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O Homem do Mar

Francisco não cabia em si, de contente. A mulher da sua vida, essa a quem há anos prometera o coração, acedera, por fim, ao seu pedido.

Iam casar em Novembro, depois que cada um terminasse a safra desse ano, a primeira (apesar dos quase vinte e seis anos de idade) em que iriam ganhar para si.

Nos lares onde lhes deram a vida e a educação, nunca foram permitidas duas carteiras. Enquanto solteiros, tudo o que ganharam foi entregue aos pais, até ao último tostão. Sabiam que seria preciso baterem o pé, para que lhes fossem dados os últimos ordenados. Mas tinha que ser. Agora que tinham decidido meter-se no mundo, era preciso dinheiro para começar a aventura, que se adivinhava farta de tudo, menos de bonança...

Angelina foi a Alcochete fazer seis meses na secagem do bacalhau e ele, farto da miséria da Ria de Aveiro, das safras no Tejo e nas traineiras de Matosinhos, decidiu-se a ingressar na frota bacalhoeira, que uma vez por ano avançava para os mares da Terra Nova, onde já andavam os irmãos mais velhos, numa epopeia que foi sina comum a tantos filhos da terra.

Estreou-se a bordo do navio "Capitão João Vilarinho", decorria o ano de 1957. A faina começou em meados de Março, no Porto de Setúbal, onde encheram os porões de sal, passando depois por Lisboa, a abastecer de mantimentos, fazendo-se ao mar nos primeiros dias de Abril.

Com o coração nas mãos, negro como uma amora, disse adeus aos seus e à terra amada, prometendo-lhes voltar em breve, apesar de ambas as partes saberem que tal promessa poderia não se cumprir.

Chegaram ao pesqueiro numa quinta-feira, mas nesse dia o capitão Ramalheira, homem de crenças e superstições, não quis arrear botes. Tinha sido nessa data que, anos antes, um submarino alemão bombardeara e fundeara o "Maria da Glória", sobre seu comando, matando-lhe dezasseis homens.

No dia seguinte, ao toque dos louvados e depois de preparado o "trol", a companha correu para os botes, a arrear, fazendo o sinal da cruz, ao bater nas vagas do mar inquieto.

Nesse dia, as coisas não correriam bem a Francisco. Como se não bastasse o enjoo causado pela ondulação e pelo cheiro do isco (sardinha e cavala, trazidas de Portugal), abriram-se-lhe ainda os pulsos, impossibilitando-o de remar.

Abriu então a vela e deixou-se levar pela brisa, enquanto soltava as linhas, já iscadas.

Na primeira alagem, vieram dezassete peixes. Nada mau para um marinheiro de primeira viagem. Mas, num instante, o tempo mudou e ele deixou de ver os companheiros mais próximos, acabando também por perder de vista o barco, de que apenas ouvia o chamamento, cada vez mais distante, até se perder de vez...

Sem rumo e quase sem esperança, soltou ancora. Enrolou o mastro e as locas do bote com o pano da vela e fez um molhe, que amarrou ao cabo da ancora, ligeiramente antes da proa, para que o mar partisse ali, antes de alcançar o bote. Com sorte, este aguentaria a rebentação, salvando-o de uma morte anunciada.

E assim passou o resto do dia e a noite seguinte; molhado, gelado e assustado, com o credo na boca, até ser resgatado, dezoito horas depois.

A estreia trouxe-lhe a noite mais aterradora da sua vida, mas não o demoveu da condição de provedor, antes dando-lhe coragem para se insurgir contra ventos e marés, que havia de perseguir por mais de quatro décadas, sempre com a intenção de dar o melhor aos seus.

Hoje, de olhos postos no passado, o Homem do Mar faz contas à vida, sem se arrepender do que foi, ou do que fez, lamentando apenas os oitenta anos, que "passaram num instante" e que o impedem de começar de novo...

Francisco José Rito

3 de Fevereiro de 2013

 

 

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