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9.
Os Dias Férteis (abril 2009)
(1) No auditório da
Biblioteca Municipal de Aveiro Na introdução a este
livro declaro que a sua matéria predominante é a “fecundidade e a
felicidade do tempo que me foi dado viver, a solo ou com outros, às vezes os
dias com data marcada”, porque “os dias fecundos é que vale a pena dizer” e
“cantar” (p. 10).
Foi a professora da UA
Idália Sá-Chaves que fez a sua apresentação, no dia 18 de abril de
2009, na Biblioteca Municipal de Aveiro. É esse um texto de que gosto muito, com
uma análise muito sábia, apurada e cheia de fina sensibilidade, que pode
ser lido no meu livro “As Palavras em Mão – Apontamentos de Literatura”, 2011,
pp. 263-276.
Houve dois momentos
musicais proporcionados pelo Coro de Milheirós de Poiares, dirigido
por Clarinda Ferreira e acompanhado ao órgão por Marília Canhoto.
|
Capa e ilustrações:
Sara Bandarra
Apresentação:
Idália Sá-Chaves
Armor Pires Mota
Leitura: António
Morais
Música: Coro
Litúrgico de Milheirós de Poiares
Órgão − Marília
Canhoto
|
No primeiro momento, o
coro cantou o poema da p. 43, Em meus dias, musicado por João
Gamboa, que Armor Pires Mota diz ter “muita cadência” e “um sabor à nau
catrineta”.
Em meus dias gozo a
vida,
toda de flores lavrada.
Minha vida é barca nova
e navega emproada.
/ 429 /
Lá vai ela sobre o mar,
lá vai, lá vai
guarnecida.
Leva rosas e
transborda.
Vai segura e contida.
São frágeis as minhas
horas,
suspensas das mãos do
vento.
Mas na barca há
cantares,
sons e sonhos que eu
invento.
Os meus dias são tão
férteis!
– cabe neles toda a
vida –,
frágeis como barca
velha
no mar andando perdida.
Barca velha, barca
nova,
vida de sal e tormenta.
Minha vida se desdobra,
de luz e cor se
alimenta.
O coro cantou também
“Maria do mar” (do livro “Poemas Aveirenses”, 1997, p. 22), com
música de Carlos Firmino.
No segundo momento,
executou três peças de João Gamboa, duas litúrgicas e uma religiosa, esta é
o poema da p. 122 deste livro, “Fala-nos ao coração, Senhor”.
Antes deste segundo
momento de música, que encerrou a sessão, pronunciei as seguintes palavras:
LANÇAMENTO DOS LIVROS
Os Dias Férteis
Invenção para dois
trombones e outras histórias
Quem escreve quer
publicar. Quem publica quer ser lido. Quem lê desfruta, pensa e reflete. Quem
reflete toma contacto com o pensamento do outro e confronta,
/
429 /
compara. Quem
comenta acrescenta alguma coisa, ilumina, abre pistas e caminhos. Por outras
palawas: quem edita expõe-se à apreciação do leitor, quer dialogar com ele,
suscita discussão.
No meu caso concreto,
escrevo e edito para fruir e para dar a fruir. Pode parecer petulância e vaidade da
minha parte, mas gosto que o leitor seja feliz ao ler-me. É verdade! E, se o
leitor é feliz, eu sinto-me bem, também sou feliz.
Queridos amigos,
agradeço a vossa presença e amizade. Foi em outubro de 99 a última vez que
aqui nos encontrámos; passaram quase dez anos. Mas deixo-vos já o convite para outubro próximo. Será um livro de crónicas. Para o tempo a seguir se verá, mas
projeto voltarmos aqui também em 2010 e 2011.
Quero agradecer ainda
aos ilustres e admirados artistas e amigos: Sara Bandarra e Tânia Sardinha, que
ilustraram os livros; Idália Sá-Chaves e António Manuel Ferreira, que os
analisaram e iluminaram; António Morais, que nos leu alguns poemas e um conto; a
organista Marília Canhoto e o Coro de Milheirós de Poiares, que já cantou
e vai cantar novamente, encerrando esta sessão.
Muito obrigado a todos
e até outubro.
(2) No Centro paroquial
de São Bernardo
Em 9 de maio de 2009,
foi o mesmo livro “Os Dias Férteis” apresentado em São Bernardo, agora
por Armor Pires Mota, que não pôde estar presente. Por esta razão, mais
lhe fiquei grato.
Armor Pires Mota é um
bom escritor e fervoroso poeta e isso nota-se na análise que fez a estes
poemas.
Faz ressaltar “a
metáfora e a força das palavras”, férteis como os dias do poema da p. 17:
Férteis são os dias.
Deslizam,
entre luzes e sombras,
como um rio,
a água brilhando
na curva dos dedos.
/ 431 /
Férteis
em cada hora,
na força
e no olhar
dos teus pulsos.
Fertilidade e
fragilidade, fértil e frágil assemelham-se do
ponto de vista fonético e musical. E
jogam bem no poema mesmo que fértil esteja só implícito: “Digo rosto,/ mar,/
estrela, digo vento./ Porém,/ o mais belo/ na vida, / é o que acendo/ e
invento,/ porque frágil/ em sua/ fulguração”.
Termino com “Talhas
Cheias” (p. 44):
Se tuas talhas
estiverem vazias,
tua vida é seca e
estéril
e perecerás de
tristeza.
Enche-as de água fresca
e conhecerás a
abundância
da vida do Espírito.
Enche-as de vinho
verdadeiro
e teu rosto brilhará de
alegria,
a tua vida será um
banquete
e teus amigos, a tua
glória.
Se tuas talhas
estiverem cheias,
a água e o vinho
jorrarão
continuamente, como um
rio.
10.
Invenção para dois trombones e outras
histórias (abril 2009)
É este um livro de
contos e foi apresentado em Aveiro na mesma sessão que “Os Dias Férteis” –
na Biblioteca Municipal, em 18 de abril de 2009, e no Centro Paroquial
de São Bernardo, em 9 de maio. Quem o apresentou
/ 431 /
foi o professor António
Manuel Ferreira, mas não escreveu texto, falou de improviso e
espontaneamente.
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Capa e ilustrações:
Tânia Sardinha
Apresentação:
António Manuel Ferreira
Leitura:
Ana Paula Cabrita, António Morais,
Maria Amélia Pinheiro
Música: Coro
Litúrgico de Milheirós de Poiares
Órgão − Marília
Canhoto
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Estes contos também
foram apresentados em Peraboa, em 20 de junho de 2009, por Jerónimo de
Matos, que começou por dizer que a leitura deste “Invenção para dois trombones e
outras histórias” constituiu para ele “um verdadeiro prazer intelectual, em
que reflexão, divertimento, curiosidade por lugares e personagens, humor e
empatia, foram uma constante, ao longo das vinte histórias que o compõem” (cf.
As Palavras em Mão, Aveiro, 2011, pp. 285-292).
