Aurélio Guerra, Indústria Vidreira no concelho de Oliveira de Azeméis. Subsídios para a sua história. Maio, 1991/1994, págs. 54 a 96.

Fábrica a Vapor de Crystaes e Vidraça "A Bohémia", Ldª

 

Não foram necessários mais que três dias sobre a data em que se oficializou a dissolução e partilha dos haveres da sociedade Fábrica de Vidros de Bustelo Abreu, Castro & C.ª para que se confirmasse o que até aí se rumorejava: Francisco de Abreu e Sousa, após o seu afastamento daquela sociedade, iria fundar uma nova fábrica de vidros. Assim foi com efeito, pois aquele dinâmico e competente técnico vidreiro, contando então quarenta e cinco anos de idade, não necessitou de uma quinzena de dias para adquirir três terrenos confinantes, para a edificação daquela que seria cronologicamente a terceira fábrica de vidros do Concelho de Oliveira de Azeméis. Pelo seu ineditismo, não resisto a transladar, embora o mais sucintamente possível, os teores das três escrituras lavradas no notário oliveirense António José Carneiro Guimarães. Assim, em 21 de Dezembro de 1901,

 


"... D. Joana de Oliveira Marques Ferreira, viúva de Domingos da Costa Ferreira, proprietária, vende um prédio composto de casas térreas, terreno, quinteiro, árvores de fruto e vinha, a partir de nascente com Luiz Tavares e outros, norte com caminho público, poente com a estrada de Carregosa e sul com ela vendedora, pela quantia de duzentos mil reis, venda que não inclui o muro que está a sul do prédio vendido, pois fica pertencendo ao prédio dela vendedora..."


para em 31 do mesmo mês e ano,


"... D. Maria Júlia Moreira, viúva de José Luiz Augusto de Oliveira, proprietária, vende um pedaço de terreno de mato, com suas pertenças, que confina por nascente com caminho público, poente com o comprador, pelo norte com Manuel Joaquim da Silva (o Manelão), e pelo sul com a / 55 / vendedora, terreno que vende pela quantia de cinquenta mil réis, com a condição do comprador fazer à custa dele o muro de vedação pelo lado sul, em toda a extensão do terreno vendido, sem qualquer fresta, janela ou porta, reservando para ela vendedora a meação do muro a construir..."


e no dia 2 de Janeiro de 1902,


"... Manuel Joaquim da Silva e mulher Maria Joaquina, moleiros no lugar do Côvo, vendem o prédio composto de casas altas e baixas, quintal com árvores de fruto e um campo lavradio, com todas as suas servidões e pertenças a partir de nascente e norte com caminhos públicos e poente e sul com o comprador, pela quantia de cento e vinte mil réis, terreno de que tomaram posse por arrematação em praça pública por morte de Joaquim da Silva Ignez e outra parte por compra a Manuel Soares e mulher..."

 

 

Com a maior rapidez, iniciou-se a construção da fábrica e embora nem todas as secções estivessem devidamente concluídas, o forno foi aceso - passo a transcrever na íntegra o inserto num livro de apontamentos desse vidreiro de competência profissional jamais igualada que foi Teotónio Gil Júnior e que gentilmente me foi confiado pelo seu neto, o conhecido industrial de artefactos de cobre J. Santos:

 

"A Bohémia principiou a fabricar vidro no dia 7 de Agosto de 1902, às 8 horas da manhã num forno à portuguesa de 9 potes, sendo 4 a cristal e 5 a vidraça; este dia 7 coube à quinta feira."

 

Porque os operários vidreiros das diversas especialidades não abundavam no Concelho de Oliveira de Azeméis e os mais aptos estavam vinculados por quatro / 56 / anos ao contrato de trabalho firmado com o Dr. Paulo José Ferreira de Almeida e porque de tal acordo constavam pesadas penalidades monetárias pelo não cumprimento das cláusulas contratuais por que se haviam responsabilizado fiadores idóneos, Francisco de Abreu e Sousa foi compelido a recorrer ao recrutamento de vidreiros na Marinha Grande. Com ele colaborou naquela localidade, o farmacêutico José das Neves e Sousa, que contratou inicialmente Augusto de Oliveira Guerra e por indicação deste vieram também para Oliveira de Azeméis, Teotónio Gil Júnior, Manuel Fonseca, Alfredo Domingues Jubileu, Albano da Sá Serafim e António Rodrigues Lara. Foi com estes oficiais vidreiros e com diversos trabalhadores da Fábrica de Vidros de Bustelo, que não tendo sido escolhidos para subscreverem o contrato de trabalho com o Dr. Paulo José de Almeida e ainda por residirem nas imediações (Calvário, Lações de Cima e Cidacos), da fábrica de Abreu, (assim se popularizou), que iniciou a laboração a Fábrica "A Bohémia". Ela viria a revelar-se futuramente uma verdadeira escola, onde se formaram ou especializaram trabalhadores que alcançaram o mais elevado nível técnico-profissional, tais como António Martins (Santeiro), Alfredo Teixeira, Avelino Gil, Arlindo Santos, António de Sá Serafim, António Tavares, António Gil (Tonecas), António José da Silva, António Pereira Freitas, Augusto Henriques, Agostinho Marques, Armando Ferreira da Silva, António Ferreira da Silva Carvalho, António Claro, Capitolino da Silva, Francisco Marques da Silva (Guarda-fios), Francisco Lemos de Almeida, Joaquim de Oliveira (Celarai), Joaquim Correia de Pinho (Liceiras), José de Bastos, José Pinto, José Luiz de Pinho, José Henriques La-Salette, José Alves da Silva, Joaquim da Costa, Jacinto José Dias, Joaquim de Sá Serafim, Joaquim José dos Santos (Cabedas), José Maria Correia de Pinho, Manuel da Silva (Viela), Manuel dos Santos (Guidum), Manuel António Tavares, Manuel de Almeida, Manuel Pereira da Silva todos vidreiros e Abel Gomes da Costa, António Joaquim da Costa, António José Soares, António de Abreu e Sousa Júnior, Evaristo da Silva Ferreira (Abreu) , José da Silva Frias, José de Abreu e Sousa (Marneco), José Gomes da Silva, José Soares da Costa, João da Silva Tavares (Gabão), João Tavares Fernandes e Júlio Rodrigues Lara, estes lapidários.

 

   
 

1905 – Fábrica a Vapor de Crystaes e Vidraça "A Bohémia", Ld.ª (pág. 57)

 

 

Porque a construção e o apetrechamento da Fábrica "A Bohémia"" ultrapassaram as disponibilidades financeiras de Francisco de Abreu e Sousa, bem / 58 / cedo começaram a surgir-lhe dificuldades para solver compromissos assumidos com os fornecedores, quer de maquinaria, quer de matérias-primas. Quando a situação financeira se agravou e a rotura era previsível, aquele industrial viu-se na contingência de "refrescar" a sua tesouraria, recorrendo para isso à admissão de três sócios e com eles constituir uma sociedade industrial e comercial com a denominação já existente - Fábrica a Vapor de Crystaes e Vidraça "A Bohémia", Ld.ª. A escritura notarial da sua constituição foi lavrada e subscrita em 30 de Março de 1905, na residência do Dr. Bento Ferreira da Silva Guimarães, situada na Rua do Progresso, (hoje Rua Dr. Simões dos Reis), onde se deslocou a rogo o notário Eduardo Ribeiro da Cunha. Subscreveram tal instrumento notarial, como primeiros outorgantes Francisco de Abreu e Sousa e sua mulher Virgínia do Carmo e Sousa, como segundo outorgante Domingos Alexandrino Ferreira da Silva, residente no Porto, como terceiro outorgante Luiz Augusto Ferreira Guimarães, casado, industrial, residente na Casa de São Luiz, em Leça da Palmeira e como quarto outorgante o anfitrião Dr. Bento Guimarães. Os outorgantes associaram-se nas bases e condições seguintes:

 

"... O capital social de trinta contos de réis é dividido em duas partes iguais; a dos primeiros outorgantes, representado por quinze contos de reis e a dos restantes outorgantes por outro tanto, distribuídos nas seguintes proporções: o sócio Abreu entra com dez contos de reis constituídos pelo valor estimado do terreno e instalações fabris que possui em Lações de Cima, desta vila e que transfere para a sociedade, os sócios Alexandrino e Luiz Guimarães entram com quatro contos de reis cada um e o Dr. Bento entra com dois contos de réis, sendo os restantes dez contos de réis realizáveis proporcionalmente às entradas de cada sócio, com os lucros anuais. A sociedade considera-se como definitivamente constituída nesta data e a sua duração será por cinco anos que poderão ser prorrogados, se os sócios assim deliberarem. Todas as operações, compromissos e / 59 / responsabilidades anteriores a esta sociedade são da única e exclusiva responsabilidade do sócio Francisco de Abreu e Sousa, que fica desde já eleito para gerente técnico e compositor, pelo que receberá semanalmente a quantia de dez mil reis e para gerente auxiliar, que será escolhido trimestralmente, é nomeado o sócio Luiz Guimarães, cujo cargo será sempre desempenhado gratuitamente. Por conta lucros poderão retirar mensalmente os sócios Abreu, Alexandrino e Luiz Guimarães, vinte mil réis e o sócio Dr. Bento dez mil reis, não podendo nenhum dos sócios retirar mais quantia alguma por conta lucros enquanto a capital social não estiver integralmente realizado. Qualquer dos sócios, não gerentes, poderá angariar vendas em seu nome ou de firma a que pertença, pelas quais será responsável perante a sociedade, abonando-se-Ihe três por cento de comissão pelas vendas que efectuar..."

 

 

Decorridos cinco anos sobre a data da constituição desta sociedade, sem que tivessem surgido quaisquer problemas de monta, foi dado cumprimento à cláusula que admitia a sua prorrogação. Assim, em 23 de Maio de 1910, no cartório do notário público Eduardo Ribeira da Cunha, compareceram todos os sócios da Fábrica "A Bohémia", a fim de autenticarem uma escritura de declaração e alteração em parte, daquela sociedade. Por todos foi declarado que estavam de acordo em prorrogar o seu contrato social constante da escritura firmada em trinta de Março de mil novecentos e cinco e introduzir-lhe as seguintes modificações:

 

"... Primeiro – A quota do sócio Abreu, que é constituída pelo edifício da fábrica, móveis, utensílios e moldes discriminados no livro de inventários, continua no valor estimado aí dado de onze contos quinhentos noventa e cinco mil seiscentos e vinte réis, independentemente dos aumentos e benfeitorias feitos até hoje, que ficam fazendo parte da / 60 / mesma fábrica e pertencentes a ele, sócio Abreu; Segundo – Todos os aumentos, reparações, substituições de moldes ou benfeitorias que de hoje em diante forem adquiridos ou efectuados, quando o seu valor não atingir cem mil réis ficam igualmente pertencendo ao prédio e fábrica em conformidade com a cláusula anterior; Terceiro – Quaisquer outras benfeitorias, aquisições ou melhoramentos de valor de cem mil réis ou superior, serão levados a uma conta especial para o devido rateio no caso de dissolução ou falecimento de qualquer dos sócios; Quarto – A retirada semanal de dez mil réis concedida ao sócio Abreu, como compositor e gerente é elevada a sessenta mil réis mensais..."

