Amor e Vida no Portugal d'Antanho. O Senhor Abade, 1ª ed., Verdemilho, 2020, págs. 57-58


Relógio marca Roskoff

Capítulo 25

Lembrar a falta de pontualidade do senhor Abade traz-me à memória a curiosa aventura do Manuel João. Porque tudo começou com um relógio.

Manuel João era um dos muitos jovens que constantemente chegavam a Quinta do Frade, vindos do Alto Minho, fugindo da miséria em que lá se vivia, que era ainda maior do que a de cá, para aqui servirem como criados de lavoura. Bom rapaz, sossegado e introvertido, era analfabeto, como a generalidade dos da sua condição. Distinguia-se contudo por ter um certo jeito e apetência pelos trabalhos manuais – o que era extremamente útil ao Ti Benjamim, o seu patrão, uma vez que o rapaz aproveitava o tempo, nos serões das longas noites de inverno, para ir reparando os utensílios agrícolas que tivessem algum defeito de funcionamento ou estivessem avariados.

O Ti Benjamim, o seu patrão, tinha um belo relógio de bolso, muito antigo,que tinha deixado de trabalhar há muitos anos. Embora o relógio fosse funcionalmente inútil, ele guardava-o com muito carinho, dada a sua grande beleza.

O relógio era da marca Roskoff. Dois dísticos eram bem evidentes: «RoskoffPatent», um pouco acima do meio do mostrador, e «SwissMade» em baixo, em curva, no fundo do mostrador. Curiosamente, naquele tempo, em Quinta do Frade, quando alguém classificava o quer que fosse de roscofe… queria dizer que não prestava. Não sei até onde é que esse dito não teria algo a ver com a marca do relógio...

Manuel João, vendo um relógio tão belo que não trabalhava, apaixonou-se por ele e pediu ao Ti Benjamim que o deixasse arranjá-lo. Para o pôr a funcionar de novo.

Embora com certa relutância, duvidando que o criado fosse mesmo capaz de realizar o trabalho a que se propunha, o Ti Benjamim autorizou. Mas só o fez face ao compromisso solene do Manuel João de que não estragaria o aspecto lindíssimo do relógio.

Nos serões desse inverno, ao longo de mais de um mês, com uma paciência infinita, Manuel João desmontou, montou e tornou a desmontar vezes sem conta, com as ferramentas que ele próprio ia improvisando, o mecanismo do relógio. Até que um belo dia, para espanto de todos, apresentou o célebre Roskoff a trabalhar novamente.

Foi uma sensação. Num instante, Manuel João ficou com fama de artista consumado. De tal modo que o sr. Duarte, um lavrador abastado que era das poucas pessoas da terra que tinham aparelho de rádio, lhe pediu que tentasse reparar o seu velho Siera, que era a companhia das noites familiares mas deixara subitamente de tocar.

Manuel João não se fez rogado. E lá voltou ao trabalho. Desmonta válvula, monta válvula, o certo é que, algum tempo depois, apresentou ao sr. Duarte o velho Siera a tocar. Levou-lhe o rádio… e uma válvula que, com o monta e desmonta, tinha sobrado.

Aquela válvula devia estar a mais, porque o certo é que o rádio voltou a tocar sem ela por perto duns bons dois ou três anos. Até que uma noite, no meio dum programa, pegou fogo… e ardeu completamente.
 

 
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