Memórias Entrelaçadas

   

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OS ANOS DA ESCOLA

PRIMÁRIA,

UMA INFÂNCIA FELIZ


Brincadeiras infantis – Na escola primária e algumas recordações – O fascínio da cidade – O exame da quarta classe – Os trabalhos agrícolas – Criatividade e “aventura” infantil – A matação – O Natal e a Páscoa – Primeira Comunhão e a banda de música – Os animais domésticos de trabalho – A cabra – A caçada de pássaros.


Foi nesta casa, assim progressiva e persistentemente aumentada e melhorada, que eu cresci com os meus irmãos.

Antes de ir para a escola, lembro-me de algumas brincadeiras que eu e o meu irmão Lele levávamos a cabo enquanto os nossos pais iam muito cedo trabalhar para as terras. Deitávamos cada um a sua cadeira no chão que empurrávamos como se fosse um carro, entre gritos de contentamento e aceleração… Brrum, Brrum! Brrum, Brrum!

Outra maneira criativa de passar o tempo era pegar em tachos e, batendo-os com uma colher, percutíamos a nossa bateria, enquanto marchávamos garbosamente pela casa. Ou então empoleirávamo-nos sobre as cadeiras encostadas à janela fechada que dava para a estrada e lançávamos os nossos ritmos para a rua. / 24 /

Os anos da escola primária, uma infância feliz  A Escola situava-se em São Marcos (o edifício tinha sido a capela de São Marcos), a cerca de um quilómetro da nossa casa, praticamente fora da povoação, para lá da padaria, no caminho para o Mineral (zona onde havia minas de exploração de volfrâmio no tempo da Guerra 39-45). Um casal de professores ensinava as quatro classes. Era o professor Ravasco e a esposa, D. Maria de São José.

Em outubro de 1946 é que eu entrei. E fiz uma escolaridade normal, sem percalços, certamente feliz. Lembro-me de dois ou três episódios que recordo. Um deles deu origem ao conto “Uma dentada no nariz”, publicado no livro “Invenção para dois trombones e outras histórias”, de 2009, pp. 25-26. Essa história foi escrita e publicada em jornal em 1992, tinha por título “Viagem à infância” e só a cena dos ninhos e a dentada no nariz do Laurentino é que são verdadeiras… O Laurentino emigrou para França, mais tarde, e soube, há anos, que passa em Peraboa algumas temporadas. Nunca mais o vi. Boa saúde, Laurentino!

Mas posteriormente à redação deste passo visitei-o na sua quinta no Panasco. Foi em agosto de 2013. Conversámos um pouco, contei-lhe a história do conto e depois enviei-lhe o livro pelo correio. O mundo dele é outro e não vi grande interesse. Passaram 63 anos sobre a saída da escola primária e nunca mais nos tínhamos visto. A mulher manifestou outra capacidade de receção. É francesa e lia um livro, o que denota outra maneira de estar na vida. Julgo que terá lido o conto.

Aproveito para evocar outros colegas. O Luís “Pedreiro”, em primeiro lugar, que sempre se manteve em Peraboa e foi negociante (de batata, queijo e outros produtos). O José do Nascimento (o Zé Pico do tempo da infância e adolescência), que também emigrou para França e, depois do regresso há bastantes anos, tem sido o presidente da Junta de Freguesia, onde está de pedra e cal. E o Manuel do Nascimento, que compareceu no segundo Encontro de Naturais de Peraboa, em 2000, e eu reconheci com facilidade, apesar de nunca mais o ter visto. Trabalhou nas Finanças, na Covilhã.

O outro episódio consistiu em espetar um lápis na palma da mão de um colega, em qualquer zanga. Não lhe furei a mão, mas certamente o bico do lápis partiu-se e alguma mossa lá ficou.

Lembro-me também que um dia, numa cópia, ao escrever o nome do / 25 / nosso grande almirante Gago Coutinho, ou por aselhice ou por influência do C de Coutinho, o que gravei no papel foi Cago Coutinho. Este fenómeno de contaminação ainda hoje me acontece – escrever ou dizer uma palavra ou letra que está próxima ou em que estou a pensar.

