XXXIII
Chega, por agora, de
conversa mais séria. Voltemos aos meus tempos de garoto. Nas tardes de
domingo, o melhor mesmo era jogar a bola...
E era isso que fazíamos. Normalmente jogávamos no largo da Igreja. Nesse
tempo, o adro era todo cercado por um muro de adobes bastante grosso, em
cima do qual adorávamos andar de bicicleta, para mostrar as nossas
habilidades. Tinha um portão alto de ferro, ao centro,
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defronte da porta principal da igreja. O local, transformado em Largo
Acácio Rosa, tem hoje um aspecto completamente diferente. Éramos muitos,
de idades diversas, embora aproximadas. O Manuel Rocha, mais conhecido
por Manuel Bicho, era o guarda-redes. Gostava de saltar às bolas altas,
com um joelho estendido para a frente, imitando o seu ídolo, João
Azevedo, então famoso guarda-redes internacional do Sporting. O seu
irmão Carlos, o Carlos Bicho. O Joãozito Brandão. João Alfredo, o Três
Tetas e o seu irmão António, o Freitinhas. O António Ramos, entre nós
Tonito da Agra, que veio a ser futebolista a sério no União de Lamas.
Três dos irmãos Barbosa, os Cantoneiros: Antenor, Zé e Alberto. E muitos
outros, entre os quais o meu primo João raiva, então conhecido por Só
Broa, que era o ponta de lança e a estrela da equipa: magro e alto,
bastante mais alto do que a generalidade de nós, tirava partido dessa
vantagem e marcava muitos golos de cabeça.
Éramos todos
sportinguistas. O Sporting tinha então a famosa equipa dos Cinco
Violinos: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Os
nossos ídolos!
No Verão, quando
havia jogos "internacionais", isto é, quando a nossa equipa defrontava
uma do Bonsucesso, ou Aradas, ou qualquer outro lugar das redondezas,
aquele terreno de jogo não servia, por ser demasiado acanhado. Íamos
então para o "estádio" de Verdemilho, que era aquela pequena península
que existe na malhada do Eirô, nesse tempo ainda sem poluição. O Eirô
tinha a dupla vantagem de funcionar simultaneamente como estádio e
piscina!
O mais normal,
contudo, era mesmo jogarmos no largo da igreja. Estava mais à mão.
Durante um tempo, quando nos preparávamos para começar o jogo, aparecia
lá um moço da Costa do Valado, o Manuel Rodrigues de Almeida. Teve um
destino triste, porque cerca de vinte anos mais tarde, quando era
funcionário de Finanças, em Arganil, morreu tragicamente afogado no Rio
Mondego, em Penacova, durante
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um piquenique. Naquela altura, o Manuel namorava a minha irmã, a Maria
Eneida. Eu convidava-o sempre para jogar. E insistia! Era uma coisa tão
gostosa!... Para meu espanto, nunca aceitou. Levei uns anitos para
perceber porque é que aquele fulano preferia namorar a jogar a bola
connosco!...
Um elemento
fundamental da equipa era o José Tavares Bandeira, vulgarmente conhecido
por Zé Broa. Já fizera a tropa. Foi segundo cabo corneteiro. Embora uns
bons anos mais velho, o Zé alinhava plenamente connosco. Convém
esclarecer que, naquele tempo, era
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obrigatório que todos jogássemos descalços. Como muitos não tinham
calçado, assim não havia diferenças... O Zé jogava a defesa central. Um
verdadeiro esteio! Quando o adversário vinha para ele, com a bola na
frente, o Zé mandava um pontapé formidável: se acertasse na bola, estava
esconjurado o perigo iminente para a nossa baliza; se não lhe
acertasse... acertava infalivelmente nas canelas do adversário! O
resultado era ainda melhor: o garoto, depois de gritar a plenos pulmões,
passava um bom pedaço de tempo aninhado no chão agarrado às pernas, a
gemer, mancava durante o quarto de hora seguinte e ficava com medo de ir
à bola para o resto do jogo! É que aquele pé enorme, calejado e rijo
como granito, de andar sempre descalço, acertava nas nossas canelas com
a violência duma pedrada!... Por isso, o Zé era elemento insubstituível
da nossa defesa. Titular inquestionável, constituía para os adversários
uma barreira quase intransponível!
Um dia, porém, o Zé
comunicou-nos a sua intenção de abandonar o futebol. Ficámos
consternados! Fizemos tudo para tentar demovê-Io.
Em vão! Estava mesmo
decidido a retirar-se. Resolvemos, então, fazer-lhe uma festa de
homenagem em forma. Como ele merecia! Decidimos também dar-lhe uma
prenda. Seria aquilo que ele mais adorava: um maço de cigarros!
Nesse tempo, os
cigarros mais baratos do mercado eram os da marca Fortes, a que o povo
chamava de Mata Ratos. Havia, depois, duas marcas ao mesmo preço: a
Provisórios e a Definitivos. Concorriam uma com a outra. Os Provisórios
eram da Companhia Portuguesa de Tabacos e os Definitivos da Tabaqueira.
