David Paiva Martins, Fragmentos de Vida. A Minha Terra. 1ª ed., Aradas, ACAD (Associação Cultural de Aradas), 2005, 170 pp.

Jogos tradicionais


XXXIII

Chega, por agora, de conversa mais séria. Voltemos aos meus tempos de garoto. Nas tardes de domingo, o melhor mesmo era jogar a bola... E era isso que fazíamos. Normalmente jogávamos no largo da Igreja. Nesse tempo, o adro era todo cercado por um muro de adobes bastante grosso, em cima do qual adorávamos andar de bicicleta, para mostrar as nossas habilidades. Tinha um portão alto de ferro, ao centro, / 63 / defronte da porta principal da igreja. O local, transformado em Largo Acácio Rosa, tem hoje um aspecto completamente diferente. Éramos muitos, de idades diversas, embora aproximadas. O Manuel Rocha, mais conhecido por Manuel Bicho, era o guarda-redes. Gostava de saltar às bolas altas, com um joelho estendido para a frente, imitando o seu ídolo, João Azevedo, então famoso guarda-redes internacional do Sporting. O seu irmão Carlos, o Carlos Bicho. O Joãozito Brandão. João Alfredo, o Três Tetas e o seu irmão António, o Freitinhas. O António Ramos, entre nós Tonito da Agra, que veio a ser futebolista a sério no União de Lamas. Três dos irmãos Barbosa, os Cantoneiros: Antenor, Zé e Alberto. E muitos outros, entre os quais o meu primo João raiva, então conhecido por Só Broa, que era o ponta de lança e a estrela da equipa: magro e alto, bastante mais alto do que a generalidade de nós, tirava partido dessa vantagem e marcava muitos golos de cabeça.

Éramos todos sportinguistas. O Sporting tinha então a famosa equipa dos Cinco Violinos: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Os nossos ídolos!

No Verão, quando havia jogos "internacionais", isto é, quando a nossa equipa defrontava uma do Bonsucesso, ou Aradas, ou qualquer outro lugar das redondezas, aquele terreno de jogo não servia, por ser demasiado acanhado. Íamos então para o "estádio" de Verdemilho, que era aquela pequena península que existe na malhada do Eirô, nesse tempo ainda sem poluição. O Eirô tinha a dupla vantagem de funcionar simultaneamente como estádio e piscina!

 

O mais normal, contudo, era mesmo jogarmos no largo da igreja. Estava mais à mão. Durante um tempo, quando nos preparávamos para começar o jogo, aparecia lá um moço da Costa do Valado, o Manuel Rodrigues de Almeida. Teve um destino triste, porque cerca de vinte anos mais tarde, quando era funcionário de Finanças, em Arganil, morreu tragicamente afogado no Rio Mondego, em Penacova, durante / 64 / um piquenique. Naquela altura, o Manuel namorava a minha irmã, a Maria Eneida. Eu convidava-o sempre para jogar. E insistia! Era uma coisa tão gostosa!... Para meu espanto, nunca aceitou. Levei uns anitos para perceber porque é que aquele fulano preferia namorar a jogar a bola connosco!...

Um elemento fundamental da equipa era o José Tavares Bandeira, vulgarmente conhecido por Zé Broa. Já fizera a tropa. Foi segundo cabo corneteiro. Embora uns bons anos mais velho, o Zé alinhava plenamente connosco. Convém esclarecer que, naquele tempo, era / 65 / obrigatório que todos jogássemos descalços. Como muitos não tinham calçado, assim não havia diferenças... O Zé jogava a defesa central. Um verdadeiro esteio! Quando o adversário vinha para ele, com a bola na frente, o Zé mandava um pontapé formidável: se acertasse na bola, estava esconjurado o perigo iminente para a nossa baliza; se não lhe acertasse... acertava infalivelmente nas canelas do adversário! O resultado era ainda melhor: o garoto, depois de gritar a plenos pulmões, passava um bom pedaço de tempo aninhado no chão agarrado às pernas, a gemer, mancava durante o quarto de hora seguinte e ficava com medo de ir à bola para o resto do jogo! É que aquele pé enorme, calejado e rijo como granito, de andar sempre descalço, acertava nas nossas canelas com a violência duma pedrada!... Por isso, o Zé era elemento insubstituível da nossa defesa. Titular inquestionável, constituía para os adversários uma barreira quase intransponível!

Um dia, porém, o Zé comunicou-nos a sua intenção de abandonar o futebol. Ficámos consternados! Fizemos tudo para tentar demovê-Io.

Em vão! Estava mesmo decidido a retirar-se. Resolvemos, então, fazer-lhe uma festa de homenagem em forma. Como ele merecia! Decidimos também dar-lhe uma prenda. Seria aquilo que ele mais adorava: um maço de cigarros!