Dessas vinte histórias
que preenchem o livro, sete têm a ação a decorrer na Cova da Beira –
quatro no espaço de Peraboa ( Uma
dentada no nariz, Invenção e memória,
Covas e coveiros e
Cangalhada), uma no Terlamonte (O fogueteiro do
Terlamonte), e uma nos Três Povos (O
pastor que também era endireita).
Deixemos os outros
contos – apenas para encurtar caminho e poupar espaço, porque razões
de interesse há-as, e muitas! – e concentremo-nos na cidade de Aveiro,
voemos sobre a av. dr. Lourenço Peixinho, ou instalemos os olhos num drone para
vermos a corrida, não é possível?, então lancemos mão da imaginação,
também não lhe apetece?, mas despache-se, que a corrida vai começar! Atrasou-se
e já não consegue ver? Então pegue no livro e leia a história das pp.
133-139, e ria, ria alto, que é disso que precisa! Verá como valerá a pena! O
Índio e o Furacão são burros muito finos! E terríveis!
Verdadeiros campeões! Mas os
burriqueiros Adelino dos Burros e Tó Ranholas são impagáveis! E o
Júlio Pipas também, já me esquecia dele, com a pressa!
/ 433 /
Mas em Peraboa não
houve só a apresentação dos contos, houve também leitura de poemas do
livro “Os Dias Férteis”, leitura de poemas de Rui Bogalheiro pelo próprio; e
exposição de pintura de Maria Guia Pimpão e Maria Piedade Cordeiro.
Era o 3.º Encontro de
Naturais de Peraboa e o resultado das vendas foi doado ao Centro Social
local.
11.
Ecos & Miragens (outubro 2009)
Entre 1991 e 1994,
escrevi no semanário O Aveiro, sob o título genérico de “Ecos & Miragens”,
várias dezenas de textos. Em 2009, dei a esses textos nova vida: alguns foram
promovidos a contos (livro “Invenção para dois trombones e outras
histórias”); acrescidas de outras, a maioria continuaram a ser crónicas, julgo
que com algum mérito. Também assim pensou Armor Pires Mota, quando fez
a apreciação deste livro e destes textos, no seu lançamento.
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Capa: Sara Bandarra
Apresentação: Armor
Pires Mota
Leitura: Ana Paula
Cabrita, Maria Amélia Pinheiro
Música:
Florbela Gonçalves, flauta
Marília Canhoto, órgão
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Transcrevo aqui uma das
mais curtas, com o título
Nem tudo o que luz é
oiro
Que folheava o jornal –
um desses semanários de quarenta páginas que por aí há, “com muita palha
e pouco grão”, como dizia muitas vezes – e, de repente,
/
434 /
estacou na página 25,
fascinado por uma deslumbrante fotografia e um título a vermelho: “Grande Gala
de...”.
(Eu não percebi a
palavra, pareceu-me ouvir “gagos” mas era bizarro imaginar uma “Grande Gala de
Gagos”, embora pudesse ser hilariante até às lágrimas. Haveria de inferi-la –
a palavra – mais à frente.)
Que tinha sido tudo em
grande: “brilhantes atuações”, “atuações de alto nível”, coros “superiormente
orientados”, que mereceram da assistência, que enchia “por completo” o
interior da “linda igreja local”, “forte chuva de...”.
(Novamente traído pelo
meu ouvido ronceiro e duro – e não frequento discotecas! –, tive de incomodar o
vizinho: – Chuva de quê? – De aplausos! Claro! Não podia ser outra coisa.
“Forte chuva de aguaceiros” ou “de estrelas” não dava. Até porque já ribombava no
ar nova salva de palavrório-foguetório.)
Que, naquela “noite
inesquecível”, bem se poderia dizer que “Cumeeira de Cima se tinha
transformado em autêntica «Capital da Cultura»”.
(Aqui levantei-me,
tirei o chapéu e cumprimentei efusivamente um ilustre cumeense que estava a
meu lado.)
Que, no final, todos os
coros – nada menos que oito!! – cantaram a mesma peça e o público
premiou-os com um “retumbante e prolongado aplauso final”.
Interveio então Joaquim
Serrobeco, meu amigo e experimentado diretor de coros, que estivera
presente. Disse ele:
– Eu não posso deixar
de fazer aqui um breve comentário. Há gente que gosta de promover a
suficiência e mesmo a mediocridade a elevados níveis de qualidade. Não é justo nem correto.
Por outro lado, encontros de coros assim, com tanta gente, caem facilmente
em verdadeira bagunçada. O público é barulhento e não sabe ouvir; os próprios
coralistas vêm mais para o convívio que para escutar com verdadeiro interesse e
prazer os outros coros. A Arte é que sai prejudicada. O que podia ser belo não
atinge qualidade e as pessoas continuam de alma vazia. Diz o povo que “nem tudo o
que luz é oiro”. Fogachos há muitos; o oiro é que é raro.
(pp. 131-132)
Algumas destas crónicas
classifiquei-as de “pura ficção do factual, de gestos e atitudes, de
tiques, de personalidades” (cf. Nota de Apresentação, p. 9). Concordo com
Armor Pires Mota quando diz que, nesse caso, deixam de ser crónicas. É o
caso, por exemplo, de “Foi mesmo azar” (pp. 51-53),
/ 435 /
“Desta escapou!” (pp.
61-62), “Uma bomba na TV” (pp. 63-64), “Carteiro de serviço” (p. 65-66).
Experimente o leitor
passar os olhos pelos textos dos dois primeiros títulos referidos como se fosse
uma só unidade e verá que é uma bela história! Elviro Pauluco é o seu
protagonista.
A crónica “é comentário
de episódios reais e reflete a vivência de acontecimentos; é testemunho da vida e
do tempo” (p. 9).
12.
As Palavras em Mão (abril 2011)
O livro “As Palavras em
Mão” reúne um conjunto de textos que eu quis que não se perdessem e
até ganhassem alguma visibilidade. Todos os textos têm a ver com
literatura; por isso e para que tal se percebesse logo é que lhe atribuí o sub-título de
“Apontamentos de literatura”.
E que contém esta obra?
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Capa: Sara Bandarra
Apresentação: Maria
Amélia Pinheiro
Música:
Classe de bandolins da
Academia de Saberes de
Aveiro
|
Na 1.ª parte, acolhe
textos que eu próprio escrevi sobre escritores portugueses, nomeadamente José
Marmelo e Silva, Antero de Quental, Sebastião da Gama, José Gomes
Ferreira, o padre Américo escritor, Miguel Torga, José Régio e o grande
compositor Wolfgang Amadeus Mozart ( no 2.º centenário da sua morte, em 5 de
dezembro de 1991). E ainda um estudo sobre “Alguns aspetos da literatura
de resistência de 1926 a 1974”, o trabalho de seminário de Literatura
Portuguesa Contemporânea, sob a orientação da professora Andrée
/ 436 /
Crabbé Rocha, com
que, em julho de 1975, terminei a licenciatura em Filologia Românica e me
valeu 18 valores! É João Gamboa que assina estes textos, a maioria deles
publicados em semanários aveirenses.