Ambas as marcas se vendiam em maços semelhantes, de dois tamanhos: o
pequeno, de 12 cigarros, que custava 8 tostões e o grande, de 24
cigarros, que custava 12 tostões. Num gesto algo simbólico, atendendo à
nossa secreta esperança de que a despedida do Zé não fosse definitiva,
decidimos oferecer-lhe
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um maço de Provisórios, dos grandes. Precisávamos de arranjar, entre
todos, 12 tostões. Foi tarefa nada fácil! Naquela altura, 12 tostões era
muito dinheiro! Vimo-nos aflitos para os arranjar. Mas, finalmente, com
um tostão daqui, meio tostão dali, lá os conseguimos.
Na tarde do domingo
aprazado para a homenagem, o encontro realizou-se no largo da igreja. O
relógio da torre servia de cronómetro.
Por esse tempo, nas
festas de futebolistas a sério, o homenageado só jogava o primeiro
quarto de hora. Aí parava o jogo, prestava-se-Ihe a homenagem e o
jogador saía. Foi exactamente assim que fizemos com o Zé. Ao quarto de
hora, o jogo parou. Na minha qualidade de capitão da equipa acompanhei-o
na volta de honra ao campo, sob os aplausos do público (que, obviamente,
éramos nós próprios!) e, no centro do terreno, agradeci-lhe os serviços
prestados e... dei-lhe a prenda. É verdadeiramente indescritível a
alegria que se estampou no rosto do Zé! Ao ver o maço de cigarros, os
seus olhos arregalaram-se de espanto! Nunca lhe passara pela cabeça que
pudéssemos dar-lhe uma prenda. E logo aquela!... Penso, sinceramente,
que o Zé viveu naquele instante um dos momentos mais felizes da sua
vida. A nossa atitude, a consideração e amizade que dela emanavam, muito
embora fôssemos todos garotinhos, marcou-o profundamente! Tanto que
ainda hoje, quase cinquenta anos passados, quando nos encontramos, esse
momento mágico é inevitavelmente recordado!....
XXXIV
Mas a nossa
brincadeira não se resumia ao jogo da bola. Isso era para as tardes de
domingo, altura em que podíamos reunir-nos todos. No resto do tempo,
sempre que podíamos brincar, tínhamos de nos
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desenrascar individualmente ou com um ou outro vizinho. Não tínhamos
brinquedos.
Não é que os não houvesse! Quando calhava de irmos à
Feira de Março, que
então se realizava no Largo do Rossio, em Aveiro, os nossos olhos
prendiam-se, gulosos, na profusão de brinquedos multicolores que enchiam
as barracas logo da entrada. Pífaros, harmónicas, carros, camionetas,
bolas... eu sei lá, um nunca mais acabar de brinquedos de madeira, de
chapa, de barro, de borracha, qual deles o mais sedutor. Era difícil aos
nossos pais arrancarem-nos de lá. Mas as suas magras posses não chegavam
para que pudessem dar-se ao luxo de no-los comprar. Tínhamos de
contentar-nos em vê-los. Então, à falta daqueles brinquedos lindos, de
cores garridas, que víamos na feira, fazíamos nós mesmos os nossos. Com
madeira e pregos construíamos carrelas e motas, em que um podia conduzir
enquanto dois o puxavam por uma corda; com canas, papel de jornal, fio
dos foguetes e uma batata cozida para os porcos, que servia de cola,
fazíamos as nossas estrelas e papagaios, para pôr a voar; com um
carrinho de linhas vazio (ao tempo, os carrinhos de linhas eram todos
feitos de madeira), uma borrachinha, dois pedacinhos de cera e dois paus
de fósforos fazíamos um carrinho de corda, que andava sozinho; com um
pedaço de ramo de sabugueiro e outro de vime fazíamos uma arma de
pressão de ar, com que disparávamos bagas de loureiro; com uma cana e um
pau fazíamos uma rela; doutro bocado de cana fazíamos um pífaro; dum
ramito em forqueta, duas tiras de borracha de câmara de ar de bicicleta
e um pedacito de coiro fazíamos uma fisga... E assim por diante.
Curioso é lembrar
que, ao longo do ano, cada brincadeira tinha a sua época própria. Não se
brincava sempre ao mesmo. Havia o tempo de jogar o pião, o de jogar o
berlinde, a época de jogar o botão (um botão de cuecas valia dois dos
outros!...), o tempo de deitar as estrelas e os papagaios a voar; a
época dos ninhos; o tempo de jogar ao esconder ou à barra. " Isto quanto
aos rapazes, claro, que as meninas brincavam
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sempre às bonecas ou às casinhas e jogavam à macaca ou ao ringue. A
nível individual, cada um brincava como podia e com o que podia.
Importante mesmo era usar a nossa fantasia para, com as coisas mais
comuns dum dia-a-dia de todo prosaico, criar o mundo encantado e
maravilhoso em que decorriam as nossas aventuras. (...) |