A Recuperação da fragata "D. Fernando II e Glória", in: "Revista da Armada", n.º 305 e 306, Jan. e Fev. 1998.


3. AS FASES DO PROJECTO DE RECUPERAÇÃO
REVISTA DA ARMADA”, n.º 305, Janeiro 1998, pág. 19

A 1.ª fase foi constituída pelos estudos preliminares, pela dragagem da zona em que o navio esteve encalhado, limpeza e preparação do casco, com o recurso a mergulhadores da Marinha, efectuando-se a operação de flutuação com recurso a cilindros rígidos fabricados para o efeito. Foi a 22 de Janeiro de 1992 que o casco da fragata "D. FERNANDO" foi posto a flutuar e removido do local em que se encontrava encalhado e meio afundado (Rio Tejo/Mar da Palha) para a doca seca na Lisnave, na Margueira, gentilmente cedida para o efeito, sem quaisquer encargos.

A reboque para o Arsenal do Alfeite em Janeiro de 1992.

A 2.ª fase, então iniciada, consistiu, após a flutuação e colocação em doca seca, na desmontagem das peças em mau estado da estrutura remanescente do navio. Seguidamente o navio foi levado para o plano inclinado do Arsenal do Alfeite para se proceder à consolidação da estrutura para o seu posterior transporte. Esse processo moroso só foi concluído em Setembro de 1992, sendo então o remanescente do navio, depois de devidamente inspeccionado, transportado na doca flutuante do Arsenal do Alfeite, a reboque para o estaleiro "Ria-Marine" em Aveiro, onde se iniciaram os trabalhos de restauro estrutural segundo os planos originais existentes, dando-se, pois início à 3.ª fase. (Ver fotografias)

Navio atracado  ao cais do Arsenal antes de seguir para doca seca da Lisnave, em Fevereiro de 1992.

Convém salientar que, no período de Outubro de 1992 a Julho de 1993, os trabalhos em estaleiro estiveram interrompidos por razões de ordem administrativa, visto faltarem as autorizações do Ministério das Finanças e visto do Tribunal de Contas para que o contrato efectivo com o Estaleiro fosse celebrado e pudessem então prosseguir os trabalhos.

Será também de divulgar que, na fase de estudo e investigação decorrente desde o início do projecto, foram consultados mais de 20.000 documentos sobre o navio existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Geral de Marinha e ainda outros avulsos cedidos por particulares que os disponibilizaram ao serviço da Comissão. Também foram consultadas centenas de obras e publicações sobre a construção naval da época e por diversas vezes foram efectuadas visitas de estudo e pesquisa de elementos a navios estrangeiros. Poderemos citar, por exemplo, visitas de membros da Comissão aos Estados Unidos da América (navios "Constitution" e "Constellation"), Reino Unido ("Victory", Gannet" e "Trincomalee") e Dinamarca ("Julland"). Alguns destes navios, como o "Constitution" são um pouco mais antigos (cerca de 1790) que a Fragata "D. Fernando", que começou a ser construída em 1833, mas também como a construção naval estava menos adiantada que a dos Estados Unidos, assim a nossa "D. Fernando" tinha praticamente a mesma tecnologia que a "Constitution".

     
 

Na doca seca da Lisnave em 10 de Fevereiro de 1992.

 

Os restos do navio já com flutuadores colocados, em Dezembro de 1992.

 

Assim esse navio e os seus planos têm servido de fonte de inspiração, bem com todas as outras visitas a navios dessa época já restaurados e os contactos com especialistas na procura de soluções para alguns problemas e detalhes técnicos acabaram por se tornar muito importantes.

A 3.ª fase inicia-se a 3 de Julho de 1993, no estaleiro Ria-Marine, compreendendo o restauro estrutural do navio segundo a traça original, que termina com o relançamento à água efectuado em 8 de Abril de 1997. O navio seguiu a reboque partindo do estaleiro no dia 1 de Maio e chegando ao Tejo com destino ao Arsenal do Alfeite no dia 3 de Maio.

Esta fase é talvez a mais importante de todo o processo e por isso dado o seu alto detalhe técnico entrevistámos o Comandante Martins e Silva, Presidente da Comissão Executiva. (M.S.)
 