A 2.ª parte apresenta
todos os textos, publicados anteriormente ou não, que analisam aspetos da
obra de Eugénio Beirão, desde “Invocação de Deus”, em abril de 1994, até
“Ecos & Miragens”, em outubro de 2009, num total de onze livros. Assinam
estes textos, por ordem alfabética, António Capão, António Manuel
Ferreira, Armor Pires Mota, Bartolomeu Conde, F. Pires Lopes, Filipe Rocha,
François Baradez, Grupo de alunos da turma 4B do 12.º ano, ano 1999-2000, da
Escola Secundária do Fundão, Idalécio Cação, Idália Sá-Chaves, Jerónimo de
Matos, João Estrela, Rosa Lídia Coimbra, Teresa Soares Correia e
Virgínia de Carvalho Nunes.
Finalmente, um apêndice
com duas entrevistas: “Eugénio Beirão: Um poeta com a marca de
Deus”, de Fernando Martins, e “Entrevista para o
Jornal do Fundão”,
de Pedro Silveira, não publicada.
“As Palavras em Mão”
tem 328 páginas e foi publicado em abril de 2011. Teve duas
apresentações: em 2 de abril, e depois no dia 5, na Feira do Livro e da Música de
Aveiro. Foi Maria Amélia Pinheiro que fez essa dupla apresentação e
transcreve-se aqui o texto que leu no dia 2 de abril de 2011.
Apresentação da obra
“As palavras em mão”, de João Gamboa
No momento em que o dr.
Gamboa me lançou o desafio de vir a apresentar a sua mais recente obra,
“As palavras em mão”, vivi diferentes emoções e sentimentos.
Em primeiro lugar, um
receio enorme de não estar à altura de corresponder às suas expetativas e
ao valor da sua obra, pois é sempre ingrato falar de alguém que considero Mestre,
entendendo a palavra Mestre como aquele que transmite verdadeiro
conhecimento.
Em segundo lugar,
percorreu-me um imenso orgulho, já que o dr. Gamboa faz parte da minha vida
desde sempre. Habituei-me a tê-lo por perto, a vê-lo entrar pela casa dos meus
pais, a senti-lo como uma presença e um nome tratados com o carinho próprio de quem
merece uma elevada estima e uma peculiar amizade. Na
/ 437 / verdade, sempre vi o dr.
Gamboa com uma profunda ternura, não só pela sabedoria que transmite em vários
domínios, como também pelo exemplo de ser humano que é, pelas diferentes
facetas da sua personalidade, pelo tom de voz que me encanta e pela serenidade com que
vive, ainda que, tantas vezes, por entre a azáfama.
De facto, a sua
personalidade multifacetada está bem presente neste seu novo livro. Trata-se de uma
obra que se divide essencialmente em dois grandes momentos: primeiramente, é-nos
apresentado um conjunto de textos de sua autoria, nos quais expõe pensamentos
próprios sobre nomes ímpares do mundo da arte, nomeadamente da literatura e da
música.
Posteriormente, uma
melodia de textos escritos por autores diversos, aquando do lançamento das onze
obras literárias de Eugénio Beirão, pseudónimo que traz sempre consigo, um hino
à sua mãe e à região de onde é oriundo.
O primeiro grande
momento, revela-nos o homem. Com efeito, é o homem como artista, como
artesão da palavra, como pessoa, como pensador e crítico, como apreciador de
arte, como crente, como ser espiritual que se mostra e se desnuda pela palavra,
cadenciado por múltiplos harpejos de uma imensa sensibilidade.
O dr. Gamboa não se
limita a tecer considerações sobre figuras marcantes da cultura portuguesa e
universal. O dr. Gamboa dá-lhes vida, enche-os de significado, fá-los florir e
oferece-os a cada um de nós em momentos tão belos como este, a propósito de
Mozart: “n’ A Flauta Mágica, a música luminosa de Mozart é afirmação do triunfo da
luz e do amor sobre a morte e o mal. É, em última análise, um dom gratuito de Deus
para a humanidade”. Não podemos deixar de observar o encanto e a harmonia
das palavras ou a luz que delas sobressai ou, mais importante ainda, a
espiritualidade que nelas vive. Sendo a música a forma de arte
considerada mais silenciosa, é
também através dela que o professor Gamboa pretende chegar ao coração de
cada um de nós, independentemente do ritmo e valorizando o tempo musical que
organiza o acontecimento sonoro, que organiza, afinal, a vida. Lembrar-se de aproximar
a música de Deus transporta-nos para acordes divinos pautados por um ritmo
sagrado, intocável, belo e perfeito.
Mais à frente, na obra
em análise, ao referir-se a Sebastião da Gama, João Gamboa afirma: o seu
“desejo intenso de comunhão com os homens e com as coisas, o amor que tem para dar
aos outros, é capaz de, como o amor oblativo, transformar a esterilidade em
frutos, a tristeza em alegria, a morte em vida”.
Também o autor se
descobre pleno de bondade, aproveitando o seu dom e o
/ 438 / seu gosto pela escrita
para dar aos outros. Tudo no silêncio e na discrição do gesto, da atitude perante a
sua vida e de um estilo de escrita que deixa espaço para o leitor. E que o
silêncio fala do que não se soube dizer, do que ficou suspenso nas entrelinhas e se
resguarda. A melhor literatura é a silenciosa, já que estimula o leitor a deduzir o não
dito e a estabelecer com ele cumplicidades, o que a torna mais rica, interessante
e sugestiva. O silêncio ajuda a descobrir algo esquecido ou escondido, levando o
Homem ao conhecimento de si próprio, pois, como refere o estudioso Rodolfo
Alonso, «sin silencio no se puede pensar, no se puede meditar, no se puede oír lo más
profundo de uno mismo”. Partilho da ideia de que o Homem silencioso se diviniza,
porque é justamente no silêncio que apreende a divindade e objetiva a serenidade,
elemento revitalizante e reconfortante.
O segundo grande
momento da obra consiste na divulgação de textos escritos por autores diversos,
aquando do lançamento dos múltiplos livros já escritos pelo autor Eugénio Beirão,
enriquecidos pelos desenhos das capas que lhes deram rosto, autênticos trabalhos
assentes na arte e na beleza e de grande sentido estético.
Antes de mais, todos os
textos de apresentação das obras espelham uma profunda amizade de quem os
escreveu para com o autor em questão. De forma mais ou menos poética, mais
ou menos prática, ajudam a refletir sobre a obra à qual se reportam e dão a
conhecer as diferentes vertentes e fases da escrita do autor. Ora a crise espiritual que
desencadeia emoções vividas através de versos nos quais o amor a Deus se reduz ao
essencial, como em “Invocação de Deus”, com versos pintados pelo contraste
entre luz e sombra, ora o encontro de um novo estilo balanceando entre prosa e poesia
como em “Diário Intermitente”, ora mergulhando profundamente na luz da
poesia como em “Pétalas e Rubis”, “Rosa-dos-Tempos”, “Poemas Aveirenses”,
“Na luz das palavras”, “Beira: um rosto interior” ou “Os dias férteis” (escritos
entre 1995 e 2009), mostrando uma evolução literária constante, buscando novas formas e
novos conteúdos, novos mundos e, acima de tudo, desvendando o intenso
prazer da escrita esforçada, trabalhada e sentida.
