Memórias Entrelaçadas

   


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A MÚSICA QUE ESCREVI

PARA A LITURGIA


I. Obras publicadas

1. Cânticos para a liturgia (1.ª edição)

Comecei a compor música para as celebrações litúrgicas por necessidade. Foi em outubro de 1978, na paróquia de Nossa Senhora da Glória, em Aveiro. O livro dos salmos do ciclo A do padre Manuel Luís estava esgotado e não tive outra solução. Em 1979 compus um “Tu es sacerdos” para a missa nova do padre Fausto de Oliveira (como já contei no capítulo 13 – Isto está tudo “entrelaçado”!).

Quando passei para a paróquia de São Bernardo, em 1980, continuei a compor também por necessidade: ou porque não havia (ou não conhecia) o cântico de que precisava – eu queria o cântico próprio – ou o que havia era demasiado difícil ou não gostava.

Nessa altura eu já assinava o Boletim de Música Litúrgia da diocese do Porto, onde aprendi muito com toda a sua reflexão, e a Nova Revista de Música Sacra de Braga.

Em São Bernardo levei a cabo um trabalho ciclópico em todos os aspetos / 368 / e também no do canto, que foi o primeiro que abracei. Uma das prioridades urgentes era o ciclo do Natal, o tríduo pascal, as festas do padroeiro São Bernardo (em 20 de agosto) e da Natividade da Virgem Santa Maria (em 8 de setembro). Compus alguns cânticos para estas celebrações.

E comecei a gostar de compor!

Escrevi à mão centenas e centenas de páginas, que assinava com o nome de João Beirão. Ganhei uma destreza manual tão notável que parecia letra de imprensa. Primeiro escrevia a lápis e depois passava a limpo com esferográfica Bic, esfera grossa, cor preta. Ainda hoje faço assim.

Desde esse tempo só utilizo em tudo o que escrevo essa esferográfica de cor preta. No rascunho de textos utilizo o verde (e o vermelho para corrigir). Estas memórias ando a rabiscá-las a verde, há vários anos.

O meu estudo e contacto com a música vinha do tempo de seminário. Na segunda parte da década de 1970, fiz novos estudos musicais, mais consistentes e variados, de que saliento apenas a Harmonia, no Conservatório de Música de Aveiro Calouste Gulbenkian, com o professor Emílio Matos. O professor Matos era muito calmo, metódico e paciente. Descia ao aluno. Encontro antigos discípulos dele que gostavam do seu ensino e o elogiam.

Era docente na Escola João Afonso de Aveiro, éramos colegas mas de áreas disciplinares diferentes.

Mais tarde ofereci-lhe os meus livros de poesia e contos e, claro, os “Cânticos para a Liturgia” e o duplo CD. Visitava-o em casa, quando já não saía. Tinha junto à cadeira onde se sentava uma mesinha com um monte de livros que ia lendo. Era muito curioso e queria ter a cabeça sempre a funcionar!

Quando me aposentei, no ano 2000, publiquei a 1.ª edição dos “Cânticos para a Liturgia”, que saiu em julho. Um dia, em 1990, o senhor D. António Marcelino havia-me desafiado a editar tudo o que tinha composto e eu decidi-me. Concedeu-me o “imprimatur” para a Diocese de Aveiro.

A apresentação do livro foi feita em 28 de outubro (de 2000), com um programa que vale a pena recordar. Às 17 horas, houve concerto coral na Igreja da Misericórdia de Aveiro, e às 19 horas, na Sé de Aveiro, o senhor D. António Marcelino presidiu à Eucaristia Festiva. / 369 /

A mesa administrativa da Santa Casa assumiu o processo e através da pessoa do provedor, dr. Amaro Neves, convidou todos os coros litúrgicos da diocese de Aveiro a estarem presentes no concerto e a participarem pelo canto na missa solene. Para isso enviei o guião dos cânticos.

No concerto, o Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares assumiu a parte central e principal, os coros de Nossa Senhora de Fátima, de Santa Joana, de São Bernardo e da Sé apresentaram um cântico cada um. No final, todos os coros executaram o cântico de entrada da solenidade da Imaculada Conceição.

Antes desse momento, disse algumas palavras, de que saliento a ideia de que “foi movido por um sentimento de partilha” que publiquei a minha música litúrgica e esse “gesto de partilha” ganhava mais relevo no concerto que estava a decorrer e na Eucaristia que celebraríamos depois, na catedral.

E continuei: “Toda a música que escrevi e está no livro procura ser expressão de fé (...) no ato de a compor” e no “momento de a cantar”. E rematei: “Cantar a fé é dos atos mais belos e expressivos para um crente. Sinto-me feliz se contribuir, mesmo em pequena medida, para essa beleza”.

Depois de agradecer a todos os coros a “sua presença amiga” e os “momentos de beleza e espiritualidade” que proporcionaram aos presentes, quis distinguir o Coro de São Bernardo, só pela seguinte razão: “Cantamos juntos há exatamente 20 anos e liga-nos uma história de muitas alegrias. Foi para vincar e selar essa longa amizade e a minha gratidão que lhe dediquei o livro Cânticos para a Liturgia”. / 370 /

Um só e grande coro canta: Exulto de alegria no Senhor.

Para introduzir a bela antífona do cântico de entrada da solenidade da Imaculada Conceição – “Exulto de alegria no Senhor, e minha alma rejubila no meu Deus, pois com a veste da salvação me revestiu, e com o manto da justiça me envolveu, qual esposa adornada de suas joias” – que todos os grupos cantaram formando um só grande coro, li o poema “Saudação a Nossa Senhora da Glória” (“Os Dias Férteis”, 2009, p. 100):

SAUDAÇÃO A NOSSA SENHORA DA GLÓRIA

Ave, Maria, ilha descoberta,

rosácea pura de luz e encanto,

teu rosto é perfume e é flor aberta,

barca para a glória sob o teu manto.

 

Ave, Maria, Senhora tão pura,

promessa de Deus aos homens, e graça.

Mulher bendita, Mãe de formosura,

protege os filhos no tempo que passa.

 

/ 371 /

Senhora da Glória da Sé de Aveiro,

Mãe e padroeira deste teu povo,

nós Te cantamos um hino cimeiro

de louvor e glória – cântico novo.