 

 

Ultrapassadas as dificuldades financeiras experimentadas e beneficiando da situação económica aflitiva que em 1913 começou a dificultar a acção da sua única concorrente aquém Rio Mondego – Fábrica de Vidros de Bustelo Castro, Almeida & C.ª – levando-a em 1914 ao encerramento, a Fábrica "A Bohémia", começou a ficar assoberbada com encomendas, pois não dispunha da capacidade de produção para as executar. Para sair de tal situação, foi deliberado pelos seus sócios encetar negociações para tomar de arrendamento a Fábrica de Vidros do Côvo, que embora arrendada por cinco anos, (de 1 de Março de 1912 a igual dia e mês de 1917), à Empresa Vidreira Operária, Ld.ª, de Lisboa, que se encontrava paralisada e aquela empresa em liquidação. Dado o óptimo relacionamento que sempre existiu entre o Dr. Bento Ferreira da Silva Guimarães e os Condes do Côvo, aquele sócio da Fábrica "A Bohémia" não deparou com dificuldades para oficializar o trespasse do contrato de arrendamento. Assim, em 1 de Março de 1915, no Solar do Côvo, foi subscrita a respectiva escritura, em que intervieram a Condessa do Côvo, como senhoria, António de Bastos Nunes, solteiro, maior, comerciante em Oliveira de Azeméis, por si e na qualidade de bastante procurador dos membros da Comissão Liquidadora da Empresa Vidreira Operária, Ld.ª e Francisco de Abreu e Sousa, como gerente da Fábrica "A Bohémia".

Pela proprietária da Quinta do Côvo, foi dito:

 

 

/ 61 / "... Que autorizava o trespasse de arrendamento da Fábrica de Vidros do Côvo, feito pelo seu falecido esposo Excelentíssimo Gaspar de Castro e Lemos, antigo Conde do Côvo, por escritura de vinte e quatro de Março de mil novecentos e doze, com todas as cláusulas e condições constantes de tal escritura, ficando a cargo da nova concessionária o pagamento das três anuidades em dívida, que são a terceira, vencida hoje, quarta e quinta, a vencerem-se em igual dia e mês de mil novecentos e dezasseis e mil novecentos e dezassete..."

 

 

O representante da Comissão Liquidadora disse:

 

 

"... Em vista da autorização concedida pela senhoria, havia contratado com o gerente da Fábrica "A Bohémia" trespassar a esta o arrendamento com todas as cláusulas e condições nele expressas e outrossim vender-lhe todos os utensílios existentes na fábrica e os respectivos fornos e chaminé, pela quantia de dois mil escudos..."

 

Pelo gerente da Fábrica "A Bohémia" foi dito:

"...Que aceitava a concessão feita pela senhoria do trespasse de arrendamento e venda dos utensílios, fornos e chaminé referidos, obrigando-se por si e pela empresa que representava ao cumprimento das condições e cláusulas constantes da escritura de arrendamento inicial..."

 

 

Da aludida escritura de arrendamento inicial consta que a Fábrica de Vidros do Côvo foi alugada "pelo prazo fixo e improrrogável de cinco anos, pela renda de um conto e quinhentos mil réis, a pagar em casa do senhorio em cinco prestações de trezentos mil réis cada uma, no dia um de Março de cada ano e / 62 / findo o prazo do arrendamento a empresa arrendatária é obrigada a entregar a fábrica arrendada nas condições em que a recebeu, sem que o senhorio seja obrigado a pagar qualquer indemnização por quaisquer benfeitorias feitas; caso a arrendatária não entregue a fábrica ao senhorio no dia um de Março de mil novecentos e dezassete, fica obrigado a pagar-lhe a quantia de cinco mil réis por dia, até que o despejo se realize, quer este seja amigável, quer seja judicial; o senhorio autoriza a empresa arrendatária a extrair da pedreira de seixo de Vermoim de Ossela a pedra de que necessite para o vidro que fabricar, sem que por ela tenha que pagar qualquer quantia, ficando também autorizada a utilizar o forno para calcinar seixo e o moinho para o moer, que o senhorio tem no lugar das Fuseiras e que fazem parte da mencionada quinta do Côvo."

Se durante os anos de 1913 e 1914 a Fábrica "A Bohémia" chamou a si os comerciantes de vidro do norte do País e alguns de Lisboa, nos primórdios de 1915, com a constituição da sociedade Santos, Braz & Almeida, Ld.ª e o relançamento devidamente organizado da Fábrica de Vidros de Bustelo, as encomendas começaram a repartir-se pelas duas fábricas, para, decorridos cerca de dois anos, os comerciantes passaram a dispor de quatro fábricas de vidro no Concelho de Oliveira de Azeméis: Fábrica de Bustelo, Fábrica "A Bohémia", Fábrica da Pereira e Fábrica do Cercal. Da "guerra" travada entre as quatro fábricas, a primeira a soçobrar foi a Fábrica da Pereira, (1920), seguindo-se-Ihe a Fábrica de Bustelo, (1922), e a Fábrica "A Bohémia" também não saiu incólume dessa luta, pois em 1920 começou a experimentar grandes dificuldades financeiras, a que não foi alheia uma administração perdulária e aparatosa, situação que levou o seu fundador e sócios a transaccioná-Ia em Janeiro de 1921, à Companhia Vidreira de Portugal.

Na mesma data (5 de Janeiro de 1921), e no mesmo cartório notarial, (Dr. António José de Oliveira Mourão, no Porto), em que foi oficializada a constituição da sociedade anónima Companhia Vidreira de Portugal, foi elaborada e subscrita a escritura de venda da Fábrica a Vapor de Crystaes e Vidraça "A Bohémia", Ld.ª àquela sociedade anónima. Outorgaram pela sociedade vendedora os seus sócios Francisco de Abreu e Sousa, Domingos Alexandrino Ferreira da Silva, Dr. Bento Ferreira da Silva Guimarães e Antero Ferreira de Araújo e Silva, este como / 63 / procurador da sua cunhada D. Emília Ferreira da Silva Guimarães e pela sociedade compradora os seus administradores João Pinto da Costa Bastos (Conde de Lumbrales) e Guilherme Sarsfield. Dessa escritura consta que a sociedade que os primeiros outorgantes representavam,

 

"... Vendem por esta escritura à Companhia Vidreira de Portugal que os segundos outorgantes representam os seguintes bens e direitos de sua propriedade; a) - Os terrenos, edifícios e pertences, existentes no lugar do Lações de Cima, da vila e Concelho de Oliveira de Azeméis, que confrontam pelo nascente e norte com caminhos públicos, pelo poente com a estrada de Carregosa e pelo sul com Rufino Leite Ribeiro e D. Maria Júlia Moreira, terrenos que são todos murados a pedra e cal, medem uma área de seis mil setecentos e cinquenta metros quadrados e dentro deles acham-se cinco armazéns telhados separados por paredes, servindo para fábrica de vidros, que constituem um só prédio, que não se acha ainda descrito na respectiva Conservatória; b) - Vários fornos, moldes, utensílios, carros, ferramentas e demais móveis, bem como semoventes, tudo descrito no inventário que fica assinado pelas duas partes; c) - Todos os objectos móveis existentes na Fábrica do Côvo, descritos no aludido inventário, bem como os direitos ao arrendamento desta fábrica feito com D. José de Castro e Lemos, arrendamento esse que finda em um de Março do ano próximo, (mil novecentos e vinte e dois), mas cuja prorrogação por mais cinco anos a sociedade primeira outorgante se obriga a conseguir em favor da Companhia, à segunda outorgante. Que todos os bens e valores acima mencionados, vende-os a sociedade primeira outorgante, livres de passivo, ónus ou encargos, à Companhia segunda outorgante, pelo preço global de duzentos e sessenta contos, / 64 / sendo cento quarenta e cinco contos em dinheiro, que já recebeu e de que dá quitação e cento e quinze contos a pagar, na mesma espécie, em três prestações iguais, nos prazos de quatro, oito e doze meses, contados da data desta escritura; d) - Os primeiros outorgantes obrigam-se a vender à Companhia segunda outorgante todas as matérias primas, lenhas e vidro fabricado que possui, logo após o respectivo inventário, a fazer com assistência dos representantes da compradora, sendo as matérias primas e lenhas vendidos pelo preço de custo, o vidro fabricado, mas não acabado, também pelo preço de custo, mas com a depreciação de quarenta por cento, para quebras e o vidro acabado pelo preço da tabela em vigor à data de um de Outubro de mil novecentos e vinte, com quarenta por cento de desconto, depois de abatidos todos os descontos que habitualmente se fazem aos compradores de artigos. Que finalmente, na venda ajustada e no dito seu preço global, foi compreendido um prédio rústico no lugar de Vermoim, freguesia de OsseIa, em que a sociedade vendedora explora seixo..."

 

 

Também em 5 de Janeiro de 1921, foi devidamente legalizado pelo notário Dr. António José de Oliveira Mourão um contrato particular entre a Companhia Vidreira de Portugal e Francisco de Abreu e Sousa e seu filho António de Abreu e Sousa Sobrinho, pelo qual aquela Companhia os contratou para o desempenho dos cargos de gerente e sub-gerente técnicos, respectivamente, das fábricas de vidro exploradas pela contratante, que eram a adquirida naquela data e a Fábrica do Côvo, em regime de arrendamento. Por se tratar de contrato que não foi exarado em escritura, não é hoje possível saber quais as cláusulas contratuais, mas as escrituras notariais anulando-o ensinam-nos que os dois contratados não podiam intervir em qualquer sociedade que se dedicasse ao fabrico de vidro, o que fizeram, originando a sua rescisão.