Surpreende-nos, o
autor, em abril de 2009 com um livro de contos, “Invenção para dois trombones e
outras histórias” e, em outubro do mesmo ano, com outro livro, de crónicas,
“Ecos & Miragens”.
Numa obra já tão vasta,
Eugénio Beirão/João Gamboa que tanto se fundem e se completam, dão-nos
conta da luta e do trabalho da escrita. Há demasiadas coisas sobre as quais escrever
e um tempo específico para o fazer. Mas, para o autor, a
/ 439 /
tarefa cumpre-se
cabalmente: basta abrir o coração para acolher o que a vida traz, levar por diante a
tarefa de conhecer e de dar a conhecer reflexões, medos, angústias, alegrias, momentos do
quotidiano, jogos de palavras e de emoções. Basta aprender a arte da
criação, celebrar o que de comum a vida tem, referir a beleza e o sossego ou
desassossego que ela traz. Para o autor, a escrita representa o
alimento de que necessita, não
pretendendo ser nada daquilo que não é. Representa, tão simplesmente, ser livre
e poder voar. A escrita de João Gamboa é um presente que o autor oferece a si
mesmo, mas também aos outros; é o espelho de um trabalho duro que faz parte da
sua vida, do qual se deverá sentir orgulhoso pela humildade que o reveste. E,
definitivamente, saber oferecer palavras e não ser somente o
proprietário delas. Da escrita,
nasce, então, por entre os leitores, o desejo da fruição da palavra, da palavra
de João Gamboa!
Da Nota de
Apresentação(p. 9) transcrevo ainda o passo seguinte:
“Palavras, leva-as o
vento”, diz o povo na sua sabedoria, e com razão. As obras é que têm peso e
ostentam valores, por isso as obras é que contam. Assim também as palavras recolhidas
e escritas no papel branco de um livro. Aí ganham lastro, o vento não as
dispersa, assumem alguma visibilidade e permanecem e contam.
É esse o objetivo deste
livro. As palavras nele gravadas vêm de variadas circunstâncias e intenções: ou
simplesmente lidas na apresentação de um livro e guardadas no silêncio
de uma gaveta, ou publicadas em jornais e revistas; e têm diversas datas na sua
génese: da década de 1990 até aos dias de hoje, além de dois textos escritos no
longínquo 1975. Também testemunham diferentes autorias.
Estas são, portanto,
palavras resgatadas e guardadas, palavras servidas ao leitor na palma da mão
– “As Palavras em Mão”.
13.
Um Anjo na Cidade – Romance (outubro
2015)
É romance – este Um
Anjo na cidade! E gosto dele: muito simples, nada complicado, lê-se
enquanto um Anjo alisa as pestanas! E com variadas leituras.
|
Capa: Maria Guia
Pimpão
Apresentação:
Idália Sá-Chaves,
Maria Cacilda Marado
Rosa Lídia Coimbra
Leitura: Grupo
Poético de Aveiro
Música: Coro
Litúrgico de Milheirós de Poiares
Órgão − Manuela
Sousa,
Órgão solo − Marília
Canhoto Pérez
|
De que personagens
gosto mais?! Deixa cá ver... Da avó Matilde, tão suave e delicada no seu
chá de tília perfumado e delicioso; do Estêvão, adolescente
/ 440 /
romântico e
empreendedor; da Joana, tão especial e sensível; da professora Margarida,
maternal e com tanta habilidade pedagógica; de Aldónio Cometruta, um artista
extravagante... Mas aquele “escritor solitário e feliz”!... E o “Homem-sem-nome”...
Pois este romance, com
um título belo e sugestivo, teve o seu lançamento em 17 de outubro de
2015, no Museu de Aveiro/Museu de Santa Joana.
“Considerando que é na
nossa cidade [de Aveiro] que se passa grande parte da ação; (...)
que os protagonistas são um grupo de adolescentes/jovens que fazem o seu
percurso escolar desde o 12.º ano até ao fim da universidade, portanto em idade de
formação e crescimento humano e espiritual; (...) que paira no livro a
ideia de anjo como criatura quase divina que irradia luminosidade,
sabedoria, beleza espiritual e às vezes quase tocamos nesta ou naquela personagem,
sentindo o seu perfume e suavidade; considerando tudo isto, pensei que para
apresentar este livro tinha de ser alguém que conhecesse a cidade, alguém que
fosse da área da educação e formação humana, alguém que tivesse as
virtudes da sabedoria e da comunicação, que possuísse uma alma generosa e
amasse com convicção o que diz, que fosse capaz de transfigurar as
pequenas coisas interessantes da história e do texto em joias preciosas que deleitam
quem as ouve...” Por estas razões, disse-o na altura, convidei a professora
universitária Idália Sá-Chaves para partilhar com os presentes a sua leitura
do romance. E fê-lo a contento. Não tenho é o texto, para o registar aqui.
Com muita pena minha!
/ 441 /
Desejei que aquele
evento cultural fosse um encontro de pessoas e consegui-o: em primeiro lugar,
dos colegas professores/educadores da Escola João Afonso de Aveiro
nos anos 70 a 90 – os do “nosso tempo”; de alguns meus conterrâneos; e de
outras pessoas que, por me conhecerem e serem minhas amigas, ou por
gostarem de livros e de música, ou por outras boas razões, quisessem
participar.
Também decidi que,
através da ADAV - Aveiro (Associação de Defesa e Apoio à Vida -
Aveiro), o produto da venda do livro pudesse beneficiar mães e bebés em
dificuldade (e rendeu quase 700€).
E consegui ainda reunir
quatro artes que sempre estiveram presentes no lançamento das
minhas obras: a escrita, a pintura, a música e a leitura-declamação.
A música foi
interpretada pelo Coro de Milheirós de Poiares, acompanhado pela organista Manuela
Sousa, na igreja de Jesus, antes da sessão do lançamento. Marília
Canhoto Pérez tocou também duas peças breves de João Gamboa, no órgão de
tubos do coro alto da igreja.
Entre outras
partituras, o coro interpretou, em primeira mão, o hino “Formosa Princesa”
(música na p. 383), que encerra no romance a cantata “Os olhos de Joana”,
musicado por João Gamboa. Eis as suas estrofes:
Formosa princesa, jovem
donzela,
Padroeira santa desta
cidade,
Luz resplandecente,
divina estrela,
Oh! Coração ardendo em
caridade.
Buscando a luz de
brilho verdadeiro,
Foste pura e firme,
alma de asceta.
Nós te cantamos um
louvor cimeiro,
Um hino escrito por mão
de poeta.
Sempre submissa ao
apelo dos Céus,
Mulher bondosa que nada
envaidece,
Lá onde vives, no
abraço de Deus,
Acolhe em teus olhos a
nossa prece.
/ 442 /
Nós te saudamos,
princesa Joana,
Nós te bendizemos no
teu mosteiro.