A Eucaristia na Sé foi presidida pelo bispo de Aveiro, D. António Marcelino, que me honrou com a sua presença durante toda a tarde. O Coro de Milheirós de Poiares propôs os cânticos e todos os outros cantores estiveram e cantaram na Assembleia. Depois da Comunhão, em atitude de louvor, de oferta e de ação de graças a Deus, li o poema:

                        HINO

Senhor, que nos reúnes em teu mistério

e sobre nós derramas teu doce olhar,

que iluminas os olhos e és refrigério,

conduzes na terra nosso caminhar;

 

Senhor, que és Pai de bondade, és criador,

e nos amas em teu amor infinito,

que aceitas o cantar do nosso louvor

e escutas nossas preces e nosso grito;

 

Senhor, nós Te louvamos em nossas vozes,

nós Te cantamos na palavra dos hinos;

antífonas, refrães – são apoteoses,

sob os acordes do órgão cristalinos.

 

A palavra revelada, o rir dos sons,

o engenho dos homens, a arte sentida

– de tudo fazemos canto em vários tons,

para Te louvar, ó Deus, Senhor da vida.

/ 372 /

Depois da celebração, foi servida a todos uma refeição fria, no Salão D. João Evangelista (ao lado da Sé).

No dia 1 de novembro, o “Correio do Vouga” fez-se eco deste evento e sobretudo das palavras de D. António Marcelino, em crónica titulada “A música litúrgica tem de provocar sentimentos” (p. 4).

O bispo de Aveiro sublinhou na homilia a importância da assembleia animada pelo canto litúrgico, “que não é um espetáculo; exprime vida, gera comunhão”. Os coros, portanto, não existem apenas para cantar, mas fundamentalmente para animar a assembleia, fazendo com que todos cantem.

F. Maia (Coro de Milheirós), bispo de Aveiro
e o autor

Disse ainda que a igreja deve ser “um espaço de repouso, de serenidade, de paz interior, de oração”. “Escutar Deus é uma graça”, depois dessa escuta “irrompe dentro de nós um hino de gratidão”. E cantamos!

Em carta de 24 de novembro (de 2000), o padre doutor Manuel de Pinho Ferreira afirma, entre variadas outras coisas: “as composições parecem-me muito boas quer sob o aspeto técnico quer no aspeto litúrgico”. E acrescenta: “Foi uma ajuda preciosa que deu ao Povo de Deus (...)”. Na parte final da carta conclui que, ao contrário de outros compositores que oferecem trabalhos difíceis para os coros amadores, os meus cânticos são “belas composições acessíveis com construções harmónicas de rara beleza”. Depois remata: “Até neste ponto, teve o cuidado de ser útil”.

Alguns aspetos importantes destes cânticos, apontados nas palavras de “Apresentação” do livro:

– São cânticos acessíveis, para que os coros amadores e as assembleias os possam cantar;

– Respeitam os textos litúrgicos, seguem os tempos e as celebrações / 373 / litúrgicas, permitindo à assembleia exprimir a sua fé de acordo com o ritmo e o dinamismo da Igreja;

– Cada cântico, porque é o “próprio”, está colocado no seu domingo ou festa e no seu momento ritual;

– A aclamação ao Evangelho tem um tratamento não habitual – a música dos versículos apresenta quase sempre uma forma ornada.

 

2. Cânticos para a liturgia (2.ª edição)

Em julho de 2003, também com o “imprimatur” do bispo de Aveiro D. António Marcelino, “subiu à luz do dia e do templo” a 2.ª edição revista, corrigida e aumentada dos “Cânticos para a Liturgia”.

Como a 1.ª edição, esta oferece também cânticos do ordinário da missa, cânticos de entrada, salmos responsoriais, aclamações ao evangelho, cânticos de comunhão e hinos da liturgia das horas; está aumentada em mais de 50 novos cânticos de todo o tipo, mas foram retiradas as antífonas da salmodia e do cântico evangélico da Liturgia das Horas, mantendo-se e aumentando mesmo o número de hinos. Cerca de dez cânticos novos estão compostos

sobre textos poéticos escritos por Eugénio Beirão, uns originais, outros parafraseando textos bíblico-litúrgicos.

Também agora procurei viver o ato de compor como um ato de fé. Isto ajudou-me a alcançar a graça de continuar a manter-me em Igreja.

Dediquei esta 2.ª edição ao Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares.

 

3. Edição de “12 Cânticos do padre Arménio”

Nesta mesma data (julho de 2003), editei “12 Cânticos do padre Arménio”. O objetivo era não se perderem essas obras, mas era também homenagear o seu autor, na mesma semana em que, movido pela mesma intenção, o Coro de Santa Joana trouxe à catedral de Aveiro, com um coro convidado, o Requiem de Gabriel Fauré.

Aproveito para, em rápido parêntese, evocar mais uma vez a ilustre figura que foi o padre Arménio, transcrevendo apenas o texto que redigi dando conta da celebração de uma eucaristia em sua memória, celebrada em 15 de fevereiro de 2007. / 374 /

EM MEMÓRIA DO PADRE ARMÉNIO

Ocorre amanhã/hoje, 15 de fevereiro, o décimo aniversário da morte do padre Arménio. Por essa razão, um grupo de casais promove, na Igreja do Seminário de Santa Joana Princesa, a celebração, às 19h15, de uma Eucaristia em sua memória, aberta a todos os que quiserem participar.

O padre Arménio distinguiu-se como sacerdote, pedagogo, pároco, professor e artista e marcou, com a sua vida e os seus dons, várias gerações de aveirenses. Nas décadas de 60, 70, 80 e 90, inundou os meios em que esteve e trabalhou, nomeadamente paróquias, as crianças e os jovens, os casais, grupos corais, o liceu, o seminário, o conservatório, o CUFC, a universidade, com a sua alegria e otimismo, a sua palavra fácil e entusiasmante, a sua sensibilidade e jeito para ajudar e aconselhar os mais novos e os mais velhos, o seu saber e a sua arte. Admirado por todos, continua a ser lembrado e amado por muitos.

Algumas frases de aveirenses que, em jornais e livros, se lhe referiram com apreço e gratidão, dão bem a imagem da importância da sua personalidade.

Partiu “como parte o Anjo de Deus/ – deixando atrás um rasto de luz”. “Poeta de tudo o que é belo, cantor de tudo o que é bom”.

“Músico de muitas partituras”.

“Da música fazia linguagem de Deus, que é preciso ouvir na beleza harmónica das notas e na delicadeza dos sons”.

“Transfigurava, com o seu sorriso e simpatia, com a sua palavra luminosa, com o seu entusiasmo contagiante, tudo aquilo em que tocava”.

“O padre Arménio não morreu! Está vivo na memória e no coração de muitos, está presente e vivo na vida dos que com ele se cruzaram e con-viveram”.

É este Homem, escolhido pelo bispo emérito de Aveiro, D. António Marcelino, como um dos “grandes aveirenses”, que vamos recordar nesta Eucaristia de ação de graças pela dádiva e generosidade da sua vida. Serão cantados cânticos da sua autoria.

