A TURQUESA

 

PELA PRINCESA BIBESCO

ILUSTRAÇÕES DE MÁMÍA GAMEIRO

ENIDE, mulher de lord Thame, governador de Seringapatan, possuía uma pedra azul dum grande valor moral, por isso se não separava dela, nem para dormir, nem sequer para tomar banho. Era uma pedra verdadeiramente azul, uma turquesa viva. Enide tinha-a adquirido na Pérsia, onde a cor azul é elevada às nuvens; encontra-se envolvendo as mais altas torres e em todos os lugares onde os peixes vermelhos nadam no azul; é a cor do tempo que não muda e do amor invariavelmente fiel.

Entre os persas, povo supersticioso, uma turquesa é apreciada enquanto se conserva azul, como uma mulher enquanto é nova: amar e apreciar constituem uma palavra única. O país nem por isso deixa de contar uma enorme quantidade de houris em decadência, e os negociantes de pedras preciosas têm por hábito exercer o seu comércio em bazares escuros como fornos à luz mentirosa de candeias: à noite, todas as turquesas são azuis.

Os que vendem essas pedras que mudam de cor costumam dizer aos que as compram que elas caíram do céu e simbolizam as variantes do amor dos homens, longas ou breves. O manhoso negociante que vendera a Enide o seu quinhão de felicidade tinha-lhe dito: «Compra esta, se queres ser sempre amada. É azul como o olho da lebre, azul como a língua do papagaio, azul como a estrela da manhã. Não mudará de cor senão quando o amor de Medjoûa mudar para Leila».

Na Pérsia não se conta às crianças senão uma história de amor, sempre a mesma: a de Medjoûa e de Leila. Eles são os amantes célebres do Oriente, porque se amaram um dia e depois eternamente.

A estes povos do Oriente o milagre pareceu tão grande, o amor eterno uma invenção de tal modo admirável que, desde então, toda a gente fala nele sem que alguém o tivesse visto repetido.

Na véspera do dia seguinte ao do seu casamento, / 38 / Enide tinha dito a lord Thame, seu marido, mostrando-lhe a pedra azul: «Meu amor, isto é um talismã. Se um dia deixares de me querer, ou se o meu amor por ti diminuir, esta pedra mudará imediatamente de cor: tornar-se-á verde e morrerá». Ora seu marido, olhando atento a jóia, reparou que a pedra não era já completamente azul. Mas nada disse...

Enide e seu marido haviam casado, contra todas as vontades e oposições, cada um por si, e Deus por todos quantos tentaram contrariá-los.

A primeira vez que se tinham encontrado fora num jardim de Teheran, em casa de Sir John O'Kelly, ministro da Inglaterra na Pérsia, tio de Enide. Tudo devia separá-los e acima de tudo os seus itinerários: lord Thame voltava das Índias pelo caminho do Golfo Pérsico; Enide vinha do Mar Cáspio com destino a Espanha. E depois, a diferença de idades: Lord Thame tinha atingido cinquenta anos, conquanto o não parecesse; Enide ia completar vinte anos. Isto dava bem nas vistas. Além destas divergências, havia entre eles dois abismos: ele era inglês, ela irlandesa; ele era casado, ela era católica. Por último, lord Thame, tendo começado a sua carreira por uma repressão na Irlanda, que custara a vida a vinte mancebos, entre os quais se contava o pai de Enide, era mais que provável que ela lhe devia o ser filha póstuma. Ambos evitaram abordar, mesmo de leve, este assunto escabroso, sem quererem aprofundar o abismo. Mas lord Thame cometeu uma imprudência: Enide havia descalçado as luvas para servir o chá no jardim. Todo o tempo que durou a sua visita, ele acariciou, como se fossem um casal de tenros passarinhos, esse par de luvas domesticadas. Não teve coragem de lhas restituir. Ela olhava-o, deslumbrada, como se esta acção, absolutamente maquinal, inspirada a um homem que vinha de longe impelido pelo desejo de rever a Europa, tivesse sido resultante de uma grande coragem. E repetia dentro do seu coração: «Que ousadia! Mas como é que se atreve?» e não se movia mais do que um pássaro hipnotizado, com receio de que o encantamento acabasse.