O jogo que mais jogávamos nos recreios era o pião. Mas também o botão, o berlinde… e outros, certamente. Escachar a coroa dum pião era a suprema vitória.

A escola tinha duas salas: numa estavam as meninas com a professora Maria de São José; na outra, os rapazes com o professor Ravasco. Os professores às vezes trocavam.

A poente ficava a serra da Estrela, lá longe, imponente, e a vista que se tinha dali era soberba, com o casario branco da cidade espraiando-se pela encosta. Muitas vezes, ao longo da vida e de outros locais de Peraboa, gozei esta visão contemplativa que ainda hoje
me enche o olhar e a alma…

Cito o que escrevi em 5 de outubro de 1998 (“Novamente Diário”, Autor, Aveiro, 1999, p. 164).

Vir à cidade era uma miragem, um sonho que muito dificilmente se concretizava. Vinha-se de carroça, de cavalo ou de burro. Carro de praça ainda não havia; nem carreira. E a cidade metia-se pelos olhos dentro, vista de Peraboa. Era (como hoje) uma mancha branca na encosta da serra, um apelo insistente aos desejos e curiosidade das crianças. À noite, iluminada, transformava-se num presépio, as luzes incansavelmente a piscar os olhos. Ainda por cima, da escola primária de então, sem obstáculos interpostos, parecia que era logo ali e se agarrava com a mão. / 26 /

Um dia fui à cidade não pelo olhar, acompanhei o meu Pai em ida ao mercado e fomos pelo caminho do rio. A burra levava dois sacos de batatas para vender. Saímos cedo e a travessia do rio não foi nada fácil, porque a corrente era forte. Eu tive de subir para cima da carga…

Nas últimas semanas do ano letivo, após o horário escolar, os alunos da quarta classe tinham um acréscimo de apoio para se prepararem melhor para o exame final e para a admissão ao liceu ou à escola técnica, aqueles (raríssimos) que pretendessem continuar a estudar. Esta atividade já não era na escola mas em casa dos próprios professores, que moravam numa casa que ainda existe, às Oliveiras, hoje rua da Igreja.

O exame da quarta classe era feito na sede do concelho, na Covilhã, portanto, na chamada Escola Central. O exame era qualquer coisa de importante. Até se podia estrear um fato, imagine-se! Nervoso devia haver muito, mas sei que me saí bem, apesar da grande exigência e rigor que havia nessa altura. Aprovado “com distinção” foi o resultado! E sei-o ainda hoje porque em 1969, quando tirei a carta de condução, foi o diploma da quarta classe
que entreguei para o processo.

Durante os quatro anos de escola cresci muito – fisicamente e ao nível dos conhecimentos, do desenvolvimento social, da criatividade… Acompanhei os meus pais nas atividades agrícolas, sobretudo nas férias grandes, que eram três meses. Tocava a burra ou o macho à pontaria, regava, sachava e mondava, ia com o meu Pai ao mato, cortava erva e apanhava milho para os animais, deitava-lhes de comer, apanhava batatas, arrancava feijoeiros, cortava as canas (as bandeiras) do milho, descamisava as maçarocas, participava e ajudava na malha do centeio e do milho, conduzia os animais a lavrar com o arado… Fazia milhentas coisas da vida de agricultor.

Mas também brincava e engendrava engenhocas para brincar. Uma delas era uma espécie de avião, pelo menos assim lhe chamava. Ou seria uma ventoinha? Num carro de linhas espetava dois pregos sem cabeça; nesses pregos entrava, por dois orifícios, uma lata em forma de hélice, com cerca de 12 centímetros de comprimento e três de largura, com os extremos arredondados e levemente inclinados em sentido contrário; no tubo do carro de linhas entrava um pau que mantinha na mão esquerda e segurava por baixo; / 27 / um cordão como o dos piões enrolado à volta do carrinho era puxado e desenrolado, num golpe rápido, e a hélice voava, deliciando o garoto, enquanto se ouvia o zunir próprio.