/ 375 /

4. Duplo CD “Cânticos para a liturgia”

A minha obra seguinte saiu em setembro de 2012 e foi o Duplo CD “Cânticos para a Liturgia”, em edição de autor. Contém 35 cânticos do livro com o mesmo título, de que estava em preparação a 3.ª edição, cinco deles do ordinário da missa e os restantes relativos aos diversos tempos e festividades do ano litúrgico. A gravação foi feita em 2010, no auditório do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro, pelo Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares, sob a direção de Clarinda Ferreira, acompanhado ao órgão por Marília Canhoto e Manuel Sousa.

Gostava de deixar aqui dois testemunhos.

O primeiro é da irmã Celeste Lopes, de Arronches, em postal escrito na Natal de 2012:

“Deliciei-me a ouvir o CD. As melodias variadas e muito bem conseguidas. Uma harmonização e execução melodiosas que fazem rezar e elevar para Deus. As vozes dos solistas duma afinação exata e expressiva! Apreciei muito. Muitos parabéns pelo contributo que dá a favor da “Música Sacra” em Portugal”.

O segundo é do amigo Jorge Rino, professor universitário jubilado, enviado em mail de 18 de junho de 2013.

Diz ele:

“Já comecei a ouvir o 1.º CD com peças da sua autoria.

Parabéns – assim dá gosto ir à missa.

Como não sou crente, só vou a “missas circunstanciais” (casamentos, funerais, etc.) e dou um significado próprio ao “santo sacrifício da missa” – quase sempre é um verdadeiro sacrifício ouvir músicas desconchavadas, coros desafinados e sintetizadores foleiros com sons disparatados.

Consequência: perco toda e qualquer santidade ao rogar pragas a quem fez e interpreta aquelas músicas”.

/ 376 /

5. Credo – Profissão de fé

No mês seguinte, outubro (de 2012), publiquei, em dois cadernos policopiados (versão para coro e versão para órgão com acompanhamento escrito por Domingos Peixoto), o Credo – Profissão de Fé.

Íamos entrar no Ano da Fé (11 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013) e era necessário ter à mão mais um subsídio para poder cantar a Fé católica. E fizemo-lo uma vez por mês, quer na paróquia de São Bernardo quer na igreja da Misericórdia de Aveiro.

Depois, na 3.ª edição dos “Cânticos para a Liturgia”, saída em dezembro de 2013, o Credo foi integrado no local próprio do Ordinário da Missa.

 

6. Salmos Responsariais – Livro do Salmista e Livro do Organista

Em dezembro desse mesmo ano 2012 e em janeiro de 2013, foram publicadas as minhas melodias para os “Salmos Responsariais”, com duas versões: o “Livro do Salmista” (só com a melodia e o texto) e o “Livro do Organista”, com os acompanhamentos para órgão escritos pelo professor Domingos Peixoto.

Esta foi uma edição já não de autor mas da Gráfica de Coimbra.

Da “Apresentação” que escrevi para o Livro do Salmista, quero transcrever da p. 3 um parágrafo apenas, pela sua pertinência: Considerando que os salmos são, na sua origem, “cânticos acompanhados ao som do saltério”; considerando que são obras primas da poesia universal; considerando sobretudo que exprimem os mais elevados sentimentos do coração do homem para com Deus e são também a revelação do coração de Deus ao homem, o salmo da missa tem toda a vantagem em ser cantado – e bem cantado. A assembleia canta o refrão, que deve ser assumido como uma verdadeira resposta da sua fé. A prática da forma responsorial, em bom clima de oração, é, portanto, a melhor maneira de cantar o salmo”.

/ 377 /

Em 19 de janeiro de 2013, a Escola Diocesana de Música Sacra de Aveiro (EDMUSA) cumpriu com os seus alunos, na paróquia de São Bernardo, a 5.ª sessão de formação coral. No início do intervalo, pelas 17h15, o professor Domingos Peixoto fez a apresentação dos “Salmos Responsariais” e dos 2 CDs. Na missa (vespertina) foi cantado o CREDO, com o refrão da assembleia: “Creio! Creio! Esta é a nossa fé./ Creio! Creio! Esta é a fé da Igreja”.

No fim da celebração estiveram à venda os livros e os CDs, revertendo o respetivo produto em benefício das obras da Igreja de São Bernardo, previstas para breve.

Na Sé de Aveiro, uma semana depois, em 26 de janeiro (de 2013), também sábado, houve um “Concerto em favor do órgão de tubos da Sé”, com o seguinte programa: 17h00 – Concerto coral; 18h15 – Apresentação do duplo CD “Cânticos para a Liturgia” e “Salmos Responsoriais – Livro do Salmista e Livro do Organista” de João Gamboa; 19h00 – Eucaristia festiva.

No concerto e na Eucaristia cantou o Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares, executando cânticos de João Gamboa.

A apresentação das obras foi feita pelo professor Domingos Peixoto e reproduz-se a seguir o texto que preparou e lhe serviu de apoio.

A

No ano de 2013 passa o 50º aniversário da promulgação da Constituição Apostólica Sacrossanctum Concilium, sobre a Sagrada Liturgia. Apesar dos seus 50 anos, continua a ser um foco de luz a iluminar o caminho de quantos se dedicam à música sacra, cuja finalidade é a glória de Deus e a santificação dos fiéis. Num flash sobre a perspetiva do Concílio acerca da música sacra, podemo-la sintetizar assim: a. Um olhar sobre o passado – um património construído / 378 /

b. Um olhar sobre o futuro – um património a construir.

a. Quanto ao passado, a tradição musical da Igreja é “um tesouro de inestimável valor, superior a todas as outras expressões de arte”. Porquê?

Porque “o canto, intimamente ligado ao texto, é parte integrante, necessária da liturgia solene”. De facto, a igreja é a casa da arte por excelência, onde se encontra as diferentes expressões artísticas (arquitetura, escultura, pintura, etc.), reflexo da Beleza Suprema. Mas a música é

– expressão delicada da oração,

– fator de comunhão,

– elemento de maior solenidade.

Por isso, preserve-se, guarde-se e desenvolva-se com diligência o património da música sacra: canto gregoriano, polifonia (n.º 114) e até o canto popular.

b. Quanto à visão sobre o futuro, o Concílio lança um desafio: “os compositores, imbuídos do espírito cristão, compreendam que são chamados a cultivar a música sacra e a aumentar-lhe o património (n.º 121). Na verdade tendo o latim deixado de ser o idioma exclusivo da Liturgia, um vasto campo se abre na criação musical sobre textos na língua vernácula.