Um ano passou sobre a recordação desta carícia indirecta sem a apagar. Enide tinha voltado para a Irlanda, o país sempre verde...

Em 19... a notícia dum atentado frustrado nas Índias chegou à Europa e deu lugar a aparecer em todos os jornais de Inglaterra a fotografia de lord Thame. Enide concluiu dos comentários da imprensa que ele estava bom e escreveu-lhe uma carta felicitando-o por haver escapado ao assassínio, mas não recebeu resposta. Então resolveu escrever-lhe todos os dias. É inconveniente uma rapariga manter correspondência com um estranho, mas desde o momento em que só ela escrevia, deixava de haver correspondência.

Quando se tornaram a ver foi uma noite na baía de Aden. Apenas o viu, Enide correu a lançar-se-lhe nos braços. Ele disse-lhe: «Meu querido amor! Há-de ser enterrada em Hill-Hall, no norte da Escócia, onde a terra é vermelha!»

Foi a sua declaração e foi assim que a pediu em casamento. Voltando das Índias havia perdido sua mulher, desde muito doente. E, por excesso de precaução, tinha-a perdido no mar. O caixão fora lançado ao Oceano Índico. O lugar estava livre; livre também em / 39 / Hill-Hall, no cemitério de aldeia onde ficavam os jazigos dos chefes, na mesma terra.

Os amigos das duas famílias esgotaram-se em predições desgraçadas:

– Que loucura desposar uma rapariga tão nova! – diziam as viúvas escocesas.

– Que sacrilégio casar com o assassino de seu pai! – diziam os irlandeses.

Ninguém em Dublin, nem em Edimburgo, recordou o exemplo de Chimène; talvez até o ignorassem. À saída da igreja, lord Thame tinha jurado a sua mulher não que a amaria sempre, o que seria apenas uma vulgaridade, mas que se faria amar toda a vida, voto mais difícil de pronunciar.

A nova lady Thame teve o cuidado de se vestir severamente de cetim preto e lã cinzenta. O pintor que fizera o seu retrato havia-lhe dito que estes tons eram particularmente propícios para fazer sobressair o azul. De facto, sobre o fundo sombrio do seu vestido só a turquesa ressaltava.

– Não procure parecer mais velha, meu amor, tinha-lhe dito o marido no decorrer de uma das sessões de pose. E acrescentou: Um coração que quer conservar-se fiel não receia a mocidade.

Pouco tempo depois do casamento, aprouve ao Primeiro Ministro nomear lord Thame governador da cidade e província de Trichnapur, com residência em Seringapatan. Quando ali desembarcaram foram recebidos com honras quase divinas. Mas, apenas instalados no palácio do Governo, lord Thame disse a sua mulher:

– A cidade não é tão segura como parece, minha querida. Para despistar as conjurações dos Maltaia, não devemos dar a conhecer o lugar onde todas às noites nos encontraremos. Para maior segurança, minha alma, esse lugar não será o mesmo duas noites seguidas. Durante o dia, só em público a poderei ver, e apenas às horas das refeições.

Enide ficou cheia de medo escutando as palavras de seu marido. Passou daí em diante os dias esperando as misteriosas instruções que pela tarde lhe eram trazidas por um criado hindu da confiança do marido. Ora, tinha que se dirigir à meia noite para um pequenino aposento que lhe fazia lembrar os quartos mobilados dos arredores de Londres, tendo para isso que atravessar os subterrâneos blindados dum banco; ora a conduziam, vestida de bailadeira, ao átrio dum velho templo abandonado, onde encontrava o marido vestido como Harun-al-Rasehid, quando visitava, disfarçado em mendigo, a sua cidade de Bagdad. Na noite seguinte era levada para a casa das máquinas dum grande jornal e metida num elevador que a transportava ao terraço dum edifício moderno, transformado em jardim. Aí achava-se lord Thame disfarçado em vendedor de jornais.