(Irra! Que é mais difícil descrever do que fazer!!)

Julgo que nunca cortei a cabeça ou uma orelha a ninguém… Mas era perigoso!

Já não era perigoso o arco conduzido com o auxílio da gancheta, outra maneira de brincar que também utilizei.

Um dia, encontrei na loja um cartucho de papel com o interior enfarinhado com um pó cor-de-rosa, restos da tinta com que a casa tinha sido pintada por fora. E enfarinhei também os braços. O meu Pai é que não gostou e chegou-me a roupa ao pelo. Pelos vistos foi a sério, porque me lembro ainda de berrar que me ia deitar a um poço que havia ali a cem metros.

Outra vez, já por maio ou junho, no fim da escola, à tarde, andei aos ninhos num olival. Cheguei a casa tarde, mas com um passarito nas mãos como troféu. A minha Mãe castigou-me e, na refrega, a avezita morreu por asfixia no bolso das calças, onde a havia resguardado.

Procurar ninhos, correr atrás de passaritos que já voavam e apanhá-los – era aventura que me enchia de felicidade e significava destreza e crescimento.

Com o meu irmão Lele, treze meses mais novo que eu, fui um domingo para a Quinta do Pereiro, a três quilómetros, e corremos montes e vales, revestidos de mato e pinheiros rasteiros, atrás dos pássaros. Sem nada nas mãos nem nos bolsos, com as marcas das estevas na roupa e nas mãos e cansados, regressámos a casa pelo lusco-fusco. A três centenas de metros de casa, cruzámo-nos com o meu Pai, que ia à fonte, mas passando para o lado oposto da estrada. (A fonte era uma mina com uma água excecional onde a gente do cimo do povo se abastecia). O meu Pai deve ter-nos dito que já ia ajustar contas connosco. Que fiz eu? Entrei em casa silencioso, fiz-me de doente e fui enfiar-me na cama…
Creio que não cheguei a tomar o prometido chá, que, aliás, era desnecessário para a indisposição… Mas da rabecada não me livrei.

Estes anos da infância foram importantes para a minha formação e crescimento. Ao nível da escola nem se discute, mas também no seio da família. Se da escola pouco recordo para além dos episódios que já relatei, o que é / 28 / muito de admirar, das vivências, descobertas e experiências na família há muito a esmiuçar.

Um dos acontecimentos da vida familiar que mais ficou marcado em mim foi a matação. A matação era uma festa, uma grande festa, e acontecia nos meses de inverno. Engordado o porco e chegado o dia, compareciam logo de manhã os convidados, que eram alguns tios e tias. O porco era deitado sobre um carro de bois, bem seguro pelas patas por três ou quatro homens, e o matador espetava-lhe a faca no pescoço. O sangue a esguichar era aparado num alguidar por uma mulher que o mexia com uma colher de pau para não coagular. Esta cena cruel e com o porco a grunhir de aflição impressionava-me muito. Mas tinha de ser! Como mais tarde, já adulto, eu próprio a matar coelhos mansos. Segurava-os pelas patas posteriores com a mão esquerda e vibrava-lhes pancadas na nuca com a mão direita ou com um pau…

Não vou contar como tudo decorria. Isso pode ser lido no Apêndice. Vou só dizer que o dia da matação era para mim um dia fabuloso e vivido em sobressalto e com alegria. Como era excitante ver os homens a chamuscar e a lavar o porco, a pendurá-lo, a abri-lo e a tirar as tripas e a fressura. Ver as mulheres a lavar as tripas. E o labirinto por toda a casa, sobretudo na cozinha: tachos e panelas, alguidares, lenha para o lume, o fazer das morcelas, no primeiro dia à tarde… A desmancha no dia seguinte era uma operação já mais calma e com menos gente, quase só os da casa. Assim como o fazer o enchido (as chouriças, as farinheiras e os mouros), nos dias seguintes.