B

E aqui estamos nesta tarde à volta de um compositor que conhece como a palma das suas mãos estas linhas orientadoras, ouviu o chamamento, respondeu e aceitou o desafio – o dr. João Gamboa.

São hoje apresentados dois dos seus livros:

a) Os Cânticos para a Liturgia, a 1, 3 ou 4 vozes, para o Ordinário da Missa e para todos os Tempos litúrgicos e festividades, gravados em CD pelo Coro de Milheirós de Poiares no auditório do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro;

b) Salmos Responsoriais – versão para o salmista e versão para o organista, também para todo o Ano Litúrgico.

Falar da beleza e qualidade destes cânticos, não é preciso. Deles acabamos de ouvir no concerto uma amostra, tão bem interpretada pelo Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares, sob a direção da sua titular, a prof.ª Clarinda Ferreira. Quem tiver dúvidas, poderá tirá-las ao ouvir o seu belo efeito e eficácia no espaço e momento próprio para que foram compostos – a eucaristia./ 379 /

C

Estes livros são páginas de uma vida: mais de 40 anos ao serviço da liturgia, que, por coincidência, começaram nesta Igreja da Glória, e depois continuaram em São Bernardo e na Misericórdia.

a. Nestas páginas, o dr. Gamboa fixou uma recomendação do Concílio: “Que as composições possam ser cantadas, não só pelos grandes coros, mas se adaptem também aos pequenos e favoreçam uma ativa participação de toda a assembleia dos fiéis”. E, de facto, os cânticos mais elaborados incluem geralmente uma melodia destinada à assembleia.

b. Além disso, estas páginas são uma palavra profética de quem luta contra a mediocridade e contra muita música indigna da casa de Deus. É que o Concílio, numa visão muito ampla, declara que aceita e aprova no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades requeridas. Aqui recordo sempre uma frase muitas vezes repetida pelo compositor bracarense, cón. dr. Manuel Faria: “A música, se é má, não pode ser sacra”.

c. Neste contexto, não é só o dr. Gamboa que está de parabéns, mas também a Diocese, os coros e as nossas assembleias, por disporem deste enriquecimento do património da música litúrgica.

d. Estes livros e CDs são uma oferta generosa do dr. Gamboa: do seu tempo, da sua criatividade e... de muito do seu dinheiro... Como foi já referido, o produto da venda dos CDs reverte em benefício do novo órgão desta igreja, que chegará em breve. Também a preparação da edição foi custeada pelo autor.

Por isso termino:

Dr. Gamboa, parabéns e obrigado”.

Domingos Peixoto

 

7. Cânticos para a liturgia (3.ª edição)

A 3.ª edição dos “Cânticos para a Liturgia”, “reformulada, corrigida e aumentada”, veio à luz do dia em dezembro desse mesmo ano de 2013, em edição da Gráfica de Coimbra.

Algumas novidades: mais cânticos, alguns não sendo específicos do “próprio”, o Glória 2 já tem acompanhamento de órgão que eu escrevi, traz / 380 / o Credo, os salmos saíram e estão em livros autónomos... E a insistência no trabalho com a assembleia:

“É importante e indispensável o canto da Assembleia e o Coro deve promover e facilitar a sua participação, assumindo o papel de a educar e apoiar dialogando com ela. Um ensaio de pelo menos cinco ou seis minutos, bem conduzido e motivador, explicando algum termo, expressão ou ideia e a possível relação com a Palavra do dia, é sempre muito frutuoso. (...)

Nada mais belo e santo e agradável do que uma Assembleia litúrgica a cantar, a cantar a fé da Igreja, a fazer a festa de Jesus Cristo”.

 

8. As antífonas do Ó

Em outubro de 2014, publiquei ainda “As Antíforas do Ó”, em dois cadernos policopiados, um com a versão para coro, o outro com acompanhamento de órgão escrito pelo professor Domingos Peixoto.

A razão da composição destas Antífonas do Ó está num jovem brasileiro de nome Luís Humberto Borges, que me conheceu através do padre João Caniço, e a quem ofereci todos os meus livros e CDs. Vivia em Uberlândia, havia estudado e continuava a estudar música e, em mail de 11 de fevereiro de 2013, com 25 anos, diz-me que “estava em dúvida se partia para o doutorado (doutoramento) em música ou ingressava na vida religiosa”.

Também me confessa: “Luto pelo zelo da boa música no templo!” E logo a seguir afirma que, mesmo na sua paróquia, quem ia à missa “não tinha a certeza se estava num circo ou num salão de baile de péssima qualidade!”

Em carta de 14 de fevereiro de 2013, eu disse-lhe, entre outras coisas: “Persista na dignificação da música na Liturgia. É um esforço que precisa de muitos apóstolos. E dura anos, é preciso muito tempo. Contagie outros, motive outros para esta causa. Entreajudem-se, apoiem-se!” / 381 /

Pois este jovem pediu-me um dia, todo entusiasmado com a beleza dos textos, que musicasse as belíssimas Antífonas do Ó. Fiz isso em 2014.

Da bem documentada “Apresentação” (p. 3), escrita em setembro de 2014, saliento:

“A expressão máxima da esperança bíblica na vinda do Messias está concentrada nas sete antífonas usadas na oração do Magnificat nas Vésperas da última semana do Advento (de 17 a 23 de dezembro): “Ó Sabedoria do Altíssimo”, “Ó Chefe da casa de Israel”, “Ó Rebento da raiz de Jessé”, “Ó Chave da casa de David”, “Ó Sol nascente”, “Ó Rei das nações”, “Ó Emanuel”. Neste “Ó” invocativo inicial é que se deposita toda a força dos sentimentos da Igreja no tempo em que se preparam as festividades do Natal. Daí serem estas orações conhecidas por antífonas do “Ó”.

(...) As antífonas invocam, com títulos do Antigo Testamento, o Verbo que já incarnou e agora vive no meio de nós e suplicam-Lhe que venha de novo: “vinde ensinar-nos...” “vinde resgatar-nos...”, “vinde libertar-nos...”, “vinde iluminar...”, “vinde salvar-nos...”.

As antífonas do Ó estão compostas a uma só voz e podem ser usadas também na Eucaristia, em celebrações da Palavra e da Penitência e na popular novena de Natal.

Muitos artistas de todos os tempos – escultores, pintores, músicos e poetas – criaram as suas obras contemplando a figura da Senhora grávida. Num sermão de 1640, o padre António Vieira ensaiou uma leitura clássica da figuração geométrica do “Ó”, o círculo da perfeição.

