Relógio marca Roskoff
Capítulo
25
Lembrar a falta de pontualidade do senhor Abade traz-me à memória a
curiosa aventura do Manuel João. Porque tudo começou com um relógio.
Manuel João era um dos muitos jovens que constantemente chegavam a
Quinta do Frade, vindos do Alto Minho, fugindo da miséria em que lá se
vivia, que era ainda maior do que a de cá, para aqui servirem como
criados de lavoura. Bom rapaz, sossegado e introvertido, era analfabeto,
como a generalidade dos da sua condição. Distinguia-se contudo por ter
um certo jeito e apetência pelos trabalhos manuais – o que era
extremamente útil ao Ti Benjamim, o seu patrão, uma vez que o rapaz
aproveitava o tempo, nos serões das longas noites de inverno, para ir
reparando os utensílios agrícolas que tivessem algum defeito de
funcionamento ou estivessem avariados.
O Ti Benjamim, o seu patrão, tinha um belo relógio de bolso, muito
antigo,que tinha deixado de trabalhar há muitos anos. Embora o relógio
fosse funcionalmente inútil, ele guardava-o com muito carinho, dada a
sua grande beleza.
O relógio era da marca Roskoff. Dois dísticos eram bem evidentes: «RoskoffPatent»,
um pouco acima do meio do mostrador, e «SwissMade» em baixo, em curva,
no fundo do mostrador. Curiosamente, naquele tempo, em Quinta do Frade,
quando alguém classificava o quer que fosse de roscofe… queria dizer que
não prestava. Não sei até onde é que esse dito não teria algo a ver com
a marca do relógio...
Manuel João, vendo um relógio tão belo que não trabalhava, apaixonou-se
por ele e pediu ao Ti Benjamim que o deixasse arranjá-lo. Para o pôr a
funcionar de novo.
Embora com certa relutância, duvidando que o criado fosse mesmo capaz de
realizar o trabalho a que se propunha, o Ti Benjamim autorizou. Mas só o
fez face ao compromisso solene do Manuel João de que não estragaria o
aspecto lindíssimo do relógio.
Nos serões desse inverno, ao longo de mais de um mês, com uma paciência
infinita, Manuel João desmontou, montou e tornou a desmontar vezes sem
conta, com as ferramentas que ele próprio ia improvisando, o mecanismo
do relógio. Até que um belo dia, para espanto de todos, apresentou o
célebre Roskoff a trabalhar novamente.
Foi uma sensação. Num instante, Manuel João ficou com fama de artista
consumado. De tal modo que o sr. Duarte, um lavrador abastado que era
das poucas pessoas da terra que tinham aparelho de rádio, lhe pediu que
tentasse reparar o seu velho Siera, que era a companhia das noites
familiares mas deixara subitamente de tocar.
Manuel João não se fez rogado. E lá voltou ao trabalho. Desmonta
válvula, monta válvula, o certo é que, algum tempo depois, apresentou ao
sr. Duarte o velho Siera a tocar. Levou-lhe o rádio… e uma válvula que,
com o monta e desmonta, tinha sobrado.
Aquela válvula devia estar a mais, porque o certo é que o rádio voltou a
tocar sem ela por perto duns bons dois ou três anos. Até que uma noite,
no meio dum programa, pegou fogo… e ardeu completamente.
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