A partir da data, (27 de Março de 1923), em que pelo recibo n.º 788, passado / 65 / pela Tesouraria de Finanças de Oliveira de Azeméis se declarou que "Francisco de Abreu e Sousa, desta vila, pagou a quantia de mil e dez escudos e dez centavos pela compra que fez por dez mil escudos à firma Santos (Irmãos), Ld.ª., com sede em Lisboa, de um prédio composto de casas grandes e pequenas, com suas dependências e terreno, que constituem a Fábrica de Vidros de Bustelo, sito no lugar de Bustelo de São Roque", deixou de ser segredo que aquele persistente industrial vidreiro tinha adquirido a fábrica de que fora um dos fundadores. Concretizada a transacção em 3 de Abril de 1923, a Companhia Vidreira de Portugal impôs a Francisco de Abreu e Sousa a rescisão do contrato de trabalho que haviam subscrito. Assim, no dia 24 de Abril de 1923, no cartório do Dr. Artur da Silva Lino, no Porto, foi subscrito a escritura de rescisão do contrato de trabalho, nos seguintes termos:

 

 

"... Por contrato particular, devidamente legalizado no notário desta cidade Dr. António José de Oliveira Moudo, a Companhia Vidreira de Portugal realizou com Francisco de Abreu e Sousa e seu filho António de Abreu e Sousa Sobrinho um contrato pelo qual os contratou para os cargos de gerente e sub-gerente técnicos das fábricas de vidros que explorava. Que entre as cláusulas e condições desse contrato constava a proibição dos contratados intervirem em qualquer sociedade que explorasse indústria idêntica, bem como o de negociar directa ou indirectamente em vidro sob pena do contraventor pagar a indemnização convencional de trinta mil escudos. Que verificando-se ter sido infringido por parte do outorgante Francisco de Abreu e Sousa aquela disposição contratual vem pela presente escritura a Companhia Vidreira de Portugal e o segundo outorgante distratar e dar por findo para todos os efeitos de direito a partir de hoje o dito contrato já referido pelo que se tem como não existente a dita qualidade de gerente técnico, devendo quanto à parte de subgerente fazer-se oportunamente a respectiva distrate. Que / 66 / Francisco de Abreu e Sousa em satisfação da multa que é obrigado a pagar pela infracção da cláusula entregou durante este acto aos representantes da dita Companhia a importância de nove mil e cem escudos em dinheiro e mais cento e noventa acções da mesma Companhia Vidreira de Portugal, de valor real de vinte mil e novecentos escudos. Que assim, Francisco de Abreu e Sousa fica dispensado de exercer o cargo de gerente-técnico das fábricas de vidro exploradas pela aludida Companhia, da qual nada mais poderá exigir com fundamento no citado contrato..."

 

 

Em 27 de Abril de 1923, no mesmo cartório notarial, foi subscrita pela Companhia Vidreira de Portugal e António de Abreu e Sousa Sobrinho, a escritura de rescisão do contrato que este havia firmado conjuntamente com o seu Pai, de teor semelhante ao transcrito, mas sem a obrigatoriedade de liquidação de qualquer multa.

Em Março de 1923, porque a Companhia Vidreira de Portugal não procedeu no dia primeiro daquele mês ao pagamento da renda anual pela exploração da Fábrica de Vidros do Côvo, seu proprietário, por intermédio do causídico Albino Soares Pinto dos Reis Júnior, intentou uma acção de despejo, no Tribunal de Oliveira de Azeméis, contra aquela Companhia. Durante a sessão conciliatória, as duas partes chegaram a consenso, facto que levou à feitura de uma escritura de arrendamento e transacção, tendo sido esta subscrita em 14 de Março de 1923, no escritório do advogado do queixoso, aonde se deslocou o notário substituto Amadeu Soares Lopes. A esse acto compareceram como primeiro outorgante José Maria de Castro e Lemos, na qualidade de senhorio e como segundo outorgante João Pinto da Costa Bastos (Conde de Lumbrales) e Domingos Alexandrino Ferreira da Silva, como representantes e administradores da Companhia Vidreira de Portugal, perante os quais, pelo primeiro outorgante foi dito,

 

"... Que o despejo requerido por ele, não teve por determinante o propósito de aumentar a renda, aproveitando / 67 / se da falta de pagamento, pois que a renda continua a ser a anterior; essa determinante é puramente de ordem moral, pois quando foi feito o contrato de arrendamento em litígio não fazia parte da Companhia Vidreira de Portugal, a Fábrica de Vidros Progresso, Ld.ª que posteriormente veio a fundir-se com aquela. Assim, com a modificação de pessoal dirigente da nova sociedade reviveram atritos de ordem pessoal a que quis pôr termo com a acção de despejo; ele primeiro outorgante entende de um dever, manter-se fiel à atitude em que faleceu seu tio António de Castro e Lemos, em relação ao Administrador Fabril da Companhia Vidreira de Portugal, Augusto de Oliveira Guerra, casado, industrial, de São Tiago de Riba-UI deste concelho, de quem aliás não tem razões pessoais de menos consideração, mas nessa ordem de sentimentos, a presença daquele Guerra dentro da propriedade dele primeiro outorgante não era coerente com aquela atitude. Por esta razão, tendo movido a acção de despejo, aceitou pôr-lhe termo desde que o segundo outorgante assumisse a responsabilidade de evitar a emergência de situações desagradáveis com a presença do referido Guerra na propriedade do Côvo. Os segundos outorgantes, tendo reconhecido as razões expostas e tendo delas dado conhecimento ao mesmo Senhor Guerra, que por escrito, lhes apresentou o seu pedido de demissão de Gerente da Fábrica do Côvo, que eles aceitaram, comprometendo-se a responsabilizar-se porque se não verifique a entrada ou permanência do mesmo Senhor Guerra naquela propriedade e fábrica, considerando-se a infracção deste compromisso, como causa de despejo imediato, sem direito a indemnização que a lei estabelece em favor do arrendatário..."

 

 

O contrato de arrendamento junto aos autos da acção de despejo foi / 68 / declarado em vigor até 28 de Fevereiro de 1926, comprometendo-se ainda os segundos outorgantes, como garantia das cláusulas expressas, ao pagamento de cinco mil escudos por cada infracção dessas cláusulas, tendo o primeiro outorgante, em aditamento dito, "que esta quantia não é aqui exarada por desconfiança da honorabilidade de qualquer dos signatários deste contrato ou da entidade que os segundos outorgantes representam, que se reconhece serem pessoas de bem".

Por força do segredo profundo guardado pelos compositores das massas vitrificáveis, rareavam esses técnicos, pelo que a Companhia Vidreira de Portugal experimentou dificuldades, não conseguindo mesmo fazer substituir o seu Gerente Técnico, o qual acumulava as funções de compositor da Fábrica do Cercal e ainda das Fábricas "A Bohémia" e do Côvo, em substituição de Francisco de Abreu e Sousa.

O procedimento do proprietário da Fábrica de Vidros do Côvo, irmanado com o "quero, posso e mando" da época dos suseranos e vassalos, levou a que a chaminé do forno da anosa fábrica deixasse de fumegar, ainda em Março de 1923, mantendo-se porém em laboração, por mais uns meses, as secções oficinais, para acabamento, embalagem e expedição de vidro armazenado.

A Fábrica de Vidros do Côvo era nessa época a fábrica do Concelho de Oliveira de Azeméis aquela que melhores condições reunia para uma exploração rentável. Efectivamente a inesgotável reserva de lenhas para o aquecimento dos fornos, constituída pelos inúmeros pinheirais existentes na extensa quinta do Côvo, o quartzo de excelente qualidade de Vermoim de Ossela, principal matéria prima interveniente na composição do vidro, que pela curta distância a que era explorado entrava na fábrica a custos extremamente baixos, o barro branco do Côvo, explorado a céu aberto nas imediações da fábrica, que embora não fosse muito refractário, mas doseado com barro escuro de Boco (Vagos) permitia a moldagem de cadinhos e acessórios para os fornos muito resistentes a temperaturas elevadas e a água, do caudal permanente do Rio Antuã que accionando roda hidráulica existente na sua margem direita, permitia a moagem, com baixos custos, de todo o quartzo utilizado na fábrica, constituíam um conjunto de vantagens sobre as fábricas concorrentes, que pela inércia que sempre / 69 / acompanhou José Maria de Castro e Lemos desde o berço até ao sarcófago, nunca mais foram aproveitadas.

Paralisada a Fábrica de Vidros do Cercal e abandonada a Fábrica de Vidros do Côvo, a Companhia Vidreira de Portugal passou a manter somente em laboração no Concelho de Oliveira de Azeméis a Fábrica "A Bohémia". Nessa época, porém, depois de um desenvolvimento que teve tanto de vertiginoso, como de desordenado, o ciclo económico daquela sociedade anónima encontrava-se em elevado grau de decadência. Efectivamente, a Companhia Vidreira de Portugal, fundada em Janeiro de 1921 com um capital social de 300.000$00, elevou-o em Abril desse mesmo ano para 400.000$00, para em Janeiro de 1922 o fazer subir para 800.000$00 e em Agosto de 1923 o fixar em 4.000.000$00. Nesse mesmo período, aquela Companhia adquiriu em Janeiro de 1921 a Fábrica "A Bohémia", para no mesmo mês da 1922 comprar as fábricas do Cercal e da Pereira e em Abril desse ano adquirir a "Quinta de Lações ou do Antero ou do Castelo", (denominações constantes da escritura de venda), "de Lações", por se situar em Lações de Cima, "do Antero", por ter sido propriedade de Antero Ferreira de Araújo e Silva e "do Castelo" por o armazém de apoio à eira apresentar estilo arquitectónico imitando as residências fortificadas do tempo do feudalismo e o muro delimitador da propriedade ser ameado. Ainda em 1922 a Companhia Vidreira de Portugal enriqueceu o seu património adquirindo a Fábrica de Garrafas de Amora, também denominada por Fábrica de Vidro Rio Tejo, e ainda a Fábrica de Vidro Rio Douro, mais conhecida por Fábrica de Garrafas Rêgo Lameiro, situada em Campanhã – Porto.

O afrouxamento da progressão e o início da fase descendente da sociedade anónima em causa, a avaliar pelas vendas de imóveis efectuadas e pelas dívidas contraídas por recurso a empréstimos, começou a manifestar-se em 1925. Em Abril desse ano, a Companhia Vidreira de Portugal vendeu a Quinta do Castelo a António José da Silva Castro e em Maio de 1926 alienou as fábricas do Cercal, da Pereira e "A Bohémia" a uma sociedade que se constituiu para esse efeito; quanto ao recurso a empréstimos monetários, o primeiro, no montante de 400.000$00, foi-lhe concedido em 20 de Janeiro de 1926 pelo Banco Aliança, do Porto, de acordo com a escritura lavrada pelo notário Artur da Silva Uno, daquela cidade, / 70 / pela qual aquela Companhia assegurou àquele Banco, pelo seu empréstimo o cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades, hipotecando-lhe as suas fábricas de vidro Rêgo Lameiro, Cercal, Pereira e "A Bohémia", aceitando pagar-lhe pelo empréstimo, os juros à razão de treze por cento ao ano.

Em 26 de Janeiro de 1926, foi subscrita uma outra escritura, lavrada por aquele mesmo notário, para garantia de um empréstimo de 800.000$00, representado por dezasseis letras aceites pelo Conselho de Administração e avalizadas pelo accionista Alexandre José Sarsfield, pela qual foram hipotecadas ao avalista os mesmos imóveis e maquinismos que já haviam sido hipotecados ao Banco Aliança.