Cantamos tua glória,
joia humana,
Nobre e fiel padroeira
de Aveiro!
A pintura estava
presente na bela e luminosa tela da autoria de Maria da Guia Pimpão (minha
conterrânea), exposta na parede do corredor junto à receção e que deu origem à capa
do livro, por todos muito elogiada. (Também estavam aí, a
mostrar-se, as cerca de 20 obras minhas, considerando as várias edições).
A leitura foi feita por
Jorge Neves e Carla Ribeiro, do Grupo Poético de Aveiro, que deram asas
e vida a alguns textos – o capítulo 11 – “A avó Matilde, Joana e Estêvão” e
quase todo o capítulo 8 – “O Homem-sem-nome”.
Transcrevo duas cartas de Amigos que quiseram, espontaneamente,
partilhar a sua leitura do
romance, o que muito continuo a
apreciar e lhes agradeço.
A primeira é do grande e estimado Poeta
albicastrense António Salvado. Sem data, presumo que
tenha sido escrita a 19 ou 20 de outubro de 2015.
“Meu bom Amigo:
Acabo de ler UM ANJO NA CIDADE.
Familiarizado com a sua poesia, grande foi a surpresa
ao receber o livro,
classificado como ‘romance’. E
/ 443 /
lentamente, com
redobrado interesse, o fui ‘focalizando’, no entrecho (que o possui), na modulação
das personagens (de mestre), na sequência dos episódios (estes, admiráveis
criações), e, enfim, em evidentes qualidades que a prosa de UM ANJO NA
CIDADE testemunha – diálogos, aspetos narrativos e descritivos,
enfim,(1) uma prosa aliciante, natural, de expressividade
indiscutível.
|
|
O bom Amigo escreveu,
sem dúvida, um belo... romance. ‘Ortodoxo’ ou não pela configuração,
enredos, episódios e... ‘soluções’, a verdade é que UM ANJO NA CIDADE
constitui criação alta na sua bibliografia. Parabéns!
Um abraço apertado do
seu
António Salvado
(1) A repetição do ...
enfim
é propositada...
PS: Permita-me que
releve o belíssimo poema em... prosa, titulado de
Entre giestas, flores e
figos”.
A segunda epístola é de
um amigo, Júlio da Cunha Antunes. Fomos colegas na escola primária,
depois cada um de nós seguiu o seu caminho, o Júlio foi para Lisboa onde
estudou e se fixou, eu vim para Coimbra e lá estudei, ancorando-me em Aveiro.
Há muitos anos não nos vemos e a troca de correspondência é esparsa.
Aconteceu algumas
vezes, pelo Natal dos últimos anos, e descobrimos que ambos “rabiscamos”
poesia e outro tipo de textos. O Júlio Antunes (que usa o pseudónimo M.
de Monte Mor) escreve uma poesia de qualidade que aprecio muito – “sempre
com um substrato filosófico e existencial, e bíblico, como é natural, dada a
[sua] formação, mas ressumando, muitas vezes, um lirismo magoado e
vivido, onde aflora permanentemente o problema de Deus e do
transcendente, com suas dúvidas e hesitações, sempre, porém, à luz da esperança”, como
lhe disse em carta de dezembro de 2009.
Mas vamos à sua
missiva, na qual faz uma leitura de “Um anjo na cidade”, de que gosto.
/ 44 /
Caro amigo João
Bem hajas pelo teu
livro “Um Anjo na Cidade”. Li-o de um fôlego e com um interesse crescente, à
medida que as diversas telas e enredos se foram desvelando na palavra fluente e
impressiva de um discurso aberto ao meu pensar e ao meu sentir. E se tivesse de
escolher uma frase abrangente desta obra, escolheria: “Uma cidade é muita
coisa ao mesmo tempo, mas as pessoas é que são sempre a sua alma”.
Não me atrevo a fazer
análise literária. Outros a farão melhor que eu. Mas, antes de te manifestar
o meu olhar sobre o livro, não resisto a recordar como ficaram plasmados em mim o
escritor solitário com razão para chorar de felicidade e o devir da história das
personagens de Bernardo e de Joana.
O meu olhar sobre o
livro lanço-o de um ponto de vista que é raiz da minha formação original: a
perspetiva estética da obra de arte – a sua natureza e a sua finalidade, tomando
como referência “Um Anjo na Cidade”. E o meu ponto de partida é: “Um artista
mesmo a sério oferece beleza e afeto”. E, sendo esta uma carta, serei breve e,
sobretudo, sincero.
Ao ler o livro,
senti-me em diálogo com uma obra de arte. Sim, “Um Anjo na Cidade” é criação, é
uma obra de arte na linguagem, no discurso, na originalidade, na criatividade: o
autor exprime-se a si mesmo, aos próprios sentimentos e corporifica valores
universais intuitivamente percetíveis nas circunstâncias
particulares das personagens. O
autor tem plena consciência de que a obra de arte tem de ser novidade a
caminho de ser nova novidade – naquela perspetiva platónica de que o artista busca
a Beleza e, pela Beleza, o Bem supremo que não atinge, mas para que tende nesta
finitude.
“Uma Anjo na Cidade”,
por ser obra de arte, tem o seu fim primeiro em si mesma; é autónoma como
o são a ciência, a política, a religião, mas procura outros fins com muito afã: a
ação pedagógica e também a metafísica, a religião, que o homem é religioso por
natureza.
Tal como a Natureza
produz realidades autónomas, como os animais, as plantas e as montanhas e as
partilha com os humanos, assim também o artista produziu a obra de arte – “Um
Anjo na Cidade” – e a partilhou, porque o seu desiderato maior é dar-se a
conhecer no dar a conhecer, como fez o escritor solitário que foi feliz na “relação viva
com as pessoas”. E foi nesta relação viva que a sua solidão
/ 445 /
de escriba se tornou
“convivial e luminosa, outorgando-lhe alegria e recompensa... E o poeta chorou de
felicidade”. Este poeta solitário entrou e permanece em mim. Conversei com ele
e por ele decidi dizer ao autor de “Um Anjo na Cidade”, na minha condição de
aprendiz de filósofo e recorrendo à expressão de um grande psicólogo: num modo de
ver projetamos sempre um modo de ser.
Com um grande abraço de
parabéns do amigo
18.10.2015 Júlio
Antunes
Em 5 de novembro (de
2015), o romance “Um anjo na cidade” apresentou-se no Centro Paroquial
de São Bernardo pela palavra de Maria Cacilda Marado.
A abrir a sessão, o
coro juvenil “Novas Vozes” e o coro adulto da Sociedade Musical de Santa
Cecília apresentaram-se a cantar.
A seguir, foi lido o
capítulo 30 – “Na praia, com trinta crianças”, mas só uma parte, o
restante ficou para depois da apresentação, para criar mais expetativa. (E
resultou). As vozes bem moduladas de Maria da Graça Nave e Lúcia Felício,
professoras já aposentadas e cheias de experiência em prodigalizar ternura aos pequenitos,
criaram um clima mágico e muito doce, pois tratava-se de crianças
em situação de colónia de férias (a Alice, o Natalino e outros), a ir à praia e
a dormir em internato, acompanhadas por educadoras.