ENTREVISTA

REVISTA DA ARMADA”, n.º 305, Janeiro 1998, pág. 20.

R. A : Que preparativos foram necessários efectuar nesta fase?
M. S : Nesta fase foi necessário proceder a uma investigação bastante aprofundada para se poder restaurar e refazer a estrutura em termos de casco, pois havia elementos que estavam em falta. Da estrutura básica do navio, temos os elementos que começam por ser aqueles que ainda estavam no Iodo e, para proceder a essa investigação, o AA montou uma estrutura tubular metálica para se fazer um levantamento daquilo que conhecíamos menos bem, que era a parte da estrutura do navio sobre a quilha, e esses elementos estavam lá. Para além disso, há imensos pormenores e detalhes técnicos que não vou aqui referir, pois a linguagem técnica é complicada, e são centenas de detalhes, o que teve de ser investigado pouco a pouco, e depois à medida que o restauro ia sendo feito, verificava-se que o estaleiro ia pondo dificuldades por falta de soluções, ou encalhando em certos detalhes que a Comissão Executiva e o Arsenal do Alfeite procuravam estudar e dar solução, em função dos trabalhos de investigação que tínhamos feito. Curiosamente, o Estaleiro que é um estaleiro simples, às vezes chegava-se lá, e íamos lá várias vezes, e víamos indivíduos de aspecto muito simples, de lápis atrás da orelha, debruçados na minúcia dos planos do navio e a partir daí executavam a traça das peças, etc., ou seja, indivíduos com grandes conhecimentos práticos na área da construção naval de madeira a fazerem estes trabalhos.

     
  A fragata na carreira do estaleiro Ria-Marine, em Aveiro, aguardando o início do restauro estrutural (14 de Março de 1993).   Cavername do navio em execução no estaleiro Ria-Marine, em Aveiro.  

R. A: Que pessoal especializado esteve envolvido nestes trabalhos?
M. S: Podia começar por referir o mestre do estaleiro, Alberto Costa, o grande impulsionador e dinamizador de toda esta equipa, que envolvia em média cerca de 32 carpinteiros navais, e em período de ponta no máximo 45, incluindo ainda 3 calafates para a calafetagem do costado e pavimentos. Via-se que eram todos indivíduos com uma enorme experiência na carpintaria naval de madeiras, mesmo nesta zona e noutras a que se recorreu como Vila do Conde e Figueira da Foz, conseguindo ultrapassar dificuldades que, a nós, Comissão Técnica, deixava por vezes aterrorizados com a perspectiva de não os poder resolver.

Assim, o estaleiro foi buscar gente a esses locais de forte tradição de construção naval de madeira, até porque há especialidades de que já só existem operários em número muito reduzido.

R. A: E como decorria o ritmo dos trabalhos?
M. S: Estes trabalhos avançavam penosamente, como não podia deixar de ser, e eu recordo, por exemplo, que só o montar das balizas era uma operação grandiosa, pois cada baliza pesava centenas de quilos, e portanto fazer peças com aquela dimensão e peso, colocá-las no lugar, encaixá-las ao milímetro, era uma operação delicada que dava gosto ver executar.

A Comissão a partir de certa altura, contratou uma empresa especializada para filmar em vídeo todas as operações realizadas no restauro do navio e isso é um documento importante, porque ficará registado para a posteridade todo o processo.

Como ia dizendo, foram-se ultrapassando, passo a passo, as diversas dificuldades e, sendo o estaleiro artesanal e ao ar livre, os trabalhos sofreram bastante com as condições do tempo, sendo interrompidos em épocas de chuva e intempéries em que não se podia trabalhar. Uma construção naval de madeira, em estaleiro a céu aberto, forçosamente seria influenciada nestas épocas de Inverno rigoroso, com atrasos e prejuízos, como, por exemplo, as dilatações da madeira, que alteravam as suas dimensões, e quando se iam montar as peças não encaixavam, e havia que esperar que retomassem a sua dimensão normal, etc.

   
 

Aspecto da fragata na carreira do estaleiro Ria-Marine, em Aveiro (22 de Novembro de 1995).