Em 15 de Abril de 1926, em reunião conjunta do Conselho de Administração e Conselho Fiscal da Companhia Vidreira do Portugal, depois de analisada a sua situação económico-financeira, foi deliberado que se efectuasse a venda das suas fábricas do Cercal, de Pereira e "A Bohémia". Em Assembleia-Geral Extraordinária, realizada em 29 do Abril de 1926, foi confirmada a deliberação dos Conselhos de Administração e Fiscal, conforme teor da respectiva acta, em que se inseriu,

 

"... Que foi deliberado, fosse feita a venda das fábricas possuídas pela Companhia em Amora e Oliveira de Azeméis, quando uma Comissão composta dos dez maiores accionistas, que não façam parte dos Conselhos de Administração e Fiscal, nem tenham ligações com a indústria vidreira, conjuntamente com aqueles Conselhos e depois de estudarem devidamente o assunto, o deliberarem por maioria..."

 

 

Pelos Administradores da Companhia Vidreira de Portugal – Guilherme Sarsfield e Raul da Silva Barbosa – quando de uma visita de rotina à Fábrica" A Bohémia", foi dado conhecimento ao seu Gerente-técnico – Augusto de Oliveira Guerra – da deliberação dos accionistas, tendo-lhe sido alvitrado a aquisição das três fábricas situadas no Concelho de Oliveira de Azeméis. Na ocasião, embora por estimativa, foram revelados elementos relacionados com o volume da transacção, montante a liquidar no acto da assinatura da escritura e prazo para a / 71 / regularização do remanescente. De posse de tais elementos, Augusto Guerra entrou em contacto com António de Bastos Nunes, com quem havia estabelecido laços de amizade e companheirismo, desde 1902, ano em que se instalou na hospedaria que seu Pai - Francisco Nunes - explorava na Praça José da Costa, hoje mais conhecida por Jardim Público. António de Bastos Nunes com larga experiência comercial e industrial alcançada pela sua actividade durante cerca de seis anos na Fábrica de Vidros do Covo, primeiro como empregado da sociedade Nunes, Abreu & C.ª, constituída pelo seu Pai, Francisco de Abreu e Sousa e António Maria de Castro e Lemos e depois, como sócio da firma Nunes, Rocha & C.ª, de que também fizeram parte António Carneiro da Rocha e D. Gaspar de Castro e Lemos (Conde do Côvo), era a pessoa indicada para colaborar com Augusto Guerra para a constituição de uma sociedade e aquisição das fábricas que a Companhia Vidreira de Portugal pretendia alienar.

Como o investimento ultrapassava a capacidade financeira dos dois amigos, impunha-se encontrar um terceiro parceiro; dadas as boas relações que ambos mantinham com José Dias de Carvalho que se sabia ser possuidor de avultado pecúlio, foi-lhe proposta a com participação na sociedade comercial a constituir. Sua esposa, Maria da Glória Aguiar Dias de Carvalho, (Ti' Quitas, como era conhecida), que vivia mirrada de saudades da sua única filha, pois por força do seu matrimónio em Julho de 1924 com Ramiro Gomes da Silva Mateiro passou a viver em Espinho, depois de ter persuadido seu renitente marido, propôs que fosse o seu genro a integrar a projectada sociedade comercial, realizando eles a quota que viesse a ser estipulada.

Conhecidas as condições propostas pela Companhia Vidreira de Portugal para a venda das suas fábricas de vidro situadas no Concelho de Oliveira de Azeméis e acordadas as bases para a constituição da sociedade por quotas que as iria adquirir, foram lavradas em 21 de Maio de 1926, duas escrituras notariais. Assim, no cartório do notário Artur da Silva Uno, no Porto,

 

 

"... Compareceram como outorgantes Augusto de Oliveira Guerra, Ramiro Gomes da Silva Mateiro e António de Bastos Nunes, este solteiro, maior, proprietário, aqueles / 72 / casados e industriais, todos moradores na Vila e Concelho de Oliveira de Azeméis, os quais declararam que pela presente escritura, constituem entre si uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada, nos termos e sob as condições constantes dos seguintes artigos. Primeiro: A presente sociedade tem por objecto a indústria vidreira e o comércio dos respectivos produtos e adopta a denominação de Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª., e tem a sua sede na Vila de Oliveira de Azeméis. Segundo: É indeterminada a duração da presente sociedade, a qual deverá considerar-se iniciada em um do corrente mês. Terceiro: O capital social é de quinhentos contos em dinheiro, sendo de vinte e cinco contos a quota do sócio António de Bastos Nunes e de duzentos e trinta e sete mil e quinhentos escudos a quota de cada um dos dois outros sócios Augusto de Oliveira Guerra e Ramiro Gomes da Silva Mateiro; todo este capital se acha realizado, exceptuando cento e trinta e sete mil e quinhentos escudos da quota de Augusto de Oliveira Guerra, que deverá entrar em caixa social com essa importância dentro de dois anos contados desta data, devendo aplicar a esse efeito todos os lucros que lhe couberem desta sociedade. Quarto: Todos os sócios são gerentes da sociedade, incumbindo a Augusto Guerra a direcção da parte técnica."

 

 

Subscrita a trasladada escritura, o notário Silva Uno e os três sócios do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª., dirigiram-se para as instalações do Banco Aliança, onde foi redigida e assinada a escritura de venda / compra das três fábricas de vidro do Concelho de Oliveira de Azeméis pertencentes à Companhia Vidreira de Portugal. Nesse instrumento notarial foi consignado como principal articulado,

 

"... Compareceram como outorgantes: Primeiro – / 73 / Guilherme Sarsfield, casado, capitalista e Raul da Silva Barbosa, casado, comerciante, ambos moradores no Porto, outorgando na qualidade de Administradores da Companhia Vidreira de Portugal, S.A.R.L., com sede no Porto e outorgando ainda o primeiro como procurador de seu Pai Alexandre José Sarsfield e outorgando o segundo na qualidade de sócio gerente da firma Barbosa & Almeida, com sede nesta cidade. Segundo – Augusto de Oliveira Guerra, Ramiro Gomes da Silva Mateiro e António de Bastos Nunes, todos moradores na Vila de Oliveira de Azeméis, outorgando os três por si individualmente e também como únicos sócios e gerente da sociedade denominada Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª, com sede naquela mesma Vila, constituída por escritura desta data, lavrada por mim. Terceiro – Carlos Guerreiro e Manuel Magalhães, casados, residentes nesta cidade, na qualidade de gerentes do Banco Aliança, S.A.R.L.. Os primeiros outorgantes declararam que de conformidade com as respectivas resoluções, tomadas pela Assembleia Geral da Companhia Vidreira de Portugal e pela Comissão por ela nomeada, vendem por esta mesma escritura à sociedade Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª, os seguintes haveres por aquela Companhia possuídos, como sua proprietária: a) - pelo preço de noventa contos, os prédios das suas fábricas de vidros, denominadas "A Bohémia", Progresso ou Cercal, aquela situada em Lações de Cima e esta no lugar do Cercal e o seu terreno da Pereira, tudo sito na Vila e Comarca de Oliveira de Azeméis; b) - pelo preço de oitocentos e dez contos, as máquinas, utensílios, aprestos e móveis, existentes nas ditas fábricas c) - pelo preço de sessenta e cinco mil setecentos vinte e um escudos e sessenta e nove centavos, as sodas, nitratos, óxidos, carvão, madeiras, lenhas e demais matérias primas e combustíveis, também / 74 / existentes nas designadas fábricas; d) - pelo preço de trinta e cinco mil novecentos e quatro escudos e sessenta e um centavos, todo o vidro ali existente. Que por conta da soma destes preços, num total de mil e um contos seiscentos vinte e seis escudos e trinta centavos, acaba a Companhia vendedora de receber da sociedade compradora a quantia de trezentos trinta e sete mil duzentos vinte e sete escudos e oitenta centavos, da qual lhe dá quitação; os restantes seiscentos sessenta e quatro mil trezentos noventa e oito escudos e cinquenta centavos deverão ser pagos à Companhia vendedora, pela sociedade compradora, nas seguintes prestações, que não vencerão juro algum: cem contos no dia vinte de Junho; duzentos contos no dia dezanove de Agosto; cem contos no dia dezoito de Setembro e duzentos sessenta e quatro mil trezentos noventa e oito escudos e cinquenta centavos no dia dezassete de Novembro, todas no corrente ano. Que o pagamento das designadas prestações do preço desta venda, fica assegurado com a hipoteca dos três prédios aqui vendidos e com o penhor dos maquinismos, utensílios, aprestos e móveis das fábricas neles instalados, dos quais os três segundos outorgantes se constituem fiéis depositários, com solidariedade entre si pelas obrigações e responsabilidades que lhes advêm de tal qualidade. Os primeiros outorgantes disseram ainda que por esta escritura, os seus representados renunciam à hipoteca na parte em que ela afecta os três prédios aqui vendidos, em garantia do pagamento de dezasseis saques aceites da Companhia no montante de oitocentos contos. Disseram por Último os terceiros outorgantes, que sendo o Banco que aqui representam, credor da Companhia Vidreira de Portugal, pela importância de quatrocentos contos, crédito assegurado com a hipoteca dos três prédios aqui vendidos, que pagando a / 75 / sociedade Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª ao Banco metade daquela importância, ou seja duzentos contos, o mesmo Banco se obriga a renunciar aquela hipoteca na parte em que esta afecta os ditos três prédios; que vencendo-se o mesmo crédito do Banco em vinte e um de Junho próximo, se nessa data aquele Centro Vidreiro amortizar o mesmo crédito com a quantia de cinquenta contos e pagar os juros de um semestre relativos a cento e cinquenta contos, o Banco será obrigado a prorrogar, por esse semestre, o prazo do pagamento desta importância; que finalmente, se o Centro Vidreiro pagar ao Banco, pela sobredita forma, o mencionado capital de duzentos contos e os aludidos juros, poderá o mesmo Centro Vidreiro descontar a importância da prestação atrás fixada para dezassete de Novembro próximo, o montante de tal desembolso..."

 

 

Em 18 de Junho de 1926, uma vez mais a Companhia Vidreira de Portugal recorreu a um empréstimo no montante de trezentos trinta e três mil setecentos e cinquenta escudos representados por quatro letras aceites, sendo três de cem mil escudos e uma de trinta e três mil setecentos e cinquenta escudos. Este empréstimo, foi concedido por Virgílio de Oliveira Mengo, comerciante no Porto, que cobrou o juro do quinze por cento ao ano, tendo ficada assegurada a sua liquidação com o penhor de novecentas e cinco mil cento e oitenta e uma garrafas pretas, armazenadas na Fábrica Rêgo Lameiro. A mercadoria dada de penhor ficou entregue a fiel depositário, a firma Barbosa & Almeida, tendo sido esta firma autorizada a vender garrafas, nas condições gerais de venda da Companhia, devendo porém entregar ao credor à medida que fosse fazendo a respectiva cobrança, um mínimo de cinquenta por cento do produto das vendas.
Um quarto empréstimo, no montante de duzentos e cinquenta mil escudos contraiu a Companhia Vidreira de Portugal, em 1 de Julho de 1926, concretizado pelo mesmo comerciante que facultou o empréstimo anterior. Em garantia do pagamento deste empréstimo, representado por quatro letras de sessenta e dois / 76 / mil e quinhentos escudos cada, a deficitária Companhia hipotecou os imobiliários e maquinismos que constituíam as suas fábricas de vidros situadas em Campanha e Amora.