A doutora Maria Cacilda
leu o seu texto, aqui transcrito.
Apresentação do livro,
Um Anjo na Cidade, de Eugénio Beirão
Inicio este meu
contributo na apresentação do livro que aqui nos reúne,
cumprimentando todos os presentes e,
de um modo particular, o seu autor, Eugénio Beirão, pela
oportunidade que me deu de completar, Um Anjo na Cidade, como leitora.
Na verdade, ao ler o
livro, agarrada às palavras do texto
pude viajar para outros tempos
em que, menina ainda como Joana, a
personagem principal do texto,
tive sonhos parecidos e
realizações que me deram muita alegria. E isto, porque, ao ler um livro, o
leitor acrescenta-lhe outros sentidos, como que completa a obra do escritor.
/ 446 / Ao mesmo tempo,
enquanto fui lendo, veio-me à mente o velho
debate sobre se a ficção é
autobiográfica, se deve ou não sê-lo e se é obrigatório ser-se exato quando se ficcionaliza
a vida num romance. Na
verdade, alguns excertos deste livro lembraram-me
alguém que eu conheço e que defende valores semelhantes aos que praticam
algumas das personagens deste livro. Mas não só, no que diz respeito aos gostos da
tal pessoa que eu conheço, há também muitas semelhanças, concretamente o gosto
de ser útil aos outros, o gosto pela música e pela poesia. E mais não refiro para
deixar que os leitores vivam o prazer da descoberta. Efetivamente,
o sujeito de
enunciação, o autor, inconscientemente, como que se trai a si próprio na apresentação
que faz das personagens; dito de outra forma, o autor vai dando coisas de si às
personagens que ele convoca para o texto. A este respeito, não resisto a citar as
palavras de um autor que muito admiro,
Onésimo Teotónio de Almeida: “se é a
arte, neste caso a arte da palavra escrita, que imita a vida, ou se é o contrário, tanto
faz”.
O título, sugestivo,
Um Anjo na Cidade,
remete-nos para múltiplos significados, entre eles a existência
de pessoas que são boas como os anjos e a necessidade de proteção que cada um
de nós sente. Proteção dos anjos, neste caso. Mas apetece-me até dizer que
este livro anda à procura de encontrar outros anjos – meninos, jovens e adultos que já
existem e que querem construir um mundo melhor. Tal como fez a personagem
Joana ao colocar a sua vida ao serviço dos outros.
Gostava também de
vos falar das palavras, das palavras deste livro que inventam, para alguns dos
leitores, espaços novos, nomes insólitos, metáforas e imagens que nos trazem à mente
inúmeras recordações, desejos ou realizações.
Escusa o leitor de estar a dar
voltas à cabeça a pensar que o Aldónio Samacutra é fulano ou beltrano
(p. 13).
Mas as palavras
dizem também respeito à descrição de lugares, parecidos e até iguaizinhos a
muitos outros em que a nossa vida se desenrola. Mas
“Ficção é invenção”, diz-nos o
texto na p. 13. E estas palavras,
parece-me, fazem despertar no mais íntimo de cada
um de nós, na mais bem guardada “arca dos desejos”, a vontade de sonhar com
um mundo melhor e torná-lo realidade.
E continuando a
falar das palavras, no texto estão bem presentes os jogos
que o autor faz com elas
(enfolava, enflorava,
enfolhava), a simbologia (a romã como símbolo de fertilidade,
de amor...), as prolepses e as analepses
que essas mesmas
/ 447 /
palavras sugerem. Bem
assim, o recurso a diferentes tipologias de texto: narrativo, género diarístico e
texto poético.
E quanto à reflexão
sobre o enformar do texto, há ainda o encaixe de outras histórias na história
da Joana, o tal anjo que desceu sobre a cidade.
Mas outras questões se
nos levantam ao ler este romance: o valor da amizade e da família, a
adolescência e o despontar do amor, o respeito pelas diferenças, a sabedoria da velhice,
o tema da morte, a procura e a descoberta da vocação, a prática do
voluntariado, entre outras.
“No ter pouco e ser pobre é que serei rica. E brilharei se servir e
amar” (p. 229).
A finalizar, quero
partilhar com os leitores a oportunidade deste texto na minha própria vida: um
apelo à doação a nobres causas, em favor do próximo.
Ao dr. Gamboa,
desejo que continue a surpreender-nos com os seus textos e enalteço o seu desejo
de, com eles, ajudar a Fundação Padre Félix a
Ajudar a Vencer
os que, na vida, lutam com as
dificuldades mais diversas.
A vós, desejo que,
na vida, encontrem muitos anjos. Algumas personagens deste livro referem que
acreditam nos anjos. O título sugere-me que há um
anjo na cidade;
na nossa cidade? E apenas um?
Será que cada um de nós não poderá ser também um anjo?
Creio que sim, pelo menos algumas vezes!
Maria Cacilda Marado
5/11/2015
A terminar, eu disse
algumas palavras. Em primeiro lugar:
“Desejei que o
lançamento deste livro, aqui em São Bernardo, fosse simultaneamente um ato cultural e um
ato de solidariedade. Para isso ofereci à Fundação Padre Félix
(...) todos os livros que a comunidade (...) fosse capaz de adquirir”.
E foram mais de 50 os
exemplares vendidos, rendendo mais de 500 €.
E continuei:
“Quando nos embrulhamos
e envolvemos na Fundação Padre Félix estamos a fazer memória e a dar
relevo ao espírito solidário do seu patrono – o nosso padre Félix,
que durante muitos anos viveu entre nós e foi quem moldou e animou este
sentido evangélico e cristão da ajuda aos mais necessitados.
O padre Félix continua,
portanto, a mexer connosco, ele está aqui presente com o seu
espírito e a sua obra”.
/ 448 /
Depois, considerando
que o livro conta a história de um grupo de adolescentes desde o 12.º ano até ao
fim da universidade e o leitor vai “observando a construção e
crescimento humano e espiritual” desses jovens, “as suas opções e
comportamentos, as situações e acontecimentos em que se envolvem”, “acompanhados” pela avó
Matilde, a professora Margarida e a eng. aeronáutica Carolina,
que é chefe escuteira e trabalha com lobitos, apontei o livro como indicado
para ser lido por adolescentes e jovens.
Deixei ainda uma outra
ideia que anda à volta das palavras
cidade, obra de arte, afeto,
partilha...
“Há no livro uma frase
que diz: “Um artista mesmo a sério oferece beleza e afeto”. Isto torna-se
mais claro e real no cap. 6, “Um escritor solitário e feliz”. E como?
O escritor foi para a
praça pública e ofereceu os seu livros a crianças. Uma delas voltou junto
do poeta para lhe dizer que gostava muito de um poema que falava do “senhor
Vento” que, no tempo da Feira de Março, soprava tanto, tanto que
despenteava os miúdos, metia-lhes medo e deitava-os ao chão. Depois o poeta
ofereceu livros a adultos criando empatia e confiança. A seguir, alguns jovens
quiseram ler poemas, em voz alta. O poeta também leu. E o número dos que
ouviam foi aumentando. Para muitos era uma experiência inédita, mas feliz.