Além da música para as antífonas, também tinha escrito, em 1998, um poema que está na p. 189 do livro “Novamente Diário” (Aveiro, 1999) e canta a Senhora “do ventre redondo”.

/ 382 /

      SENHORA DO Ó

Senhora do Ó:

teu ventre redondo e fecundo

contém a redenção do mundo.

 

Senhora do Ó:

teu seio arredondado,

morada do ser, vaso sagrado,

traz o Messias anunciado.

 

Senhora do Ó:

em teu seio escondido,

albergue de Deus e abrigo,

está o Verbo oferecido

a toda a humanidade,

em tua maternidade,

para a vida nova e salvação,

Senhora da Encarnação.

 

Senhora do Ó:

em teu corpo guardado,

conténs o Filho de Deus

desde sempre esperado

para salvação do mundo,

Senhora do ventre redondo e fecundo.

 

II. O Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares, exemplo fecundo e luminoso de dedicação à música litúrgica e sacra

Ao longo dos capítulos 13 e 14, o grupo coral litúrgico da paróquia de S. Miguel de Milheirós de Poiares, concelho de Santa Maria da Feira, é constantemente citado. O mesmo acontece neste capítulo 17 e irá ainda repetir-se / 383 / no 18, no 20 e no 21. A sua presença na minha vida e atividade litúrgica e cultural é constante, é mesmo positivamente omnipresente e avassaladora. Deu visibilidade e brilho às minhas iniciativas.

Desde o dia 15 de dezembro de 1991, em que cantou connosco em São Bernardo, na eucaristia das 11 horas, e à tarde se apresentou, juntamente com o Coral Vera Cruz e o Coro Litúrgico de São Bernardo, num concerto de Natal, até 17 de outubro de 2015, no Museu de Aveiro/Museu de Santa Joana, no lançamento do romance “Um Anjo na Cidade”.

Em 15 de dezembro de 1991, o programa foi o seguinte:

No final do concerto, os três coros executaram em conjunto, com flautas de bisel tocadas pelos meus “pequenos cantores”, o cântico “Ergue os teus olhos”, de A. F. Santos.

Em 17 de outubro de 2015, mais de 24 anos depois, o Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares voltou a estar presente, de maneira brilhante, no concerto que antecedeu a apresentação do referido livro e se realizou na Igreja de Jesus do Museu de Santa Joana.

Das obras apresentadas quero salientar as seguintes: as que têm os n.os (4) e (5) são dois trechos breves para órgão (escritos por João Gamboa) e foram executados pela organista Marília Canhoto, no órgão de tubos do coro alto da referida igreja; a n.º (7), Formosa Princesa, é o hino de quatro estrofes com que termina no romance a cantata “Os olhos de Joana”, que João Gamboa pôs em música especialmente para este concerto, no qual foi executado pela primeira vez. / 384 /

Quero agora tentar proceder ao levantamento completo de todas as intervenções corais, quer litúrgicas quer de caráter cultural, que o Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares levou a cabo, em situações ligadas ao meu percurso musical e literário.

(1) Em 15 de dezembro de 1991, o CLMP participou, pela primeira vez em São Bernardo, na eucaristia e num concerto de Natal, como acabei de indicar.

(Fica assim corrigido o que escrevo à frente, no n.º (13) – pp. 386 ss. –, no texto da intervenção que pronunciei em Milheirós de Poiares, no dia 22 de dezembro de 2012).

(2) Em 2 de julho de 1994, no auditório da Biblioteca Municipal de Aveiro, cantou na apresentação do meu livro de poesia “Invocação de Deus”.

(3) Em 26 de novembro de 1994, na Igreja da Vera Cruz, em Aveiro, cantou no Concerto espiritual “Invocação de Deus”, com poesia de Eugénio Beirão e música de João Gamboa.

Aos presentes eu disse, entre outras ideias: “A Palavra eterna de Deus e a palavra efémera do poeta confrontam-se num diálogo dinâmico e insinuante, resultando para todos – assim espero – um feliz momento de alegria espiritual, de oração e de louvor a Deus. Por outras palavras: através da poesia e da música podemos elevar-nos a Deus. É este o objetivo deste concerto espiritual. E é este o meu desejo”.

(4) Em 14 de maio de 1995, no Museu de Aveiro, no espetáculo “Poesia e Música para Santa Joana” integrado nas Festas do Município 95, o CLMP cantou com outros na grande homenagem à Padroeira da cidade, Santa Joana Princesa (cf. Cap. 14, pp. 326-331).

(5) Em 15 de fevereiro de 1998, deslocou-se a São Bernardo o CLMP e também o coro infantil e o coro juvenil – a paróquia em peso. Cantaram connosco na eucaristia e de tarde ofereceram um belo e variado concerto. Também atuaram o conjunto de metais da Escola de música da Fanfarra e o / 385 / Coral Vera Cruz. Era o Dia do Coro e inaugurámos um novo órgão. Foi dia importante.

(6) Em 16 de outubro de 1999, o CLMP deslocou-se a Peraboa, Covilhã, e, no 2.º Encontro de Naturais de Peraboa, apresentou na igreja paroquial um concerto breve com cânticos de João Gamboa e a seguir cantou na missa festiva.

(7) Em 26 de maio de 2001, na Igreja Matriz de Milheirós de Poiares, na apresentação da Música Litúrgica de João Gamboa – livro “Cânticos para a Liturgia” –, o Coro interpretou um vasto programa de cânticos, alguns associados à leitura de poemas de Eugénio Beirão.

A meio do concerto, usei da palavra e disse que aqueles cânticos que tínhamos estado a ouvir “foram compostos para a celebração da fé: o seu objetivo é, pois, ajudar e permitir às comunidades cristãs fazer a festa de Jesus Cristo, a festa da salvação, na eucaristia de cada domingo.

Mais à frente:

“Aos amigos do Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares, tão brilhantemente dirigido pela professora Clarinda Ferreira, musical e pastoralmente competente, com um trabalho muito seguro e uma dedicação digna do maior realce e admiração, onde não falta a atenção da organista Manuela Sousa e o dinamismo organizativo do Francisco Maia, a todo o coro e a todos os que leram poemas, o meu profundo agradecimento”.

(8) No dia 11 de julho de 2001, na Igreja Matriz de Cesar, o Coro de Milheirós de Poiares apresentou um concerto com bastantes cânticos litúrgicos de João Gamboa e alguns poemas de Eugénio Beirão, lidos por Albina Almeida. Mas também partituras de música sacra de compositores consagrados.