Quando a nove! sociedade oliveirense tomou posse das três fábricas adquiridas à Companhia Vidreira de Portugal, também "A Bohémia" se encontrava paralisada há mais de três meses, por força de avaria grossa no forno e possivelmente, por motivos financeiros. O reinício da laboração daquela fábrica teve lugar no dia 4 de Junho do 1926, tendo este acontecimento sido noticiado no "Correio de Azeméis", no dia 10 daquele mês e ano, pela caneta do seu director Silvino Gonçalves de Sousa nos seguintes termos:

 

"Sob a denominação Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª, acaba de se constituir entre nós uma sociedade para compra e exploração das fábricas de vidro que a Companhia Vidreira de Portugal possuía em Oliveira de Azeméis - o que é, sem dúvida alguma, um facto muito digno de registo não só pela importância material que para a vida fabril do nosso Concelho disso resulta - como pelo emprego de muitas dezenas de operários que, em consequência da paralisação duma dessas fábricas e das dificuldades do momento, se encontravam sem trabalho, e, portanto, reduzidas à penúria. As referidas fábricas, "A Bohémia", desta Vila e "Progresso", de Santiago de Riba-Ul, são incontestavelmente duas importantes casas produtoras no género, que honram o nosso meio industrial e mesmo a vidraria de todo o País, quer pela quantidade de artigos que podem manufacturar, quer pela notável perfeição que alguns desses artigos têm atingido, que foram fundadas respectivamente pelos Srs. Francisco de Abreu e Sousa e Augusto de Oliveira Guerra, sendo mais tarde vendidas à Companhia Vidreira de Portugal que durante alguns anos as explorou e agora as vendeu à nova sociedade. Esta é composta / 77 / de individualidades que, pelo seu valor a dentro da indústria, lhe oferecem a maior garantia dum vasto futuro de progresso – por gente da nossa terra ou que da nossa terra fez o seu melhor centro de acção e actividade, honrando-a com o seu esforço – engrandecendo-a com o engrandecimento próprio: Augusto de Oliveira Guerra, técnico de vastos recursos e profundos conhecimentos da indústria granjeados em longos anos de labor assíduo e estudo prático – alia a estas preciosas aptidões tão necessárias a um industrial que o queira ser na verdadeira significação do termo – uma das mais extraordinárias organizações de trabalho, energia, arrojo e tenacidade que nos tem sido dado a conhecer. É como bem o podemos definir - o "self made man" dos americanos, o homem feito por si mesmo, para quem não há dificuldades que não se possam vencer e que, tendo-se insinuado na indústria que hoje domina com a sua longa prática, começando por ocupar os mais baixos postos operários, quis e conseguiu, por si só, exclusivamente, mercê das poderosas qualidades acima apontadas, elevar-se e fazer-se, gradualmente, o homem de hoje, marcante no meio industrial da nossa terra e na vidraria do País; Ramiro Mateiro – um novo cheio de ricas faculdades de trabalho, energia e inteligência, é, indubitavelmente, daqueles a quem está reservado o mais próspero porvir. Vindo de Espinho para aqui, a nossa terra só teve a lucrar com a sua inclusão no número dos seus filhos adoptivos, daqueles que trabalham, lutam e a engrandecem com a sua tenacidade e o seu trabalho, e, António de Bastos Nunes, o conhecido ex-comerciante da nossa praça ao ver-se novamente adentro da indústria que já em tempos explorou na velha fábrica do Côvo, há-de ser, por certo, com a sua larga experiência, um precioso colaborador dos dois primeiros societários. Tais são as individualidades / 78 / que constituem a nova firma e se encontra, doravante, à frente das conhecidas fábricas de vidro do nosso Concelho."

 

 

Usufruindo de condições favoráveis para relançar a Fábrica "A Bohémia", pois as três fábricas do Concelho de Oliveira de Azeméis, (Côvo, Bustelo e N.ª Sr.ª de La-Salette), que lhe podiam fazer concorrência encontravam-se encerradas, cumprindo um programa económico austero e a desmedida actividade dos três sócios, levaram a que ao cabo de meia dúzia de meses se vaticinasse que a constituição da sociedade Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª., resultaria em êxito. Tal situação, não pode ter deixado de influenciar o jovem (23 anos), Ramiro Gomes da Silva Mateiro a propor aos seus societários a cedência da sua quota, aduzindo o argumento de que após negociações, tinha apalavrada a aquisição da Fábrica de Vidros de Bustelo, que seria reactivada, logo após a oficialização da transacção.

De nada valeram as conselheiras palavras de Augusto Guerra e António Nunes, alicerçadas na citação dos insucessos de todas as sociedades que exploraram aquela fábrica - Abreu, Castro & C.ª, Santos, Braz & Almeida, ida. e Fábrica de Vidros "A Estrella", Ld.ª – para dissuadir Ramiro Mateiro daquilo que os seus sócios e amigos, cognominaram de aventura. O tempo - bastaram somente dois anos – não deixou de lhes dar razão...

Em 17 de Fevereiro de 1927, compareceram no cartório do notário Francisco Ferreira de Andrade os três sócios que antes dez meses haviam fundado a sociedade Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª., para subscreverem a escritura da cessão da quota que Ramiro Mateiro ia fazer àquela sociedade. Essa quota, de duzentos e trinta e sete mil e quinhentos escudos, que estava integralmente realizada, foi cedida por quatrocentos mil escudos, com pagamento em quatro prestações iguais de cem mil escudos cada uma, com vencimentos em trinta e um de Dezembro de mil novecentos e vinte e sete, a segunda em trinta de Abril, a terceira em trinta e um de Agosto e a quarta em trinta de Novembro do ano de mil novecentos e vinte e oito, que não venceram juro algum. O pagamento das designadas prestações foi assegurado com a hipoteca das três fábricas e penhor dos seus equipamentos, de que Augusto Guerra e António / 80 / Nunes, na qualidade de gerentes e legítimos representantes do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª., em seu nome individual, se constituíram fieis depositários dos haveres dados de penhor, tendo ainda sido exarado na escritura em questão, "que em vista da cessão feita, deixa o outorgante Ramiro Mateiro de ter interferência na gerência da sociedade, a partir desta data."

 

   
 

1926 – Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª (Fábrica de Vidros "A Bohémia") - pág. 79

 

 

Em Novembro de 1928, no cartório de Francisco Ferreira de Andrade foi lavrada e assinada uma escritura de quitação, em que outorgaram Ramiro Gomes da Silva Mateiro e António de Bastos Nunes, este na qualidade de gerente do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª., tendo o primeiro declarado,

 

"... Que recebeu neste acto, do segundo outorgante, na qualidade que o mesmo representa, a importância da quarta e Última prestação - cem contos - vencida hoje, da qual dá quitação à sociedade que o mesmo segundo outorgante representa, autorizando o cancelamento do registo hipotecário..."

 

Após a oficialização notarial da imprevista decisão de Ramiro Gomes da Silva Mateiro, produto de uma amálgama de imaturidade, ingratidão, oportunismo e ambição, os dois sócios do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, ida. viram recrudescer as dificuldades para a estabilização do ousado empreendimento em que se comprometeram. Analisada a situação, chegaram à conclusão de que era imprescindível a admissão de um sócio que garantisse a manutenção do mesmo capital social, para assim, o movimento industrial e comercial da sociedade não ser afectado.

Aventados diversos nomes, o comerciante lisboeta António Braz encabeçou a relação dos indivíduos a convidar, já porque as suas disponibilidades financeiras permitiam realizar a dinheiro a quota que lhe fosse estipulada, já por que na qualidade de grande comerciante retalhista e grossista de louças e vidros, o escoamento de parte dos artigos manufacturados em estabelecimento industrial de que fosse sócio, ficaria assegurado. Todavia, as esperanças que os dois sócios sustentavam de António Braz vir a integrar a sociedade eram remotas, por força / 81 / do insucesso da firma comercial de que fez parte – Santos, Braz & Almeida, Ld.ª – que havia explorado a Fábrica de Vidros de Bustelo.

As boas relações existentes entre António Braz e Augusto de Oliveira Guerra, que despontaram quando este técnico foi seu colaborador na fábrica de Bustelo e se desenvolveram quando aquele comerciante passou a ser o principal cliente da Fábrica de Vidros Progresso, Ld.ª, levaram a que Augusto Guerra se deslocasse a Lisboa para convidar aquele comerciante a fazer parte da sociedade Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª. Obtida a sua concordância, foi subscrita em 21 de Março de 1927 no cartório do notário oliveirense Francisco Ferreira de Andrade a escritura em que os sócios Augusto de Oliveira Guerra e António de Bastos Nunes concordaram, ao abrigo do preceituado no contrato social, na admissão de António Braz para a sociedade. Assim, foi mantido o capital social de quinhentos mil escudos em dinheiro integralmente realizado, sendo de duzentos e noventa mil escudos a quota do sócio Augusto Guerra, de cento e cinquenta e cinco mil escudos a quota do sócio António Braz e de cinquenta e cinco mil escudos a quota do sócio António Nunes. O novo sócio, tal como os demais sócios, foi também considerado gerente.

Nessa época, os comerciantes de vidro de uso doméstico, dispunham de diversas fábricas na Marinha Grande para se abastecerem, das quais duas delas - Fábrica Nova e Nacional Fábrica de Vidros, denominada a partir de 1954 por Fábrica Escola Irmãos Stephens - suplantavam em todos os aspectos as restantes. A primeira daquelas fábricas, depois de uma prolongada paralisação, retomou a laboração em 1926, sob a responsabilidade de uma sociedade que para esse efeito se constituiu – Companhia Industrial Portuguesa – com o apoio da Companhia Geral de Crédito Predial Português, e os seus artigos de requintada qualidade e beleza começaram a aparecer à venda por todo o País. Quanto à segunda daquelas fábricas, perante o completo fracasso que foi a sua socialização, (Decreto-Lei n.º 5406, de Abril de 1919, que confiou a fábrica a uma comissão composta por 3 operários, 2 vereadores do Município local e 2 representantes do Estado, sendo um técnico e outro administrativo), sabia-se que estava para breve a publicação de legislação alterando a regulamentação para a sua exploração e administração, o que veio a acontecer em]aneiro de 1928, (Decreto-Lei n.º 14834 determinando / 82 / que a fábrica passasse a ser dirigida por um administrador, assistido por uma comissão consultiva constituída por um inspector do corpo de engenharia industrial, um operário, um delegado da Direcção dos Serviços Florestais e Agrícolas, um delegado da Direcção Geral da Contabilidade Pública e um Vereador do Município local). Assim, era mais que certo que o pandemónio reinante na fábrica do Estado e promotor de prejuízos contínuos que o erário público ia solvendo, teria que acabar, pelo que era previsível o surgimento de luta sem tréguas pela manutenção e conquista de mercados, entre as fábricas radicadas na Marinha Grande e implicitamente a fábrica "A Bohémia".