Momentos ardente e infantilmente desejados eram os das refeições, com mais de uma dúzia de pessoas à volta da mesa. Sopa de grãos, grãos guisados, com carne do porco velho (se ainda houvesse) ou bacalhau. Mas também podia ser batatas cozidas com soventre e fígado já do porco novo. Isto / 29 / ao almoço, porque ao jantar era canja e arroz com coelho ou galinha. E já se provavam as morcelas, de que eu gostava (e gosto) muito.

Nos momentos livres, e enquanto a Mãe e as tias trabalhavam na cozinha, os homens jogavam o fito ou mesmo a malha, na rua, se o tempo o permitia; se chovesse, entretinham-se a jogar as cartas, abrigados em casa. Ou mesmo o rapa a feijões. E iam beberricando, enquanto mastigavam algum figo seco, enfarinhado do saco onde estavam guardados. As festas do Natal e da Páscoa eram também muito importantes, do ponto de vista religioso e na sua vertente social.

No Natal, o nascimento do Menino Jesus enchia os meus olhos, a minha cabeça e o meu coração. Na tarde do dia 24, a minha Mãe preparava a massa para as “filhoses” que se fritavam ao princípio da noite. O fintar da massa era uma operação que eu associava ao chocar dos ovos pela galinha: passado o tempo necessário, a massa estava pronta para fritar as “filhoses” e os pintos furavam a casca do ovo e saltavam para a vida exterior. Ambos nasciam pelo poder e do seio do calor. O fritar era um regalo para os olhos: o azeite louro a ferver, a massa da filhós a ser nele introduzida e o estrelejar estridente que se seguia era uma refrega da qual saía, depois, a filhós loura e deslumbrante, a pedir “comam-me!, comam-me!”

A ceia era batatas com couves e bacalhau. Devo lembrar aqui, a quem isto lê, que esses tempos eram difíceis. Vivia-se ainda a penúria do pós-guerra 39-45, com o racionamento dos bens de primeira necessidade. Os agricultores (o lavrador era um agricultor mais abastado), como era o caso dos meus pais, tinham batatas, feijão e os legumes da época, mas não tinham dinheiro, nem carne, nem peixe. Esses eram alimentos escassos. Por isso matavam o porco e tinham galinhas e coelhos, estes mais raramente. A consoada era, portanto, mais simples mas tinha calor e era familiar. Depois ia-se à Missa do Galo a estontear de sono, e beijava-se o Menino Jesus. Quando havia coragem para tanto, é claro, que o frio e o gelo eram de fazer arrepiar e congelar.

Antes de ir para a cama colocava-se o sapato junto à pilheira e, no dia seguinte, em alvoroço, íamos ver o que o Menino Jesus nos tinha posto. Coisa simples e pobre, certamente, como pobres éramos todos – Ele e nós. E lá estavam umas meias ou outra peça de roupa; ou até um brinquedo, coisa mais rara: um carro de lata, um pião… Eu sei lá o quê!
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O madeiro era, nesse tempo, um acontecimento e condimento imprescindível do Natal. De castanheiro ou carvalho, enorme, às vezes vários troncos sobrepostos para ser maior, ardia na Praça, fogueira esfusiante de luz e braseiro. À volta, conviviam os mais jovens e os homens feitos, gozando o calor fraterno do espírito de Natal.

Para o povo, o calor simbolizava o aquecer do Menino Jesus, nascido no gelo das noites de dezembro.

A Páscoa coincidia (coincide sempre) com a ressurreição da terra: era a festa da Ressurreição gloriosa de Cristo e era o renovo da natureza. Os rebentos das árvores e dos arbustos, as flores que por todo o lado, nos campos e nos jardins, se iam abrindo para o sol e para a vida, os perfumes que delas se exalavam e nos inundavam as narinas, o chilreio dos pássaros – tudo isto eram os sinais palpáveis da Ressurreição e da Páscoa. Seria por esta razão que o povo lhe chamava a “festa de flores”?

Não me lembro da vivência litúrgica da Páscoa; recordo-me bem da visita pascal. Ela convocava a presença alegre, barulhenta e corrida da garotada. E lá íamos nós, em bando de vinte ou trinta, atrás da Cruz florida, enquanto a campainha, à frente do cortejo, repicava, repicava… Não era só o sentido festivo da Ressurreição que nos impelia a ir; era também o chamariz dos rebuçados, das amêndoas e mesmo das moedas que em muitas casas nos atiravam.