“Nesta relação viva com
as pessoas”, o poeta sentiu que “a sua solidão de escriba se tormou
convivial e luminosa (...) E chorou de felicidade”. Porquê? Porque partilhou com os
outros a beleza dos seus poemas, levando-os a fruir a sua arte. E
assim também os fez felizes”.
E terminei assim:
“A Fundação Padre Félix
é fonte de bem e de felicidade. Os seus membros mais responsáveis e
mais ativos são anjos da cidade para acudir a dificuldades que afetam pessoas e
famílias. Eles fazem chegar onde é preciso aquilo que a comunidade
partilha cristãmente com a Fundação. Parabéns a todos pelo bem que
fazem”.
Parte da ação do
romance Um Anjo na Cidade desenrola-se na Escola Secundária José
Estêvão. Talvez por isso, o livro também lá esteve presente e foi brevemente
“analisado”. Foi em 18 de abril de 2016, no âmbito da Semana
/ 449 / da Leitura, por
iniciativa do professor-bibliotecário José Caseiro e da professora Alice Pinho,
com alunos seus do 12.º Ano de Literatura.
O Diário de Aveiro
acompanhou a sessão e fica aqui a sua reportagem.
/ 450 / Mas a Feira do Livro de
Aveiro de 2016 ainda acolheu nova apresentação deste romance que tem a
cidade da ria como palco primeiro.
Foi no dia 12 de junho
(de 2016) e a professora da UA Rosa Lídia Coimbra é que apresentou o seu
estudo. Não houve música mas Carla Ribeiro, do Grupo Poético de
Aveiro, leu um pequeno excerto.
Eis o texto dessa
análise às vezes muito minuciosa, e que vale muito a pena ler. Gosto muito
deste estudo.
A cidade dos Canais e
da Ria, palco primeiro do romance Um Anjo
na Cidade de Eugénio Beirão
Rosa Lídia Coimbra
Feira do Livro de
Aveiro, 12 de junho de 2016
Depois de ter
apresentado um livro de poemas e um diário de Eugénio Beirão,
cabe-me, desta feita, a honra de
apresentar um romance do nosso autor e muito estimado amigo. Neste livro, revisitei as
obras anteriores, já que se trata de uma obra em que a poesia e a
diarística também dão as suas
espreitadelas.
Sendo Um anjo na
cidade o primeiro romance de Eugénio Beirão, ele está bem longe de ser a sua
primeira obra. No título, os dois nomes remetem para dois mundos complementares
em diálogo – o espiritual e o terreno – que estão presentes também em toda a obra
anterior, nos seus poemas, diários, contos e crónicas. O leitor que segure pela
primeira vez nas mãos este livro, depois de ter apreciado a bela ilustração de capa da
autoria de Maria Guia Pimpão e que o leva já a evocar esses dois mundos nela
entretecidos, é seguidamente alertado por duas notas prévias – uma sobre o conteúdo e
outra sobre a forma. Uma e outra focam a dificuldade em estabelecer fronteiras:
do lado do conteúdo, a fronteira entre a ficção e a realidade; do lado da forma, a
fronteira entre os géneros textuais.
É precisamente nesse
romper de fronteiras que assenta toda a arquitetura textual deste volume. A
ortodoxia do género romance é aqui quebrada através da alternância e encaixe de outros
géneros textuais, ora evocados em processos de remissão intertextual por um dos
narradores ou por uma das personagens, ora apresentados como objetos
comunicativos por eles produzidos e que, ao longo da diegese, vão sendo apresentados ao
seu leitor implícito. É o caso de poemas (pp. 21, 38, 69,
/ 451 /
81, 108, 109, 139,
151), grafitis (p. 27 e segs.), leituras bíblicas e orações (pp. 32, 33, 79, 186, 251),
dedicatória (p. 52), discurso (p. 61), canções (pp. 94, 138, 191), relatório escolar (p.
97), bilhete (p. 233), postal de férias (p. 166), comunicado de imprensa (p. 207),
testemunho jornalístico (p. 215), cantata (p. 237), entre outros. No entanto, dois
géneros merecem especial destaque e ambos relacionados com a personagem Joana Vouga:
o género diarístico, já que oito capítulos do romance assumem a forma de páginas do
seu diário pessoal (cap. 15, 19, 20, 27, 29, 32, 34, 41) e o género epistolar,
já que diversos capítulos são integralmente constituídos por cartas em que Joana é
emissora (cap. 37, 45, 47) ou destinatária (cap. 23, 33, 44, 46, 48, 50). À diversidade
de géneros acresce a diversidade de narradores, uma vez que a história nos chega
quer pela voz de um narrador não participante, quer pelo
envolvimento de narradores de
primeira pessoa, como é o caso de Joana e do seu avô.
As pontes intertextuais
são estabelecidas com variadas obras de autores portugueses através da evocação dos
seus nomes e/ou de pequenas citações de obras literárias, que o
leitor empírico é levado a vasculhar na sua memória ou mesmo na sua estante: na pág.
13, um vislumbre de O Achado de Miguel Torga; na 15, de
Cristalizações de
Cesário Verde; na 89, de Um conto de Natal de Miguel Torga;
na 107, de 25 de abril
de Sophia de Mello Breyner Andresen; na 174, do Só de
António Nobre; ou, na 190, do
poema Liberdade de Fernando Pessoa. As próprias personagens e narradores são,
também eles, autores de textos poéticos de diversa natureza.
Para além da
diversidade de géneros copresentes e de recortes intertextuais, que fazem com que o
romance não seja apenas uma história, também na trama narrativa vamos
encontrar um diluir de fronteiras. Desde logo, a fronteira entre ficção e realidade, num
processo de recriação, como é afirmado na primeira das notas prévias.
A questão da ficção vs.
realidade é complexa. O homem é o único animal capaz de produzir ficção e
capaz de produzir linguagem verbal articulada, o que estará seguramente
relacionado. E na comunicação humana, assume particular relevo a produção de narrativas,
o que acontece sempre que o sujeito falante partilha com o outro um relato de uma
experiência, um acontecimento, uma história. Ora o sujeito do discurso literário
em geral e do romance em particular não começa do zero, ele parte de material, quer
linguístico quer conceptual, pré-existente que ele combina e reorganiza, gerando
novos significados. A partir do momento em que um lugar, uma personagem, uma
ação, mesmo que reais, passam para dentro do romance, a
/ 452 /
realidade insere-se no
imaginário, o passado no presente, coexistindo num todo indissociável de um
discurso histórico-ficcional. Desta deslocação do material factual e da atribuição de
novos sentidos ao material linguístico nasce a nova verdade do romance. O leitor
encará-lo-á desse modo, ainda que, num jogo de resolução de enigma, possa tentar
destrinçar as pistas que o levam à realidade prévia: espaços geograficamente
definidos, pormenores autobiográficos, apontamentos históricos e menção de figuras
verídicas, nomes fictícios homónimos de nomes reais ou, mais subtilmente, seus
parónimos ou que com eles rimam.