(9) Em 18 de maio de 2002, à noite, o CLMP apresentou um “concerto de música coral litúrgica”, da autoria de João Gamboa, na igreja do Seminário da Boa Nova em Valadares. Foram lidos poemas de Eugénio Beirão.  O concerto integrou-se no “Congresso da ARM”, que, sob a presidência de Serafim Fidalgo e pela primeira vez, durou dois dias (tarde de sábado, serão e manhã de domingo). O convite ao coro foi feito pelo autor, que ofereceu o concerto à ARM e aos armistas.

(10) Em 15 de dezembro de 2007, o Coro de Milheirós de Poiares apresentou / 386 / um concerto de Natal na Igreja Nova de S. Tiago de Rio Meão, cantando compositores clássicos e alguns cânticos de João Gamboa. Também foram lidos poemas de Eugénio Beirão.

(11) Em 18 de Abril de 2009, no lançamento de dois livros – “Os Dias Férteis” (poesia) e “Invenção para dois trombones e outras histórias” (contos) –, o CLMP esteve no auditório da Biblioteca Municipal de Aveiro, cantando temas litúrgicos e não litúrgicos.

(12) Em 17 de abril de 2010, no Espaço-Museu da Sé de Aveiro, na apresentação do livro “Nas asas da Liturgia e outros voos”, de João Gamboa, o CLMP cantou, em concerto breve de música sacra e litúrgica, acompanhado ao órgão por Marília Canhoto.

(13) Em 22 de dezembro de 2012, o CLMP organizou na sua igreja matriz o lançamento dos 2 CDs “Cânticos para a Liturgia”, que havia ele próprio gravado em 2010 e 2011 e tinham acabado de ser editados. E fê-lo com um belo concerto.

Pude falar e li com emoção as palavras que escrevera e aqui deixo na íntegra, tão relevantes eram para mim a circunstância e o merecimento e simpatia do gesto do Coro de Milheirós de Poiares.

Senhor padre Fernando

Dra. Clarinda Ferreira, ilustre diretora artística do Coro Litúrgico Queridos Amigos do Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares

Minhas senhoras e meus senhores, com relevo para outros cantores

Uma saudação amiga para todos e a expressão da minha alegria por estar entre vós, a que junto a minha gratidão por mais este gesto e este momento de música e cultura.

O encontro-concerto de hoje, promovido pelo Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares, encerra, ou continua, uma relação musical de mais de 18 anos entre mim e o Coro de Milheirós de Poiares, que se traduz em mais de 25 encontros, nos quais umas vezes houve um concerto e outras celebrámos a Eucaristia e realizámos um concerto.

Esta relação teve o seu início em julho de 1994, no lançamento do livro de poemas / 387 / “Invocação de Deus”, na Biblioteca Municipal de Aveiro [de facto esta foi a segunda vez!], e teve alguns momentos muito importantes, entre os quais saliento:

– Fevereiro de 1998, em S. Bernardo: Eucaristia com bênção do Órgão (eletrónico) e concerto, tendo participado também os vossos Pequenos Cantores;

– Outubro de 2000: apresentação da música do livro “Cânticos para a Liturgia”, com concerto na Igreja da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro e Eucaristia presidida pelo bispo D. António Marcelino, na Sé de Aveiro;

– Março de 2007, em S. Bernardo: Eucaristia e concerto em memória de Irene Roseira;

– Maio de 2007: Eucaristia e concerto no Encontro Nacional da ARM, no Convento de Cristo, em Tomar;

– Dezembro de 2007 a dezembro de 2008: execução do projeto “Música Litúrgica de Padre Arménio e João Gamboa”, na Igreja da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro, com os seguintes ciclos:

• Ciclo Advento-Natal, em 9 de dezembro de 2007,

• Ciclo Quaresma-Páscoa, em 9 de março de 2008,

• Ciclo Padre Arménio, em 6 de junho de 2008,

• Ciclo Tempo Comum, em 26 de outubro de 2008,

• Ciclo Nossa Senhora, em 8 de dezembro de 2008.

– 2009 e 2010, no DeCA da UA: gravação da música litúrgica guardada nestes dois CDs hoje aqui apresentados;

– Abril de 2010: concerto na Sé de Aveiro e Eucaristia em S. Bernardo, no lançamento do livro “Nas asas da Liturgia e outros voos”.

Como acabamos de ver, sempre o culto e o amor à cultura musical, com relevo e dedicada promoção da música litúrgica. Nisto temos sido cúmplices. Os CDs são disso a prova e como que a coroa e a assinatura.

Deles diz a Irmã Celeste Lopes, de Arronches, onde é responsável do canto litúrgico: “Deliciei-me a ouvir o CD. As melodias variadas e muito bem conseguidas.  Uma harmonização e execução melódica que fazem rezar e elevar para Deus. As vozes dos solistas duma afinação exata e expressiva! Apreciei muito. Muitos parabéns...”

Confesso-vos que aprendi muito com o Coro Litúrgico de Milheiros de Poiares e tenho por ele elevada consideração e estima. Penso que, com a sua diretora, a organista, os salmistas e todos os cantores, ele é exemplo luminoso daquilo que / 388 /  escrevo num texto que, não tendo tempo para ler, vos deixo para reflexão – a vós e a outros coros –, a partir da sua leitura num ensaio. (Era o ponto 1. do texto publicado nas pp. 321-323 destas memórias, “Na liturgia a música é serva, os ministros do canto também).

Agora, só dois testemunhos muito rápidos e claros.

Primeiro. O senhor Manuel da Flauta, de S. Bernardo, tinha sido flautista na Banda da Armada e havia regressado à terra. Um dia, no fim da celebração da Eucaristia, espera-me à saída e diz-me, extasiado e feliz: “Senhor Fulano, que bonito: as palavras dos cânticos a baterem certo com as palavras das leituras!”

Segundo. Era a Festa do Pai Nosso na missa paroquial e houve reunião com o senhor prior, as catequistas e eu. Relativamente aos cânticos eu disse os que havia escolhido e porquê e os que eram mais adequados às crianças e que lhes ensaiaria. Chegados ao Pai Nosso, sugeri: o senhor prior faz um convite especial a dar as mãos ou a elevá-las para o céu e cantamos o Pai Nosso, com o seu texto e melodia oficiais. Não quiseram. E defenderam um cântico das crianças após a comunhão. No dia da celebração: a homilia demorou 28 minutos e foi muito profunda e mística – as crianças e os adultos nada devem ter entendido; no momento do Pai Nosso, nenhum convite a nada e recitação a correr, que o tempo ia longo. Depois da comunhão, saiu de lá o “Pai Nosso galego”! / 389 /

O senhor Manuel da Flauta, se pudesse, partia o seu amado instrumento na cabeça daquela gente. E não era pecado! Sim, partia a flauta, que a cabeça devia ser muito dura.