Na casa dos meus Pais estou a ver a cena: o senhor prior entrava, acolhido pelo meu Pai que o conduzia para a sala, saudava a família, aspergia os presentes com água benta, rezava uma breve oração pascal e todos beijavam a Cruz, enquanto um mordomo recolhia o folar, algumas moedas envoltas em flores brancas colocadas num pires de vidro.

Isto era no povo. Nas quintas da serra era o mesmo alvoroço e correria, o mesmo júbilo. Mas já éramos menos, quase só os que tínhamos por lá algum familiar. / 31 /  Eu tinha a tia Maria José da “Serra” e o tio Manuel da “Serra” (o tio Manuel Nunes de Abreu). Havia, porém, outros atrativos. Era preciso subir e descer colinas, saltar cômoros e levadas de água, atravessar ribeiros… E comia-se galula, as flores dos marmeleiros que abundavam por todo o lado.

Também havia bolos próprios da Páscoa e a minha Mãe sempre os fazia. Eram os borrachos (assim chamados porque levam vinho branco, jeropiga ou aguardente), os esquecidos, os biscoitos e os bornatos.

Havia mais uma festa em que estes bolos eram (e continuam a ser) o sinal gastronómico que traduz essa comunhão fraternal que existe nas festas com caráter mais social como é a Páscoa, com a sua visita pascal. Refiro-me à “Festa do Santíssimo”, a celebração do Corpo de Deus, no mês de maio.

É nesta festa que se faz a Primeira Comunhão – Comunhão Solene naquele tempo.

O que desejo aqui recordar é exatamente a minha Primeira Comunhão. Deve ter sido em 1948 (ou 1947). Frequentei a Doutrina ao mesmo tempo que a Escola e no terceiro ano comunguei o Pão eucarístico pela primeira vez. Lembro-me que os meninos púnhamos, nesse dia, na manga esquerda do casaco, um laço de cor branca, pendente, com um sinal eucarístico (um cálice e hóstia, certamente).

Uma banda de música vinha tocar durante a Missa e na procissão eucarística, que continua a realizar-se com grande solenidade. A Música, como o povo dizia na altura, dava um concerto no centro da povoação, na Praça. Eu ia ver e ouvir. Quando um mordomo anunciava “Agora a Musca vai comer”, eu olhava para aqueles instrumentos de metal a brilhar, com bocas enormes no fim do tubo, a campana, que sei hoje serem a trompete, o trombone, a trompa e a tuba, sobretudo a bocarra medonha da tuba, e pensava: “Muito vai comer a Musca! Grandes comilões!” E imaginava as pessoas a meterem comida pela bocarra voraz dos instrumentos! / 32 /

Outras festas havia, como o Entrudo e as Fogueiras de São João e São Pedro que eu conheci e nas quais participei. E também atividades agrícolas em que trabalhei à minha medida e que ainda não referi. É o caso do fabrico do pão, da ceifa e da malha, da colheita da azeitona e do fazer do azeite.

Remeto o leitor interessado para o Apêndice e vou terminar este capítulo com uma referência aos animais domésticos de trabalho que o meu Pai tinha e evoquei no livro “Beira: Um rosto interior”, Autor, Covilhã, 1999, p. 55.

Choro os dias de menino,
choro os montes que deixei,
as árvores, a burra e a cabra,
bezerros que então toquei.

Sempre o meu Pai teve uma burra ou um macho, para nos transportarmos e transportar cargas. Era um perigo um destes animais espantar-se e nós cairmos. Ainda me lembro de um trambolhão que dei um dia e do braço e cotovelo todo esfolado…

Também tinha um ou dois bezerros: engordava-os, iam crescendo e depois vendia-os, fazendo dinheiro. Quando já maiores, faziam parelha com a burra e puxavam o carro de bois e o arado na lavra das terras.