Nesse tempo, os cigarros mais baratos do mercado eram os da marca Fortes, a que o povo chamava de Mata Ratos. Havia, depois, duas marcas ao mesmo preço: a Provisórios e a Definitivos. Concorriam uma com a outra. Os Provisórios eram da Companhia Portuguesa de Tabacos e os Definitivos da Tabaqueira. Ambas as marcas se vendiam em maços semelhantes, de dois tamanhos: o pequeno, de 12 cigarros, que custava 8 tostões e o grande, de 24 cigarros, que custava 12 tostões. Num gesto algo simbólico, atendendo à nossa secreta esperança de que a despedida do Zé não fosse definitiva, decidimos oferecer-lhe / 66 / um maço de Provisórios, dos grandes. Precisávamos de arranjar, entre todos, 12 tostões. Foi tarefa nada fácil! Naquela altura, 12 tostões era muito dinheiro! Vimo-nos aflitos para os arranjar. Mas, finalmente, com um tostão daqui, meio tostão dali, lá os conseguimos.

Na tarde do domingo aprazado para a homenagem, o encontro realizou-se no largo da igreja. O relógio da torre servia de cronómetro.

Por esse tempo, nas festas de futebolistas a sério, o homenageado só jogava o primeiro quarto de hora. Aí parava o jogo, prestava-se-Ihe a homenagem e o jogador saía. Foi exactamente assim que fizemos com o Zé. Ao quarto de hora, o jogo parou. Na minha qualidade de capitão da equipa acompanhei-o na volta de honra ao campo, sob os aplausos do público (que, obviamente, éramos nós próprios!) e, no centro do terreno, agradeci-lhe os serviços prestados e... dei-lhe a prenda. É verdadeiramente indescritível a alegria que se estampou no rosto do Zé! Ao ver o maço de cigarros, os seus olhos arregalaram-se de espanto! Nunca lhe passara pela cabeça que pudéssemos dar-lhe uma prenda. E logo aquela!... Penso, sinceramente, que o Zé viveu naquele instante um dos momentos mais felizes da sua vida. A nossa atitude, a consideração e amizade que dela emanavam, muito embora fôssemos todos garotinhos, marcou-o profundamente! Tanto que ainda hoje, quase cinquenta anos passados, quando nos encontramos, esse momento mágico é inevitavelmente recordado!....

 

XXXIV

Mas a nossa brincadeira não se resumia ao jogo da bola. Isso era para as tardes de domingo, altura em que podíamos reunir-nos todos. No resto do tempo, sempre que podíamos brincar, tínhamos de nos / 67 / desenrascar individualmente ou com um ou outro vizinho. Não tínhamos brinquedos. Não é que os não houvesse! Quando calhava de irmos à Feira de Março, que então se realizava no Largo do Rossio, em Aveiro, os nossos olhos prendiam-se, gulosos, na profusão de brinquedos multicolores que enchiam as barracas logo da entrada. Pífaros, harmónicas, carros, camionetas, bolas... eu sei lá, um nunca mais acabar de brinquedos de madeira, de chapa, de barro, de borracha, qual deles o mais sedutor. Era difícil aos nossos pais arrancarem-nos de lá. Mas as suas magras posses não chegavam para que pudessem dar-se ao luxo de no-los comprar. Tínhamos de contentar-nos em vê-los. Então, à falta daqueles brinquedos lindos, de cores garridas, que víamos na feira, fazíamos nós mesmos os nossos. Com madeira e pregos construíamos carrelas e motas, em que um podia conduzir enquanto dois o puxavam por uma corda; com canas, papel de jornal, fio dos foguetes e uma batata cozida para os porcos, que servia de cola, fazíamos as nossas estrelas e papagaios, para pôr a voar; com um carrinho de linhas vazio (ao tempo, os carrinhos de linhas eram todos feitos de madeira), uma borrachinha, dois pedacinhos de cera e dois paus de fósforos fazíamos um carrinho de corda, que andava sozinho; com um pedaço de ramo de sabugueiro e outro de vime fazíamos uma arma de pressão de ar, com que disparávamos bagas de loureiro; com uma cana e um pau fazíamos uma rela; doutro bocado de cana fazíamos um pífaro; dum ramito em forqueta, duas tiras de borracha de câmara de ar de bicicleta e um pedacito de coiro fazíamos uma fisga... E assim por diante.

Curioso é lembrar que, ao longo do ano, cada brincadeira tinha a sua época própria. Não se brincava sempre ao mesmo. Havia o tempo de jogar o pião, o de jogar o berlinde, a época de jogar o botão (um botão de cuecas valia dois dos outros!...), o tempo de deitar as estrelas e os papagaios a voar; a época dos ninhos; o tempo de jogar ao esconder ou à barra. " Isto quanto aos rapazes, claro, que as meninas brincavam / 68 / sempre às bonecas ou às casinhas e jogavam à macaca ou ao ringue. A nível individual, cada um brincava como podia e com o que podia. Importante mesmo era usar a nossa fantasia para, com as coisas mais comuns dum dia-a-dia de todo prosaico, criar o mundo encantado e maravilhoso em que decorriam as nossas aventuras.  (...)

 

 
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22-04-2018