Ainda uma confissão feliz: na Sé de Aveiro, por duas vezes que por lá passei nos últimos dias, ouvia-se, em fundo suave e contemplativo, a música do Advento deste CD. Graças a Deus!

Graças a Deus, também, pela celebração de 40 anos de serviço à Igreja, na sua liturgia, e aos homens, na cultura, que o grupo coral litúrgico de Milheirós de Poiares está a iniciar. Parabéns ao Coro e parabéns à Paróquia que recolhe e desfruta os frutos do seu trabalho e dedicação.

(14) Como se disse atrás (p. 377), em 26 de janeiro de 2013 o CLMP apresentou na igreja da Glória um “Concerto em favor do órgão de tubos da Sé, em construção”, e cantou na eucaristia das 19 horas.

(15) Em 17 de outubro de 2015, o CLMP cantou no lançamento do meu livro “Um anjo na cidade”, no Museu de Santa Joana, em Aveiro. Como já vimos (p. 383).

E como tive eu notícia do Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares? Através de Francisco Maia, porque conhecer este era saber da existência daquele coro. Para tanto era preciso descobrir Francisco Maia. E foi no âmbito da ARM que encontrei o Chico pelo ano de 1990. (Calma, estamos quase a chegar lá!)

A ARM – Associação Regina Mundi dos antigos alunos da Sociedade Missionária da Boa Nova acolhe os antigos candidatos ao sacerdócio missionário que estudaram naquele Instituto. Em determinada altura do percurso desistiram e seguiram outro rumo, mas a amizade mútua e o reconhecimento pela formação recebida levou-os a associarem-se e a reencontrarem-se de vez em quando, em atividades de diverso teor. Foi aí que conheci o Chico, muito mais novo que eu. Além de bom cantor era (e continua a ser) o presidente da direção do Coro e um excelente animador, dinamizador e congregador. Daí a iniciarmos esta longa e riquíssima colaboração foi um passo.

(Quanto à ARM, não espere o leitor pela demora, porque no capítulo 20 vai conhecer um pouco do que se passou por lá durante alguns anos deste século. Isto está tudo entrelaçado!) / 389 /

O Coro Litúrgico de Milheirós de Poiares (Santa Maria da Feira) foi fundado em 1972, anima as celebrações dominicais da sua paróquia e tem um ensaio semanal de duas horas. O seu currículo é vastíssimo e muito variado – desde a música litúrgica de qualidade à música sacra, acompanhada com órgão ou orquestra e a capella, em contexto celebrativo do culto e em situação de concerto.

A dra. Clarinda Perestrelo Ferreira é a diretora artística do coro desde a sua fundação. Diplomada com o Curso Superior de Piano pelo Conservatório de Música do Porto, é também licenciada com o curso de Complemento de Formação no Ensino de Música do Instituto Piaget de Canelas, Gaia, sendo professora de Educação Musical. Na sua paróquia tem desenvolvido um notável trabalho pastoral no domínio da música litúrgica, sendo responsável também por uma escola de música para crianças e um coro litúrgico infantil.

Sempre ligada às orientações e beneficiando do grande dinamismo do Serviço de Música Litúrgica da diocese do Porto.

Seja-me permitido mais um aparte, e breve, relativo a São Bernardo. Nos anos de 1994 e seguintes apoiei (também monetariamente) três jovens, que tinham sido “pequenos cantores” e estavam no Coro Litúrgico, na frequência do Curso de Música Litúrgica da diocese de Aveiro. Foram elas: Sara Simaria (só um ano), Maria Margarida de Jesus e Susana Maria Rebelo Ferreira. Nenhuma completou o curso, mas as duas últimas continuam ativas na paróquia. Susana Ferreira levou mais longe o esforço e por 2011 voltou a estudar órgão com a professora Celina Martins, durante dois anos. E tem sido a organista do coro que eu dirijo, tendo sucedido a d. Irene Roseira, quando esta se afastou.

 

III. “A propósito do órgão de tubos da Sé, em construção”

Sob este título, publiquei no semanário diocesano “Correio do Vouga”, em 6 de março de 2013, p. 21, e na semana seguinte, 13 de março, p. 20, dois textos à volta dos órgãos de tubos da Sé – o histórico, de 1754, e o novo, nessa altura em construção, e que veio a ser benzido e proporcionou o concerto inaugural em 12 de julho do mesmo ano de 2013. / 391 /

São esses dois textos que aqui ficam, o primeiro deles em segunda republicação.

(1) Órgão de tubos emudecido

Ninguém acende uma luz debaixo da mesa ou no canto da sala, junto ao chão. Não iluminaria os convivas e não pouparia energia aos donos da casa se esse fosse o objetivo; antes roubaria brilho à festa, ao mesmo tempo que era sinal de rematada insensatez.

Também não escreve o poeta o seu poema para ficar olvidado na gaveta, a vida inteira; nem o pintor joga e combina as cores no seu quadro para o deixar à mercê do pó e da humidade, no fundo da oficina. Também o compositor não escreve a sinfonia, o concerto ou a canção, para ficar embalsamada e morta, florida embora, na partitura, mas para dela ser erguida pela arte dos músicos e tornada deleite para os melómanos. Do mesmo modo, a obra dramática só vale a pena ter sido escrita quando é recriada pelos atores sobre o palco e assim diverte, sugere, ensina, critica, comove.

Mas aquele órgão de tubos, naquele templo belo e luminoso, é candelabro que não ajuda à festa, porque está apagado e não há quem o acenda; é poema que não encanta nem comove, porque ninguém o diz; é tela que a ninguém enche os olhos, porque está coberta de teias de aranha, virada para a parede; é partitura de tocata, tento ou fuga que não se toma “magnificat” nem “alleluia”, porque nenhum organista a arranca ao olvido e a faz ressoar jubilosamente; é obra de teatro que nenhum público aplaudirá, porque não há grupo que a leve à cena.

Quem se lembraria de cirurgicamente roubar ao rouxinol a possibilidade de cantar tão melodiosamente nas balsas e salgueirais? Ou quem se atreveria a cortar as asas à águia para não subir às alturas e voar magnificamente no azul, acima das montanhas? Ou, ainda, quem poluiria, por desleixo, o riacho, matando toda a vida que nele cantasse um hino ao Criador e sujando a limpidez da sua corrente?

Ou quem castraria o pavão para que não ostentasse e não seduzisse a fêmea com o leque aberto e deslumbrante da sua plumagem magnífica?

Ninguém faria nada disto e fazê-lo seria tomado, provavelmente, por um ato inqualificável, um ato de loucura, um ato criminoso. Ou não?!