Todo esse exercício
pode ser feito com a obra “Um anjo na cidade”. Onde começa a realidade, onde
começa a ficção? Que lugar ocupam no mundo do romance os apontamentos, por
exemplo, sobre a história e as gentes de Aveiro e do resto do mundo, sobre
acontecimentos marcantes ocorridos em África, na história das missões, ou, em França,
no desastre do Concorde? O que é autobiográfico? O que é criação e recriação?
Tantas questões se podem aqui colocar e tantas respostas poderão ser encontradas quantas
as leituras que forem feitas. Ou talvez a riqueza esteja precisamente na
ausência de resposta e, mais uma vez, na diluição das fronteiras.
Apesar destas
multiplicidades que acabámos de referir, ao nível da forma e do conteúdo, o romance
Um anjo da cidade não é um conjunto desarticulado de elementos fragmentados. Pelo
contrário, há uma unidade bem marcada que é conferida globalmente por uma
mensagem implícita de esperança no ser humano e nas jovens gerações e de exaltação
dos valores espirituais e morais que dão sentido à vida. A cidade não faz sentido
sem o anjo.
A unidade é também
conferida pela estrutura do romance. Composto por 53 pequenos capítulos,
estes grupam-se em duas partes.
Na primeira parte,
constituída pelos dez primeiros capítulos, são apresentados quadros típicos do
viver aveirense, da sua história e das suas gentes. Neles
revisitamos lugares emblemáticos,
de que são exemplo o Tique-Taque, a calçada portuguesa com motivos marinhos,
os canais, a Ponte-Praça, a fonte das Cinco Bicas, a Feira de Março, a rua
de S. Sebastião com as suas casas e lojas, o Rossio, as salinas com a Marinha da
Troncalhada, o estádio Mário Duarte, a pérgula da Urbanização de Santiago, a
lanchonete Santa Joana, entre outros. Movimentando-se nestes
cenários, esta primeira parte do
livro apresenta as cores da cidade também através das
/ 453 /
suas gentes. Figuras
típicas aveirenses desfilam perante o leitor, trazendo consigo, nos seus costumes,
profissões, falares e vivências, a própria história da cidade: caso do funcionário público
(p. 13), do sacristão (p. 19), dos poetas e escritores (p. 21, 49, 69), dos padres (pp.
18, 31), do doutor (p. 35), do taberneiro (p. 35), do lavrador (p. 39), do barbeiro (p.
47) e até de grupos de personagens mais irreverentes como os das tainadas (p.32), os
saltimbancos (p. 26), os graffiters (p. 27), os valdevinos (p. 43) e os motoqueiros (p. 55).
Estas figuras humanas, mesmo as sem nome, são uma parte essencial das tintas
com que a cidade é retratada, cores fundamentais na sua tela e dela indissociáveis. De
tal modo que, num dos episódios, assistimos à metamorfose de um a das personagens,
um voltar às origens num percurso inverso ao de Adão, fundindo-se o elemento
humano com o elemento terra e a palavra criadora. Estes lugares e personagens
constroem, pois, a história da própria cidade, da qual diversos episódios são evocados,
principalmente nos diálogos, como resposta a questões e a curiosidades neles
levantadas em situações de convívio (porque é que a fonte das cinco bicas só tem quatro
bicas?), em momentos de homenagem (quem foi João Afonso de Aveiro?) ou em
palavras escutadas (o que é que Aveiro deve a José Estêvão?). É também na primeira
parte do romance que nascem, fruto de um episódio curioso, os protagonistas que o
leitor é convidado a seguir na segunda parte do romance.
Na segunda parte,
constituída por um total de 43 capítulos, as personagens mais jovens, de entre
as quais a protagonista, Joana, fazem o seu percurso de vida, sempre atentas aos
conselhos e experiências dos mais velhos (aí incluindo um famoso chá) que também vão
sendo trazidos à trama narrativa. Não podendo aqui revelar a história,
pois o prazer da leitura de um romance passa precisamente pela sua descoberta página
após página, focarei apenas a figura do anjo, a que já aludimos. Embora presente desde o
início do romance (na p. 26 o narrador afirma que um anjo na cidade a
torna “mais pura, mais airosa, mais luminosa, mais apetecida e procurada, mais
admirada e amada”) é sobretudo na segunda parte que esta figura vai surgindo, de forma
muito subtil e sob diversas roupagens, numa presença discreta e multifacetada, mas
constante. O anjo está presente:
− pelo caráter
incorpóreo, nas personagens anónimas que passam pela cidade (“passava sorrateiro
(…) Sem bater as asas, navegando. Como um anjo…”, pp. 66-67);
/ 454 /
− pelo seu caráter
protetor e salvador, nos momentos de perigo do quotidiano (“Um senhor que passava
é que nos ajudou a erguer (…) O seu anjo da guarda tinha-a protegido”, p.
77; “no sítio onde estava caiu uma chapa (…) – Foi o meu anjo da guarda
que me salvou!”, p. 155), ou em situações de calamidade (“E velam pelas cidades
(…) sobretudo em situações de perigo – tempestades, incêndios, outras
catástrofes”, p. 80) e mesmo de guerra (“Como te chamas?/ –Rafael,
senhor furriel. / –É nome de anjo.”, p. 82);
− pelo seu caráter
espiritual, nas orações das personagens (“Os anjos protegem e velam pelas pessoas
(…) Eu rezo ao meu à noite quando me deito”, p. 78);
− pelo seu caráter belo e
puro, na inocência e beleza das personagens (“A menina não estava ferida e
parecia um anjo”, p. 84; “Tudo o que fazia e dizia era com naturalidade,
como se fosse feito ou dito por um Anjo”, p. 117; “O Natalino era o mais
novo, um autêntico anjo que era preciso burilar”, p. 163; “vi no seu rosto os
traços de anjo do rosto da Filipinha”, p. 167);
− pelo seu caráter
pacífico, nos momentos de calma, paz e felicidade (“vais dormir como um anjo”,
p. 164; “eu me sentia leve (…) como um anjo” p. 168).
− pelo seu caráter
cuidador, nos gestos de carinho e solidariedade dos voluntários e missionários
(“tratam-nos por anjos (…) Sobretudo quando os achaques são maiores e lhes
damos mais mimos”, p. 155; “Joana cria simpatia e admiração e encontro.
(…) Ela própria será um anjo”, p. 204; “descerão do céu, como anjos da paz
e do bem”, p. 256).
Com o anjo e com a
cidade, o leitor vai desembaraçando os fios das histórias, os percursos de vida,
galgando as fronteiras da ficção e da realidade. Concluímos citando a personagem do
autor semifictício Abel Julião / Alberto Canoa (p. 52): “Os poetas e os escritores
escrevem, de facto, muitas mentiras. Mas nessas mentiras só dizem verdades, e
verdades belas!”.
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