Durante alguns anos houve também uma cabra. Era preta. Que maravilha vê-la com as tetas cheias de leite, com grande amojo, quase a arrastar pelo chão! Recordo-a aqui no texto que escrevi em 11 de junho de 1999 (“Novamente Diário”, Autor, Aveiro, 1999, p. 42).

A cabra que os meus pais tinham quando eu era pequeno – o pêlo negríssimo e, por cima, um ligeiro tom cor de mel – dava leite muito branco, tão branco como a neve no alto da Estrela e como aquela que um dia, ao acordar, cercava a casa a toda a volta e cobria os montes. / 33 /

Era o meu pai que a mungia – a minha mãe não era ágil para tal – apertando-lhe as enormes tetas em bico e fazendo esguichar o leite quente, em fio fumegante e tenso, que cantava ao cair na vasilha.

O leite dava para bebermos todos e ainda para um queijo de vez em quando. Era a minha mãe que o fabricava, com suas mãos habilidosas e dedos entendidos em trabalhos finos. Mas todos o comíamos, às talhadas, ainda fresco, dentro de duas fatias de pão centeio.

Eu, às vezes, pedia mais queijo para acabar o pão, tão saboroso e suave ele era.

Não me lembro do nome da cabra. E também não me lembro de me ter marrado alguma vez. Mas ao meu pai marrou, a cabrona!

Um passatempo que muito apreciava, nos meses de verão – julho, agosto e setembro –, era apanhar pássaros nos costis. O costil é uma armadilha feita de arame para caçar pássaros. O dicionário só regista costela e costilha (do espanhol costilla). Costil é talvez uma simplificação de costilha.

Como engodo ou chamariz usava formigas com asas, a que chamávamos aúdias, carneiros do milho (larvas de inseto) ou grilos. E onde armava os costis? Ou no chão, levemente enterrados na terra, com as asas das aúdias a brilhar à flor da terra, viradas para um poiso, estaca espetada na terra ou árvore onde via que os pássaros costumavam estar; ou colocados sobre uma pernada de figueira, onde abundavam os moreiros, que, alimentando-se de amoras das silvas, também comiam figos. De vez em quando, talvez de hora a hora, largava a tarefa agrícola em que acompanhava os meus Pais e dava a volta pelos costis armados: recolhia os pássaros que já tinham “caído” e deixava os costis novamente armados. Ao fim do dia chegava a ter vinte a trinta pássaros – tralhões, rabitas, tanjasnos, picanços, moreiros; e rouxinóis, que apanhava nos ribeiros. Enfiava-os num cordel que pendurava no cinto das calças e ostentava, vaidoso, como os caçadores. Até jurava que me tinha visto assim numa fotografia! Mas a fotografia nunca apareceu e não posso aqui reproduzi-la.

Destino da caçada: depenava os pássaros e a minha Mãe fazia com eles uma arrozada para a família.

Pratiquei um outro tipo de caçada – a da perdiz. Achado o ninho e identificado / 34 / o túnel no meio das ervas por onde a perdiz entrava e saía, era só fazer uma trança com crinas da cauda do bezerro ou da burra e armar o laço com a largura do túnel, fixando a outra ponta de maneira segura. A perdiz entrava e o laço apertava-lhe o pescoço, tanto mais quanto mais ela puxava... E asfixiava. Uma vez, quando fui ver o resultado, a perdiz estava morta e já um pouco comida talvez por um gato duma quinta vizinha.

Com as perdizes até tinha uma boa relação e alguma cumplicidade. Cantava-lhes imitando a sua “voz” e elas respondiam-me.

E a perdiz
quando fala diz:
prri, pi, pi, piz;
prri, pi, pi, piz.

(Eugénio Beirão,
Beira: Um rosto interior, Covilhã, Autor, 1999, p. 28).


Era isto na Portela. Os pássaros apanhava-os no Panasco. Hoje ainda imito o cantar da perdiz. Os meus netos riem-se e alguns tentam imitar e conseguem algum sucesso.

 

O LIVRO

DA PRIMEIRA CLASSE

Era esta a única página de que tinha alguma memória.

 

 

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