Mas aquele órgão de tubos, naquela igreja acolhedora, é rouxinol silenciado / 392 / que a ninguém deleita os ouvidos e o coração com o seu cantar; é águia de asas cortadas que não nos leva até à morada de Deus, na montanha misteriosa azulviolácea; é rio enegrecido e sem vida que não proclama as maravilhas da criação nem oferece ao viajante cansado a frescura da sua água cristalina para deliciar os olhos e matar a sede; é beleza escondida que não se vê e não aproveita a ninguém, impedida de facilitar a resposta dos homens à mensagem e à sedução de Deus...

Furtar uma obra de arte à fruição dos homens é um ato grave. Impedir um ser vivo de o ser em toda a sua plenitude relativa e de exercer a função para que foi criado, é um crime grave de leso-Criador.

Aquele órgão de tubos sem voz retalha-me a alma. Porque está esvaziado do seu ministério. Foi construído para ajudar a assembleia dos crentes a louvar o seu Senhor, e está ali desprezado, esquecido, morto. Foi feito para ajudar a elevar até Deus os sentimentos dos homens ávidos do Bem e do Belo, e jaz ali inútil e triste.

Aquele órgão de tubos emudecidos corta-me o coração e faz-me chorar. É como Sexta-feira da Paixão vista sem a luz da Fé. Ou como uma boda de casamento comida em silêncio e sem rir.

Aquele órgão de tubos não canta, não aplaude, não implora, não pede perdão, não contempla, não pacifica, não exorta, não rejubila, não louva, não aclama, não exalta, não celebra.

(Publicado em "O Aveiro", Ano 3, N.° 108, 16 setembro 1993, p. 3, e republicado em “Ecos & Miragens, Crónicas”, Aveiro, 2009, pp. 107-109)

 

(2) O ÓRGÃO DE TUBOS DESEJADO

Está ali, incrustado na parede e meio suspenso, há muitos anos. E reduzido ao silêncio, apesar da bela fachada. Como um colorido mas embalsamado pintassilgo. Ou como um rouxinol triste, emudecido dos seus gorjeios e cantares.

Nas minhas insónias, às vezes surpreende-me com os seus desabafos.

– Estou aqui esquecido e desprezado, sem voz para cantar. As pessoas que são daqui já nem olham para mim; sabem que não canto e não me ligam. Os que vêm de fora olham-me com enlevo, admiram o meu rosto, que dizem ser belo, e imaginam o júbilo e o deslumbramento do meu canto. Enganam-se, coitados. Mas eu não tenho culpa. / 393 /

– Pois não! – apoio eu, oferecendo-lhe algum consolo, mas sem estar seguro de que ele me oiça, pois imagino que, se já não tem voz, também terá perdido o ouvido.

É já bastante velho – tem mais de 250 anos – o velho órgão histórico da Igreja de Nossa Senhora da Glória, pois data de 1754. Colocado sobre as duas portas góticas reconstruídas em 1976, que dão passagem para a sacristia atual, teve anteriormente outras localizações e está ali desde essa data. Sofreu grande remodelação em 1883, que o beneficiou e lhe conferiu um som brilhante. Em 1976 foi totalmente revisto e bastante enriquecido.

O fole manual foi substituído por turboinsuflador; recebeu três meios-jogos de madeira: bordão-aberto, de dezasseis pés, flauta doce, de oito pés, e flautado, de quatro pés; e foi-lhe aplicado um segundo teclado, ficando provido de um tutti e órgão positivo. Lembro-lhe esta sua história e sabe o leitor o que me diz?

– Sofri muito ao longo da minha vida. Mudaram-me de local, intervieram no meu organismo aplicando-me próteses, dotaram-me de novas cordas vocais, modernizaram o meu funcionamento... Tudo aceitei com um único objetivo: cantar melhor, para melhor louvar o Criador e melhor sustentar o canto do povo crente.

Digo-lhe que, de facto, muitas gerações de fiéis beneficiaram da sua beleza sonora e com a sua ajuda elevaram o coração e a voz em festa ao Senhor.

– É verdade! E sinto-me muito feliz por isso – responde-me, entusiasmado.

– O período de que melhor me lembro são os anos a seguir a 1976. O templo foi ampliado e ficou muito belo. Muito cantei nesses anos, muitas mãos me tocaram e eu exultei e fiz exultar de alegria. A catedral de Aveiro renovada era uma primavera branca de flores e aleluias pascais. / 394 /

– Agora está aí, jubilado, tendo já ganho direito ao descanso – acrescento, a sossegá-lo.

– Talvez, pois parece ser essa a vontade dos homens.

– De facto, os entendidos optaram por não o restaurar e decidiram-se por um órgão novo, moderno, construído de raiz, mais capaz de servir esta bela casa de Deus.

– Eu sei... Aqui do meu canto vou observando tudo e estou a par do que se passa. Já vejo, além, o esboço da face do meu sucessor. E promete!

– E não está magoado?

– Claro que não. Até rejubilo. Anseio mesmo pelo dia em que ele se apresentará em todo o seu esplendor sonoro. Nesse dia, cantarei com ele, no meu íntimo e em silêncio...

Fiquei satisfeito com este desfecho. Uma grande alma dá sempre lugar a outra grande alma.

E esse dia já não está longe, é daqui a menos de cinco meses. Até lá cumprem-se as etapas previstas e os nossos corações vão aumentando de expetativa e curiosidade. Sobretudo vão aumentando no amor ao órgão de tubos, por tudo o que ele significa e representa e por tudo o que ele vai ser para a Liturgia e para a Cultura em Aveiro, alimentando a espiritualidade de muita gente.

O órgão de tubos é o instrumento musical que em si concentra mais vozes e cores sonoras, indo da  mais celestial suavidade à mais poderosa, imponente e arrebatadora força sonora.

O seu rosto, a sua fachada é sempre artística e às vezes majestosa. A cara deixa entrever a riqueza do coração.

Mais que todos os outros instrumentos, o órgão de tubos é ressonância de toda a Criação. O reino mineral está presente nos tubos de estanho, de cobre (e às vezes de prata e ouro); o reino vegetal marca presença nos tubos de madeira feitos das árvores da floresta (algumas muito raras e preciosas); o reino animal manifesta-se e associa-se nas peles dos foles, que são os pulmões do órgão. O órgão de tubos é, portanto, um instrumento cósmico. Ele canta, em nome de toda a Criação, em nome do Cosmos, o grande hino de louvor, o grande magnificat ao Criador.

Por tudo isto, a Igreja dá-lhe lugar de relevo na Liturgia.

 
 

 

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