 

R. A: Cite-nos agora algumas peripécias ou motivos de curiosidade durante os trabalhos em estaleiro.
M. S: Podia contar coisas curiosas, por exemplo, as tábuas do forro exterior do costado têm 8 metros de comprimento, e 30 centímetros de largura, indo até à zona de flutuação que se chama cintado, que é a zona mais forte do costado, em que a espessura chegava a 17 centímetros, ou seja, para colocar uma tábua destas no lugar com cavilhas à volta de 60 centímetros de comprimento, envolvendo peças com centenas de quilos a movimentar é realmente uma operação muito delicada.

Sobre o trabalho de restauro estrutural há ainda um aspecto a salientar; inicialmente, pensava-se que o remanescente do navio iria para Aveiro a reboque com flutuadores, mas depois, por decisão do CEMA de então, Almirante Fuzeta da Ponte, considerou-se que era um risco muito grande esse transporte, pelo que a hipótese de seguir em doca flutuante foi considerada melhor. Realmente era um risco grande se tivesse sido assim, dado que a quilha estava muito fragilizada à popa, pois houve que cortar cerca de 10 a 15 metros de quilha e com a emenda feita passou a ser um ponto fraco. Para garantir a segurança, foi executada uma segunda sobre-quilha, que é uma peça em madeira com várias toneladas de peso. Isto era para dizer que para montar a quilha, sobre-quilha e 2.ª sobre-quilha houve que colocar cavilhas de cobre de 2 metros de comprimento, ou seja, furar e colocar cavilhas destas dimensões em peças com este peso, é realmente um trabalho fora do vulgar. Outra curiosidade é que, enquanto os mastros do traquete e do grande vão à sobre-quilha, o mastro da gata (de ré) fica ao nível da coberta, detalhe de construção naval, para o qual os especialistas ainda não encontraram justificação. Mas, na realidade, em todos os grandes veleiros conhecidos assim era. O mastro da gata até tem de construção uma ligeira inclinação para ré, que é visível do exterior.

R. A: Fale-nos agora das linhas gerais de actuação nesta última fase no Arsenal do Alfeite.
M. S: Falando agora sobre a 4.ª fase do projecto, que é esta que está actualmente em curso no Arsenal do Alfeite, queria em primeiro lugar fazer uma referência muito justa à Marinha, graças às decisões dos sucessivos Chefes do Estado-Maior da Armada, de nesta fase final do projecto terem isentado os custos de mão-de-obra do Arsenal do Alfeite. Por outro lado, sem a capacidade técnica do Arsenal do Alfeite, não teria sido possível realizar estes trabalhos em tempo e com a qualidade que lhes é reconhecida. Neste momento está-se a aproveitar toda a mão-de-obra disponível em áreas da construção em madeira, visto o Arsenal ainda dispor de antigos especialistas com uma capacidade, diria mesmo artesanal, que em grandes empresas já não é possível encontrar.

Por outro lado, também foi possível arranjar um grupo de especialistas da Marinha que executam toda a parte do aparelho do navio, que é um trabalho extraordinário. Este conjunto de pessoal especializado do Arsenal e a equipa da Marinha é que têm tornado possível este quase milagre da recuperação e restauro do navio no Arsenal.

Neste momento, o navio tem já colocados os 4 mastros reais, os mastaréus da gávea, está-se e executar o "beque" à proa, os alforges à popa, as portinholas das peças de artilharia, também os berços das peças que estão quase todos prontos, etc.

As peças de artilharia estão a ser fundidas numa empresa portuguesa contratada e algumas delas já se encontram no Arsenal. Também a compartimentação interior está em grande parte pronta. Quanto às embarcações do navio, duas já estão prontas e três estão a ser ultimadas. Toda a parte do poleame é executado em França, pois não havia nenhuma empresa portuguesa para o executar, e tem chegado com alguns atrasos.

O massame está a ser executado pela tal já referida equipa de Marinha, dirigida pelo Comte Eira e tendo como principal encarregado o Sargento-Ajudante de Manobra José Manuel Bernardo, que é um marinheiro extraordinário, com dezenas de anos de mar, que eu bem conheço desde os cursos de I. T. E. de manobra, pois fui dos seus primeiros instrutores. Curiosamente, ele próprio é um ex-aluno da fragata D. Fernando.


 

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