Subscrita a escritura de admissão de António Braz, os três sócios reuniram-se demoradamente para debater variados assuntos e estabelecer directrizes para levar a bom termo a sociedade. Tendo sido abordado o problema da concorrência que iriam enfrentar, todos os sócios foram de opinião que alguém da sociedade visitasse com certa periodicidade os seus clientes e procurasse angariar outros, pelo menos até que em Lisboa e Porto fossem criadas delegações. O sócio Augusto Guerra disponibilizou-se para efectuar essas visitas, mas para isso impunha-se que fosse admitido alguém que durante as suas ausências o substituísse como compositor das massas vitrificáveis e controlasse a sua fusão. Sugeriu então aquele sócio, que pela inactividade em que se encontrava e pela larga experiência e competência que reunia, se convidasse Francisco de Abreu e Sousa para desempenhar tais funções, o que veio a fazer com toda a assiduidade e maior dedicação, apesar da sua avançada idade, até cerca de meio ano antes do seu falecimento, que se registou em 9 de Outubro de 1940 com a provecta idade de oitenta e quatro e meio anos, pois nasceu em 15 de Março de 1855.

Os três sócios do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª sabiam sobejamente que tinham pela frente tarefa extremamente difícil e não ignoravam o seu agravamento, a curto prazo, com a entrada em laboração da fábrica de Bustelo. Mas reunindo superiores dotes de competência técnico-comercial, com vontades unidas, com os esforços empreendidos, sacrifícios amontoados e energias consumidas, a dura luta foi vencida, alcançando a fábrica "A Bohémia" grande prestígio, conseguindo com a qualidade dos seus artigos colocar-se em situação preponderante na indústria vidreira nacional.

 

/ 83 / A receada concorrência da fábrica de Bustelo, reactivada em fins de 1928 por Ramiro Gomes da Silva Mateiro e explorada posteriormente pela sociedade por quotas Vidreira Portuguesa, Ld.ª, constituída em Setembro de 1929 pelos irmãos Gomes Mateiro — Ramiro e Júlio — não chegou a ser a temida concorrente, pois ao cabo de um ano, aqueles dois inexperientes industriais vidreiros haviam “cavado um buraco” financeiro de tamanha grandeza, que se não fora a intervenção dos dois sócios do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª — Augusto Guerra e António Nunes — a intensas súplicas dos sogros e grandes credores de Ramiro Mateiro, a fábrica de vidros de Bustelo teria deixado sem meios de subsistência e pela quarta vez em pouco mais de vinte e cinco anos, todos os seus operários e os seus problemas financeiros, seriam certamente resolvidos com a interpretação do parágrafo no Código Comercial Português, por Síndico indigitado pelo Ministério Público.

Ainda não tinham de corrido dois anos sobre a data em que foi subscrita a escritura notarial, pela qual o Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª, se associou à Vidreira Portuguesa, Ld.ª com a finalidade de,

 

“... fomentar o seu desenvolvimento no sentido de operar no mais limitado espaço de tempo e se de consolidar em bases sólidas a sua reconstrução económica...”

 

 

quando se deu o passamento de Ramiro Gomes da Silva Mateiro. E se a situação financeira da Vidreira Portuguesa, Ld.ª era altamente deficitária, ela agravou-se ainda mais, após a recepção, em resposta a convites publicados na imprensa, de débitos que não se encontravam contabilizados, caso do casal Dias de Carvalho, da ordem dos quatrocentos a quinhentos mil escudos e da firma comercial António Sereno & C.ª, de Espinho, no montante de duzentos e sessenta e cinco mil quinhentos e setenta escudos, dívida esta liquidada em 30 de Novembro de1932 por escritura lavrada no cartório Sá e Couto e entrega a Manuel Joaquim Simões Pedro, credenciado por aquela firma, de vinte e quatro letras de câmbio, aceites por António de Bastos Nunes, na qualidade de gerente do Centro Vidreiro e avalizadas por António Braz.

/ 84 / Com as duas alterações do pacto social da sociedade Vidreira Portuguesa, Ld.ª – a primeira, com a entrada do Centro Vidreiro para a sociedade e a segunda, por força do passamento do seu fundador e principal sócio – Júlio Gomes da Silva Mateiro prescindindo do direito de opção na cessão de quota, que lhe conferia o artigo quinto da escritura da constituição da sociedade que subscreveu com seu irmão, passou a dedicar-se a outra profissão, decidindo-se pela indústria hoteleira. Para isso constituiu com António de Almeida Salviano Campos de Melo uma sociedade por quotas denominada Leão, Ld.ª, com a finalidade de explorar o comércio de café e restaurante. A escritura foi subscrita em 3 de Março de 1933 no cartório do notário Dr. António Sá Couto, com um capital social de dez mil escudos, correspondente à soma de duas quotas iguais. Na mesma data e cartório notarial foi subscrita uma outra escritura, pela qual Eduardo Alves Dias Paul trespassou o estabelecimento que havia fundado na Rua Dr. Bento Carqueja – Café-Restaurante Leão – à sociedade Leão, Lda.

Não será imaginação asseverar que o Sindicato dos Operários Vidreiros do Distrito de Aveiro começou a ser "cozinhado" por Júlio Mateiro no Café-Restaurante Leão exteriorizando assim as ideias sindicalistas, da ordem e da organização, que sempre soube manter, (sua carta inserta no Correio de Azeméis, de 15 de Abril de 1933). O nonagenário Isidro Pereira de Pinho, que foi um exímio vidreiro, como hoje já não existem, comunista convicto e leal, pois apesar de tudo, ainda não mudou de "camisola", sindicalista desde a primeira hora, já que fez parte da comissão organizadora e da primeira direcção do Sindicato dos Vidreiros, em entrevista concedida ao jornal "O Azemel" n.º 35, de Abril de 1981, exprimiu-se sobre os primórdios daquele Sindicato como segue:

 

"... O Sindicato dos Operários Vidreiros do Distrito de Aveiro, nasceu em 1932, sendo o Gomes, como nós lhe chamávamos, um dos principais elementos. Foi ele quem chamou o Magalhães, vidreiro da Marinha Grande, que pertencia ao Sindicato de lá o que esteve cá a ajudar a formar o nosso. Foi então tomar conta do Café Leão com um sócio e aí começou a germinar nele a ideia do Sindicato para se / 85 / desforrar do Guerra. Lembro-me perfeitamente dele a dizer aos operários da fábrica do Guerra: Vocês não sabem a força que têm! Uni-vos! Os nossos interesses eram outros, nós queríamos ganhar melhor o pão. Ele estava de fora a picar-nos, porque não tinha nada a temer. De fora, porque como já não estava a trabalhar no vidro, não podia pertencer ao Sindicato... "

 

 

Por despacho do Sub-Secretário de Estado das Corporações e Previdência Social - Pedro Theotónio Pereira – datado de 15 de Fevereiro de 1934, foram aprovados os Estatutos do Sindicato Nacional dos Vidreiros e Ofícios Correlativos do Distrito de Aveiro. Em 1933, porém, já o Sindicato dos Vidreiros estava actuante, pois mesmo violando o Art.º 392 da Constituição Política da República Portuguesa (nas relações económicas entre o Capital e o Trabalho não é permitida a suspensão da actividade por qualquer das partes com o fim de fazer vingar os respectivos interesses), levou os trabalhadores a responder com a greve à não concordância da entidade patronal para a reivindicação apresentada e relacionada com a uniformatização das tabelas salariais às praticadas na Marinha Grande. A essa greve se referiu Izidro Pereira de Pinho, na aludida entrevista, nos seguintes termos:

 

"... Foi em 1933 e estivemos oito dias em greve de braços caídos. Nós em Bustelo parámos primeiro, os de lá de baixo, da Bohémia, ainda trabalharam umas horas, mas depois pararam também e só voltaram a trabalhar quando nós também voltámos. Nós ouvimos de tudo, mas não nos deixámos impressionar. E o que é certo, talvez pela nossa união, conseguimos vencer. Não vieram os aumentos como nós queríamos, mas vieram aumentos..."

 

 

Durante os dias de greve, perante a passividade das autoridades administrativas e policiais, por motivos unicamente políticos, registaram-se a / 86 / coberto do anonimato, algumas atitudes irmanadas com ideias extremistas e revolucionárias, que contribuíram em parte, para que nesse mesmo ano se operasse uma mudança profunda dos elementos que constituíam e dirigiam o Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª. O veneno inculcado pelo mentor aos membros que constituíam a comissão organizadora do Sindicato e a diversos vidreiros, fizeram esquecer a esses trabalhadores, quanto haviam sofrido por diversas vezes, ao longo das suas carreiras profissionais, com o aventureirismo incompetente de pseudo industriais vidreiros. Essa intoxicação, pelo quanto continha de incompreensão e ingratidão, desanimou e desmotivou Augusto de Oliveira Guerra, levando-o, bem contra a vontade dos seus sócios António Braz e António de Bastos Nunes a desligar-se da sociedade de que foi fundador em 21 de Maio de 1926.

Em cumprimento do Art.º 6° da escritura notarial da constituição da sociedade Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Lda, (na cessão de qualquer quota a estranhos, terão os consócios do cedente direito de opção), sem que qualquer dos sócios tivesse exercido aquele direito, Augusto de Oliveira Guerra propôs ao seu amigo Alípio das Neves Morais Matias, industrial vidreiro na Marinha Grande a cedência da sua quota. Com a interferência deste industrial a transacção da quota concretizou-se a favor de José Emílio Raposo Magalhães, banqueiro e proprietário em Alcobaça, por escritura pública lavrada pelo notário daquela localidade, Dr. Alberto Henriques Vila Nova, registada em 29 de Agosto de 1933 na Conservatória de Registo Comercial de Oliveira de Azeméis.