Outra noite o encontro era marcado para uma plantação de palmeiras. Acomodada sobre o dorso dum elefante, tinha que andar dez léguas por campos desabitados para encontrar o marido, que a esperava, como Jacob a Rebeca, junto de um poço, ao luar. Outra, ainda, ia à pesca ao candeio e no barqueiro reconhecia os traços do marido.

Uma ou duas bombas rebentaram à passagem do governador, nas primeiras semanas, justificando estas / 40 / precauções. Lord Thame garantia a sua mulher que o palácio estava minado e que bastaria uma pequenina faísca para o fazer ir pelos ares. Mas Enide só receava o incidente à noite, depois de os guardas terem adormecido. Estava muito apaixonada para poder raciocinar, e mesmo o raciocínio não era o seu forte, como provara com o casamento.

Receando que, pela repetição, ela se habituasse a esses perigos e perdesse o efeito salutar, lord Thame abandona-a pretextando longas inspecções na enorme província, justificadas por fantasiosas notícias, especialmente destinadas à mulher do governador anunciando rebeliões por toda a parte. Assim, Enide não vivia, ou antes, vivia duplamente, como todas as pessoas que receiam pela vida do ente amado. A pedra azul brilhava intensamente.

Uma única mulher conheceu uma existência de apaixonada semelhante à de Enide: a czarina Alexandra Féodorovna, esposa do imperador Alexandre Nicolau da Rússia. As suas condições oferecem grande semelhança, apenas com esta diferença: lord Thame era de certo modo o principal inventor dos perigos de morte que corria e o maquinista em chefe da sua própria máquina infernal.

Dez anos decorreram assim como um só dia, acidentados por viagens de onde havia poucas probabilidades de voltar, e de noites memoráveis em que os dois trocavam despedidas que poderiam tornar-se eternas. Nesta altura lord Thame atingia os sessenta anos e Enide ia fazer trinta.

Sucedeu que, para festejar o seu aniversário natalício, seu marido anunciou a peste nas Índias. Tratava-se apenas de meia mentira, porque a peste era aí permanente. Nessa manhã, apenas nascido o sol, troaram os canhões. Foram colocadas bandeiras em todos os edifícios públicos, nos bancos e nos navios. Vista do palácio do Governo, dir-se-ia ter brotado na cidade uma plantação de flores doiradas pairando sobre a baía um bando de aves multicolores.

Uma carta, acompanhada de um ramo de rosas, advertiu Enide de que era necessário partir; todas as mulheres dos funcionários ingleses deixariam Trichnapur dentro de vinte e quatro horas. Lady Thame tinha que dar o exemplo; o vapor levantava ferro no dia seguinte. Enide não tinha tempo de tornar a ver o marido, ocupado em visitar os pestíferos. (Continua na pág. 46)


/ 46 / – «Meu querido amor» – dizia a carta mais apaixonada que ela até então havia recebido, e que terminava por estas palavras: «Levarei comigo para a morte, e mais longe ainda, se for possível, a minha profunda saudade de ti, meu amor, meu amor!»

Enide foi curtir os seus pesares para Hill-Hall, no norte da Escócia, onde a terra é vermelha. Ali vivia rodeada de tudo quanto podia lembrar-lhe um esposo adorado, ao qual pertencia a casa que habitava, onde ele nascera e onde se encontravam reunidas as recordações de infância de lord Thame e as deixadas pela sua primeira mulher. Foi organizado exclusivamente para Enide um serviço postal. Mas era irregular. Ora não recebia nenhuma carta, ora recebia três ou quatro ao mesmo tempo, e ficava tão aturdida como um prisioneiro a quem tiram duma masmorra para a luz do dia, no meio duma festa pública. Depois voltava a nada receber durante dias e dias, ansiosa e como alheada de si mesma.

