
pai, pude guardar nos olhos, para sempre, o colorido da flor da giesta, da
urze, da esteva e do tojo, e inalar o místico perfume do rosmaninho; crestou-me
o rosto e as mãos o sopro áspero do gelo e o sol escaldante de agosto;
comi o pão de cada dia amassado com suor e amor, laborando nas tarefas agrícolas;
fui tocado e esmagado pela visão imensa e tremenda da montanha primeira,
alta e imponente, mãe de todas as montanhas; fui ungido com o óleo
sagrado do afeto daqueles que me ajudaram a crescer e a iniciar a dura
caminhada da vida. Não admira, pois, que, transplantado da beira-serra para a
beira-mar, eu tenha escrito, num dia de junho de 1989, numa das rápidas idas
ao palco dos primeiros anos:
“Por algumas horas, vim
à casa paterna da minha meninice. É quase um regressar às raízes, furtivo e
clandestino. Mas saboroso. Ao menos pela contemplação gozada desta paisagem
verde e acidentada. Verde de muitos tons, pincelada de largas manchas amarelas
da giesta negral. E também pelo céu azul que me aclara a vista e o ar puro que
me tonifica a alma.
Minha Beira colorida,
minha serra da Estrela altaneira e magnífica, como gosto de vos rever!”
(“Diário Intermitente”,
1994, p. 18)
/ 424 /
Acrescentei que o livro
que ia ser apresentado (ali em Paris, na livraria Lusophone) significava
o meu regresso àquela Beira onde havia nascido e que amava.
E encerrei o retrato do
poeta Eugénio Beirão lendo o poema seguinte (que em 2009 vim a
publicar no livro “Os dias férteis”, p. 19), apelando à capacidade de
deslumbramento:
Finjo que sou poeta
e construo flores de
palavras
que uso na lapela.
Mas poeta eu não sou.
Assomo apenas à janela
a contemplar os astros;
e com luminosos traços
ensaio dizer o
deslumbramento.
Fernando Marques
apresentou o livro e foram lidos alguns poemas, mesmo por alguns dos
presentes.
Sobre Fernando Marques
deixo o seguinte apontamento das pp. 145-146 do meu “Novamente
Diário”, de 1999, a propósito da representação do
Auto da Barca do Inferno
de Gil Vicente, em Aveiro, em
20 de julho de 1998.
O Grupo do Odéon
ofereceu ontem aos aveirenses, num palco inadequado porque de chão
irregular e aberto, erguido no Rossio, um Gil Vicente vivo,
inteligente, quente e convincente.
Apesar da hora tardia (meia-noite), o povo não arredou pé e apreciou a
representação: riu com as momices e jocosidades do companheiro do Diabo e do Parvo;
mostrou entender a modernidade e atualidade da figura da Alcoviteira,
de ambiguidade acrescida por ser representada por um ator; embarcou na mensagem de
Mestre Gil, meditando porventura sobre os caminhos e as opções da vida, com
suas vaidades, manigâncias e coisas vãs, com seus valores e ideais mais elevados,
não perdendo de vista que também ele poderia estar ali, a tomar lugar na barca
dos danados.
/ 425 /
De facto o Auto da
Barca do Inferno é um desafio à análise interior, ao confronto eu – Bem, e, quer pelo
riso – ridendo castigat mores
– quer pela seriedade do discurso, pode
chegar-se à correção dos erros.
O trabalho do grupo,
sob a liderança de Fernando Marques, tem sido insano: pela exigência da
montagem de uma peça e também porque dois dos atores residem em Portugal e a
preparação foi feita em Paris, onde vivem todos os outros.
Este “Beira: Um Rosto
Interior” é o meu livro mais viajado. Antes de se apresentar em Paris passou por Peraboa,
Covilhã, Penamacor, Belmonte, Idanha-a-Nova, Fundão e Aveiro,
visitando várias escolas, o que muito me apraz.
Saliento a Secundária do Fundão (com um belo estudo!) e a José
Silvestre Ribeiro, de Idanha-a-Nova.
Dois poemas apenas – o primeiro, um dos
escolhidos pelos alunos da Secundária do Fundão (sob a orientação da
professora Estrela Correia), o segundo, selecionado pelos alunos da
Secundária de Idanha-a-Nova, (orientados pelas
professoras Cecília Afonso, Cecília
Mendes e Luísa Coelho, no Clube de Leitura).
/ 426 /
(1) Comes o Pão
(p. 35)
Comes o pão com
o labor dos teus pulsos
e acendes nos dias
a força da criação.
No cume da montanha
contemplas o mistério
da luz.
E, à vista do chão que
habitas,
cantas, no fervor das
palavras,
a melodia interior
que trazes nos olhos.
És flor de argila a
crescer.
Iluminas a noite
na terra que amas.
|
(2) Beirão (p.
53)
Trago na palma das mãos
as linhas do meu
destino
e um anúncio de
sorriso.
Dói-me na planta dos
pés
o sulco de mil granitos
e a poeira dos
caminhos.
Venho de muitos lugares
navegando à luz e com
brisas.
Carrego em mim muitas
vidas.
Beirão na seiva e na
alma,
meus olhos olham
alturas,
buscam sombras e
verduras.
|
Mas o livro também teve
apresentação na minha aldeia, logo em 16 de outubro de 1999, a
abrir a campanha, integrada no 2.º Encontro de Naturais de Peraboa.
|
Capa e ilustrações:
Sara Bandarra
Prefácio: João
Estrela
Apresentação:
Idalécio Cação
Leitura:
Ana Paula Cabrita, Graça Veleda,
Maria Amélia Pinheiro
Música: ?
|
O programa foi cheio,
variado e rico. A abrir, às 15h30, dançou o rancho infantil “Os Perinhas”;
a seguir, houve uma breve alusão ao livro feita pela
/ 426 /
vereadora da cultura,
dra. Maria do Rosário Pinto da Rocha, e Graça Veleda e António Morais, idos
de Aveiro, leram textos de Eugénio Beirão e poemas deste “Beira: Um Rosto
Interior”; às 17h15, na igreja paroquial, o Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares
apresentou um concerto coral com música de João Gamboa; e às
18h00, foi celebrada a eucaristia festiva com o canto do mesmo coro.
O encontro continuou
com jantar e convívio.
Poema do Beirão
Eu beirão que à beira
da Estrela nasci
e sua imensidão logo
observei
e hoje canto a terra
que sempre vi
com palavras e versos
que vos darei.
Eu beirão que por aqui
deambulo
e leio as paisagens e
as gentes
e de pedra em pedra
salto e pulo
e vejo no céu as
estrelas cadentes.
Eu beirão que à luz do
sol me purifico
olhando no céu o azul e
o traço
que une as sílabas das
palavras e assim fico
a saber o poema escrito
no espaço.
Eu beirão de minha
terra nostálgico
sofrendo no coração o
mal da distância
entoo meu canto de
granito metálico
e digo os cravos e
saudades da infância.
Eu beirão que em mim
trago as marcas e a sina
das luas e dos ventos,
dos gelos e do verão
e nas asas de uma ave
peregrina
vou correndo para o
mar. Eu beirão (p. 67).
|
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