Com o afastamento de Augusto Guerra, veio para Oliveira de Azeméis Alípio Morais, para desempenhar a função de gerente do Centro Vidreiro, que mantinha então em laboração as Fábricas de Bustelo e a "A Bohémia". Acompanhou-o, como seu auxiliar, António de Sousa Magalhães, filho bastardo de José Emílio Raposo Magalhães, que viria a estar envolvido na saída da sociedade de António de Bastos Nunes. Efectivamente, com génese na rotura das relações de António Nunes / António Magalhães, aquele sócio fundador do Centro Vidreiro, cedeu a sua quota de cinquenta e cinco mil escudos ao banqueiro de Alcobaça, que todavia a fez averbar em nome do seu filho aperfilhado. Com esta segunda alteração dos societários, manteve-se porém o Capital Social de quinhentos mil escudos, / 87 / distribuído por José Emílio Raposo Magalhães (290.000$00), António Braz (155.000$00) e António de Sousa Magalhães (55.000$00).

Nos primórdios de 1934, com a aprovação dos Estatutos do Sindicato dos Vidreiros, realizou-se a primeira Assembleia Geral, de que foi lavrada a Acta n2 1, do seguinte teor:

 

"Aos onze dias de Março de mil novecentos e trinta e quatro, pelas dez horas, reuniram-se na sede da delegação do Sindicato Nacional dos Vidreiros e Ofícios Correlativos do Distrito de Aveiro, os operários das fábricas de vidro, em Assembleia Geral, afim de votarem a Direcção. Tendo-se procedido à eleição, ficou eleita por unanimidade a lista apresentada e que são os abaixo assinados, depois de terem escolhido entre si os cargos a desempenhar. Atenderam-se umas pequenas reclamações e projectou-se um passeio educativo para ser levado a efeito dentro de curto prazo e que foi bem aceite. O Presidente pedindo a palavra e depois de uma breve alocução, fez oferta de uma prenda a Júlio Mateiro, que estava presente. Aproveitando a passagem do seu aniversário manifestaram-lhe assim o agradecimento de todos os operários que lhe estão gratos pelo trabalho que teve para com este Sindicato até o lançar a bom caminho e solidamente. Este acto foi coroado com um estrondoso viva. Ficou marcada nova reunião para o próximo dia dezoito. Oliveira de Azeméis, 11 de Março de 1934. A Direcção - Presidente: Ernesto Teixeira Marinho, 12 Secretário: Duarte Alves da Costa, Tesoureiro: Manuel de Oliveira Júnior, 12 Vogal: Gaspar José da Costa, 22 Vogal: Renato Baridó. Assembleia Geral -Presidente: José Pinto, 12 Secretário: Pedro Correia de Pinho, 22 Secretário: Izidro Pereira de Pinho."

 

 

Foi bem curta a passagem como sócio do Centro Vidreiro do Norte de / 88 / Portugal, Ld.ª do banqueiro Raposo Magalhães e de seu filho António. Efectivamente, se em 14 de Julho de 1933, no cartório notarial do Dr. José Peres de Noronha Galvão, em Lisboa, foi subscrito por Augusto de Oliveira Guerra um contrato de promessa de venda da sua quota, em que foi exarado:

 

"... O outorgante Augusto de Oliveira Guerra é dono e legítimo possuidor de uma quota de duzentos e noventa mil escudos, na sociedade por quotas, denominada Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Lda, com sede em Oliveira de Azeméis, a qual se encontra inteiramente realizada e livre de qualquer encargo ou penhor. Que tem ajustada com o outorgante José Emílio Raposo Magalhães a cessão da referida quota, pela importância de mil e novecentos contos, preço em que estão incluídos a parte dos lucros que pelo balanço pertencem à quota do cedente e bem assim a sua parte no fundo de reservas..."

 

e se em 10 de Agosto de 1933 se processou a substituição do transcrito contrato, por escritura notarial, de que consta,
 

"... Conforme o ajustado agora entre os outorgantes Augusto de Oliveira Guerra e José Emílio Raposo Magalhães, o primeiro cede ao segundo a quota de duzentos e noventa mil escudos que possui na sociedade comercial por quotas denominada Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Lda, com sede em Oliveira de Azeméis; que o preço da cessão é a quantia de mil e novecentos contos, que já recebeu do cessionário e de que lhe confere a correspondente quitação, pelo que coloca o cessionário no seu lugar, obrigando-se a responder pela cessão nos termos de direito..."


decorridos que foram dois e meio anos, provavelmente porque os resultados / 89 / financeiros anuais fixaram-se aquém das previsões, o banqueiro de Alcobaça, numa das suas deslocações a Lisboa, contactou o seu societário António Braz e propôs-lhe a cedência das duas quotas que possuía no Centro Vidreiro – a sua e a do seu filho. António Braz, ao revelar a Augusto Guerra a proposta que Raposo Magalhães lhe havia feito, propôs àquele seu amigo e ex-sócio, que com ele se associasse para a aquisição das quotas oferecidas. Obtida a concordância do fundador da sociedade Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª ficou António Braz de ultimar as negociações, que viriam a ser oficializadas em 5 de Março de 1936, por escritura notarial lavrada em Alcobaça, pelo notário Dr. Alberto Henrique Vila Nova, que insere como articulado principal:

 

"... O sócio outorgante José Emílio Raposo Magalhães resolveu dividir a sua quota social de duzentos e noventa mil escudos, integralmente realizada, em duas: uma de duzentos e cinquenta mil escudos para a ceder a Augusto de Oliveira Guerra e outra de quarenta mil escudos, para a ceder a António Braz. Pelo sócio outorgante António de Sousa Magalhães foi dito que a sua quota de cinquenta e cinco mil escudos, integralmente realizada, a cede a António Braz. Mais disseram os dois outorgantes cedentes, que estas cessões as fazem, com todos os correspondentes direitos e obrigações, incluindo naquelas as respectivas partes nos fundos de reserva, pelos preços de quinhentos e dezassete mil e trezentos escudos e oitenta e dois mil e setecentos escudos, respectivamente, preços estes que receberam e de que dão as respectivas quitações. Que assim, colocam os cessionários no lugar deles cedentes quanto às quotas cedidas no Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª..."

 

 

Por escritura lavrada na mesma data e pelo mesmo notário, foram alterados alguns artigos do pacto social do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª. Manteve-se o capital de quinhentos mil escudos, correspondente à soma da quota / 90 / de António Braz, de duzentos e cinquenta mil escudos, (quota de cento e cinquenta e cinco mil escudos, que já possuía, outra de quarenta mil escudos, adquirida a Raposo Magalhães e outra de cinquenta e cinco mil escudos, adquirida a Sousa Magalhães) e da quota de duzentos e cinquenta mil escudos de Augusto de Oliveira Guerra, adquirida ao banqueiro de Alcobaça. Por tal instrumento notarial, foram conferidos aos dois sócios poderes de gerente, podendo o sócio António Braz exercer todo e qualquer ramo de comércio ou indústria, mesmo que fosse idêntico a algum que a sociedade explorasse, enquanto o sócio Augusto Guerra não podia intervir, quer directa, quer indirectamente, tanto individualmente, como associado em indústria similar. Foi ainda considerado que no caso de falecimento de qualquer dos sócios, subsistiria a sociedade com os herdeiros, que nomeariam entre si um que os representaria, se assim quisessem continuar; caso contrário, o sócio sobrevivo pagaria àqueles em dez prestações semestrais e iguais, a respectiva quota, acrescida da sua parte nos lucros do exercício então corrente, calculados em proporção aos apurados em igual período do último balanço.

Foi efémero o pacto social subscrito por António Braz e Augusto de Oliveira Guerra, na qualidade de únicos societários do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª. Por força das funções que António Braz exercia, superintendendo os sectores económico-comerciais, sendo da responsabilidade do seu sócio os serviços técnico-sociais, aquele comerciante de Lisboa deslocava-se frequentemente a Oliveira de Azeméis. Numa dessas deslocações, à saída do comboio em Espinho, foi acometido de doença súbita diagnosticada na Casa de Saúde do Dr. Gomes de Almeida de hemorragia cerebral, que o viria a vitimar em 28 de Novembro de 1937.

António Braz, filho de Manuel Braz e de Rosária Maria, nasceu em Pussos, concelho de Alvaiázere, distrito de Leiria, em 2 de Outubro de 1865. Do seu casamento com Maria Angélica Menezes da Cunha Pinto, natural de Pangim, Índia Portuguesa, de quem se divorciou em 1912, nasceram quatro filhos que ficaram sob custódia do pai. À data do seu falecimento, a situação profissional e estado civil dos filhos de António Braz era: Joaquim Braz, comerciante, casado com Amélia de Barros Braz, doméstica; Maria Emília de Menezes Braz Garrido, / 91 / doméstica, casada com José Maria Aurélio Garrido y Garrido, comerciante, natural de Fornelos de Montes - Espanha; Rosa de Menezes Braz e Carmen de Menezes Braz, domésticas, solteiras.

Quando do passamento de António Braz, já o fundador do Sindicato dos Vidreiros do Distrito de Aveiro havia cedido a António de Bastos Nunes, por escritura notarial datada de 11 de Abril de 1934 a sua quota no Café-Restaurante Leão, abalando para Lisboa, em busca de maneira de viver menos trabalhosa e mais rendosa. Em data quase coincidente - 16 de Abril de 1934 - o Dr. Afonso Abragão, Delegado em Aveiro do Instituto Nacional do Trabalho, aceitando convite que lhe havia sido endereçado, deslocou-se a Oliveira de Azeméis, para proferir uma palestra na sede do Sindicato dos Vidreiros. Antes, porém, o Delegado do I.N.T., cumprindo instruções emanadas do "padrinho" de Loureiro, (o que confirma a afirmação proferida pelo membro da Direcção do Sindicato dos Vidreiros, Isidro de Pinho, inserta no jornal "O Azemel" n.º 35: "Ele estava de fora a picar-nos, porque não tinha nada a temer, já que tinha as costas quentes pelo padrinho, o Dr. Albino que estava ligado ao Governo"), encaminhou-se para a residência do Dr. Manuel Valente e ambos se dirigiram para o Café-Restaurante Leão, onde, pelo sócio António Campos de Melo tomaram conhecimento da decisão de Júlio Gomes da Silva Mateiro, que em Lisboa viria a ser figura altamente influente no processo de partilha do vasto e variado espólio deixado por António Braz, constituído por haveres de vária espécie – prédios urbanos e rústicos, lojas comerciais, quotas em sociedades industriais, etc.. A sua divisão pelos quatro herdeiros não foi tão fácil como seria de esperar de irmãos que sempre viveram muito unidos e na melhor das harmonias. A oposição sistemática às propostas apresentadas por Joaquim Braz, tendentes a que lhe fosse destinada na partilha a quota de duzentos e cinquenta mil escudos que seu falecido pai possuía no Centro Vidreiro, a que foi atribuído, bem como à do seu sócio Augusto Guerra o valor de um milhão e duzentos mil escudos, levou aquele herdeiro a admitir o recurso a partilhas judiciais, conforme sua carta endereçada a Augusto Guerra, datada de 24 de Fevereiro de 1938, do seguinte teor:

 

"... Calcule que continua aquela pessoa a espalhar as suas / 92 / intenções aventureiristas nada abandonando, antes pelo contrário acompanhando passo a passo todo o andamento de tudo isto. Ontem fui ao Advogado e qual não foi o meu espanto quando o encontro lá. O Dr. voltou a confirmar-me as suas intenções e que está disposto a manter as suas pretensões. Veja o meu amigo em que situação me encontro. Todos me aconselham a ceder para evitar o que penso fazer, ou seja, requerer partilhas judiciais e demorar anos a resolver isto ou então entregar-lhe eu essa parte. Ninguém se conforma e todos fazem as suas apreciações desfavoráveis a ele, mas o que é certo é que não vejo resolução plausível para esta encravada situação..."