Não ousava nunca reler as cartas antigas com receio de prejudicar a chegada de novas notícias. Quando recebia uma carta, punha-se a devorá-la com tamanha avidez que nem lhe tomava o gosto. Depois voltava a ler o que já havia lido sem compreender. E fazia isto uma, cem vezes. Em breve a carta, à força de relida, deixava de ter interesse. Então abria a gaveta onde se amontoavam as outras, as antigas cartas de amor, cheias de sentimento, que não ousava reler, e juntava-lhes a mais recente, que perdera o interesse.

No dia em que o estranho correio lhe trazia muitas cartas e que a sua alma ficava saciada, a sua turquesa, sem que ela o suspeitasse, esverdeava um pouco. Mas brilhava maravilhosamente quando, depois de um ano de espera, a volta tão desejada mas tão incerta, se tornava provável. Teve conhecimento da data da partida de Seringapatan e ao mesmo tempo a notícia de que rebentara nesse dia uma sedição e simultaneamente fizera erupção o tifo nessas paragens. Partiu para Gibraltar, cheia de cuidados. Sobre esse rochedo onde se encontram numerosos militares, a presença da formosa lady Thame esteve a ponto de produzir uma revolução. Mas quando se pertence ao exército terrestre é difícil falar de amor a uma Isolda que tem os olhos fitos no mar. A mala das Índias passou muitas vezes, sem lhe trazer nada.

Enfim, no quadragésimo dia duma espera prolongada até à tortura, a presença de lord Thame foi assinalada pela T. S. F. a bordo do torpedeiro lnvariable. O governador estava porém invisível, mergulhado na doença do sono, oculto sob o triplo véu das suas pálpebras, dum mosquiteiro e duma proibição rigorosíssima. Acordou milagrosamente à vista das costas de Inglaterra, gozando durante os vinte e cinco minutos gastos em atracar as delícias duma convalescença como nunca se tinha visto.

Depois duma semana de felicidade, seguida a uma outra de perigosa recaída, e como a pedra azul esverdeasse imperceptivelmente, sucedeu que a Alemanha declarou guerra à França e invadiu a Bélgica, com desprezo do direito das gentes. Lord Thame, que conhecia a política, sabia também o que lhe cumpria fazer. Abraçou a sua jovem esposa e disse-lhe: «Temos uma guerra atroz, que deve bem durar quatro anos». Em seguida correu a alistar-se, apesar da sua idade.

Foi durante esse tempo que a pedra azul de Enide correu o maior risco de se tornar verde. Lord Thame foi incorporado num Estado Maior. Levaram então a mais pacífica das vidas: ela numa ambulância do front, afastada das linhas, ele um pouco mais atrás.

Os correios chegavam regularmente. Da sala onde trabalhava, com um bom binóculo, Enide podia ver o marido, fumando no seu cachimbo, no terraço duma linda habitação francesa. O seu amor sofreu uma espécie de interregno, entrecortado apenas pelos bombardeamentos dos aviões. Mas, no mês que se seguiu ao armistício, rebentou a guerra civil na Irlanda, pátria de Enide, e primeiro teatro dos feitos de seu marido.

Partiram em breve para Dublin. Lord Thame contava resgatar aí o seu crime, esse parricídio que cometera sem lhe poder prever as consequências e complicações. Foi aí que foi morto quase à vista de Enide, à frente das tropas insurrectas de que tomara o comando. Ninguém na cidade compreendeu o seu procedimento. Enide fez transportar o corpo de seu marido para o cemitério de Hill-Hall, enterrou-o e retirou-se para o campo.

Como lord Thame morrera por ela, para lhe vingar o pai, em suma, julgou-se na obrigação moral de não tornar a casar.

Ocupada em tratar da sua alma, receava não voltar a ver o marido no outro mundo. Sobre a pedra azul não se divisava sombra desse musgo misterioso que rói as paixões mais sinceras.

O receio é o começo da sabedoria; para se amar sempre é preciso não ter a certeza de coisa nenhuma, nem mesmo da misericórdia de Deus.

Princesa Bibesco
 

Copyright by Agence Litteraire Internationale  – Paris 5.º – Reprodução proibida