 

Em segunda carta que Joaquim Braz endereçou a Augusto Guerra, para lhe dar conta do que se havia passado na última reunião de herdeiros, consta:

 

"... Ontem, na reunião de família não calcula o meu amigo a luta que tive que sustentar com aquela pessoa quando valorizaram e pediram pela parte do Centro Vidreiro dois mil contos. Falei bastante da estúpida exigência e acabei por lhes dizer que lhes entregava eu essa minha parte. No entanto, por mais que eu até abatesse, ninguém lhe quis pegar. Propuseram-me então entrarmos todos para o Centro Vidreiro, mas eu repudiei essa ideia; ou eu pelo justo valor ou então eles pelo que me tinham pedido. Depois de muito batalhar ofereci mais vinte contos a cada um, ou sejam mais sessenta contos para todos; acharam pouco. Também já propus entregar-lhes as lojas de Alcântara e a da Rua dos Remédios e ainda a parte a que tenho direito na Esmaltagem de Espinho e porque o valor da minha parte e sem valorizações já é superior à das minhas irmãs, não posso aceitar receber uma herança e ficar ainda com dívidas enormes..."

 

/ 93 / É incontestável que o valor de dois mil contos atribuídos à quota de António Braz, quando contabilisticamente foi considerado o valor de mil e duzentos contos, não foi, nem mais, nem menos, do que uma fracção do plano germinado seis anos antes, prenhe de ódio profundo, matreirice e maquiavelice.

Perante a posição irredutível do porta-voz das três irmãs, Joaquim Braz desistiu da sua pretensão, pelo que a quota do seu falecido pai, ficou a pertencer às suas irmãs Emília, Rosa e Carmen, que de acordo com a letra da escritura notarial alterando alguns artigos do pacto social do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, ida., subscrita em 5 de Março de 1936 por António Braz e Augusto de Oliveira Guerra, ficaram com poderes para nomear quem as representaria, como gerente, em paralelo com o sócio sobrevivo. Sabia-se, que por amorismo, sentimentalismo e solidariedade, a escolha das irmãs Braz, recairia naquele a quem Joaquim Braz se referia por aquela pessoa. Por razões mais que óbvias e apesar de Augusto Guerra ter a sua posição assegurada por escritura notarial - económica e profissional – a sua personalidade não podia pactuar com tal nomeação, pelo que, decidiu ceder a sua quota às três filhas de António Braz. Assim, em 14 de Maio de 1938, no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis, foi subscrita a escritura pela qual Augusto de Oliveira Guerra cedeu a sua quota no Centro Vidreiro do Norte de Portugal, ida., no montante de duzentos e cinquenta mil escudos a José Maria Aurélio Garrido y Garrido / Emília de Menezes Braz Garrido e a Rosa de Menezes Braz e Carmen de Menezes Braz, representadas no acto por procuração passada a seu cunhado. A venda da quota foi realizada pelo valor contabilístico um milhão e duzentos mil escudos – com regularização nas seguintes condições: Trezentos mil escudos em moeda corrente no acto da assinatura da escritura, uma letra de cem mil escudos com vencimento a 90 dias de prazo e oito letras de cem mil escudos cada uma, com vencimentos em Novembro de 1938 Maio e Novembro de 1939, Maio e Novembro de 1940, Maio e Novembro de 1941 e Maio de 1942.

Concretizada a alienação da quota de Augusto Guerra, assumiu a gerência do Centro Vidreiro, na qualidade de colaborador das irmãs Braz, Júlio Gomes da Silva Mateiro. Esta situação profissional, viria a alterar-se em 7 de Agosto de 1938, ao ser lavrado pelo ajudante do Conservador do Registo Civil de Lisboa, o Registo de Casamento, no regime de comunhão geral de bens, de Rosa de Menezes Braz / 94 / com Júlio Mateiro, passando assim este a ser comproprietário do grupo Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª. Como o capital social da sociedade, no montante de quinhentos mil escudos não era divisível por três, em 7 de Janeiro de 1939, por escritura notarial subscrita em Oliveira de Azeméis, processou-se o aumento do capital para quinhentos e dez mil escudos e a sua subdivisão em três quotas de cento e setenta mil escudos cada uma, que ficaram pertença das três irmãs Braz. Pelo mesmo instrumento notarial foram nomeados gerentes os dois concunhados.

Em 27 de Maio de 1963, Carmen de Menezes Braz Barbosa, que havia contraído matrimónio com Augusto Gomes Barbosa, comerciante em Lisboa, por escritura notarial subscrita em Oliveira de Azeméis pelo seu bastante procurador Catolino Dias Pinto, casado, guarda-livros, cederam a sua quota de cento e setenta mil escudos, em partes iguais, aos seus cunhados e sócios, liquidando cada um, a importância de cem mil escudos. A sociedade comercial Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª, passou assim a ser pertença exclusivamente, por via matrimonial, de José Maria Aurélio Garrido y Garrido e Júlio Gomes da Silva Mateiro, com quotas iguais de duzentos e cinquenta e cinco mil cada uma. Na mesma data 27, de Maio de 1963 – e na mesma Secretaria Notarial, foi subscrita pelo dois sócios do Centro Vidreiro, uma outra escritura de reforço do capital, da qual consta:

 

"... Que tendo deliberado elevar o capital da referida sociedade para três milhões de escudos, de mútuo acordo vêm realizar esse aumento, subscrevendo cada sócio as seguintes importâncias: José Maria Aurélio Garrido y Garrido, um milhão duzentos e quarenta e cinco mil escudos e Júlio Gomes da Silva Mateiro, um milhão duzentos e quarenta e cinco mil escudos. Que em consequência deste reforço, deliberaram alterar o artigo quarto do pacto social que passa a ter a seguinte redacção: o capital social é de três milhões de escudos, integralmente realizado, representado pelos valores sociais, como consta da respectiva escrita e / 95 / corresponde às quotas que os sócios subscreveram e que são de um milhão e quinhentos mil escudos de cada um, tendo o capital já entrado na caixa social..."

 

Em 1964, os sócios da sociedade comercial Centro Vidreiro deliberaram passá-la para sociedade anónima de responsabilidade. Como, por imperativo da Lei (Artº 1622 do Código Comercial), as sociedades anónimas só se podiam constituir com pelo menos dez associados, em 29 de Dezembro de 1964, no 22 Cartório Notarial de Lisboa, a cargo do notário Dr. António Lopes Fernandes Costa, perante Afonso Martins Soares da Costa, primeiro ajudante na plenitude do exercício de funções por motivo de licença do notário, foi subscrita uma escritura de divisão e cessão de quotas: Júlio Gomes da Silva Mateiro dividiu a sua quota em cinco novas quotas, uma de um milhão quatrocentos e setenta mil escudos que para si reservou, cedendo uma quota de dez mil escudos a sua cunhada Maria Emília de Menezes Braz Garrido, outra de dez mil escudos que cedeu a Joaquim Iglezias Gonçalves, outra de cinco mil escudos, que cedeu a Maria Lealdina Pereira de Pinho Henriques, ambos funcionários da sociedade e uma de cinco mil escudos que cedeu ao Dr. Manuel Pereira Ferreira Pinto, advogado em Oliveira de Azeméis. Por seu lado, José Maria Aurélio Garrido y Garrido, dividiu a sua quota em cinco novas quotas, sendo uma de um milhão quatrocentos e sessenta mil escudos, que reservou para si e quatro de dez mil escudos cada uma, que cedeu respectivamente a Catolino Dias Pinto, Joaquim da Silva Lêdo, cunhados de Júlio Mateiro e funcionários da sociedade, Maria de Lourdes Braz Garrido Narciso, sua única filha e a José de Matos Craveiro Narciso, seu genro. As cessões, com os correspondentes direitos e obrigações, foram feitas por preços iguais aos valores nominais das quotas cedidas.

Cumpridas as cláusulas contidas no Código Comercial para a constituição de sociedades anónimas, por escritura notarial lavrada em 14 de Janeiro de 1965, mas que para os efeitos admissíveis foi considerada com início em 1 de Janeiro, foi elevado de três milhões de escudos para nove milhões de escudos o capital social do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, Ld.ª e simultaneamente transformada em sociedade anónima de responsabilidade limitada, com o capital / 96 / de nove milhões de escudos, integralmente realizado e representado por 9.000 acções de valor nominal de mil escudos cada uma. Dos seus Estatutos, publicados em 22 de Fevereiro de 1965 no Diário do Governo - III Série, consta do Art.º 26º "são desde já designados para administradores os accionistas Júlio Gomes da Silva Mateiro e José Maria Aurélio Garrido y Garrido.

Por despacho do Sub-secretário de Estado do Orçamento de 16 de Fevereiro de 1968, deliberação da Assembleia Geral de 27 de Março de 1968 e escritura subscrita na Secretaria Notarial de Oliveira de Azeméis, em 29 de Abril de 1968, o capital social do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, S.A.R.L, foi aumentado de nove milhões de escudos, para trinta milhões de escudos, por incorporação dos fundos de reserva, representados por trinta mil acções de valor nominal de mil escudos cada, ficando as novas acções assim distribuídas: Júlio Gomes da Silva Mateiro, sete milhões e quinhentos mil escudos, de acções nominativas e três milhões de escudos, de acções ao portador e José Maria Aurélio Garrido y Garrido, cinco milhões e quinhentos mil escudos, de acções nominativas e cinco milhões de escudos de acções ao portador.

 

* * *

 

Ultrapassadas uma infinidade de dificuldades, quase insuperáveis, que teriam desmotivado outra força moral, consegui ao longo de alguns anos, à custa de perseverança, cansaço e despesas reunir avultada soma de documentos relacionados com a indústria vidreira no Concelho de Oliveira de Azeméis, que tornados públicos, facilitarão as investigações e pesquisas aos historiadoras. Ofereço, pois, o que tenho e que considero bastante, feito com isenção, verdade e humildade, para merecer, se não agradecimentos, pelo menos a indulgência dos que ignorantes estavam sobre a indústria vidreira no Concelho de Oliveira de Azeméis.

Aos detractores, que vão certamente surgir, deixo-lhes o meu natural desprezo.

 

Aveiro, 1991/1994.

 

 

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