Moliço, escaço, estrume e caldeirada
Capítulo
16
Estrumar as terras, para as adubar, era condição essencial para que elas
produzissem bem. A adubagem era normalmente feita com três produtos
diferentes: o moliço e o escasso, da Ria, ou o estrume, de produção
caseira.
Em Quinta do Frade ninguém tinha condições de poder apanhar moliço na
Ria de Aveiro. Era uma actividade dura e exigente, não só no plano do
esforço físico, como principalmente pelo equipamento específico que era
indispensável – barco e apetrechos. Então, os lavradores que precisassem
dele para espalhar nas suas terras compravam-no ao pessoal da Murtosa,
que fazia da apanha de moliço a sua actividade profissional e o vinham
vender a Quinta do Frade.
Quanto ao escasso já era diferente. Havia em Quinta do Frade três
pessoas que se dedicavam a essa actividade. O ti José do Quartel, o ti
João Tripa e o ti Manuel Fininho andavam diariamente na Ria, com as suas
bateiras, na apanha do caranguejo. Faziam montes com ele na margem da
promaceira e aí ficava ao sol, a secar e apodrecer, transformando-se no
escasso que vendiam aos demais lavradores, seus conterrâneos.
O estrume era produzido por cada um nas suas próprias casas. As camas do
gado, nos currais, eram feitas com mato e um pouco de junco. Pisada pelo
gado sobre a sua urina e fezes, essa camada de mato e junco, que a urina
e as fezes faziam cozer e fermentar, tornava-se num estrume magnífico
para adubar as terras.
Também se fazia estrume nos pátios, com idêntica camada de mato e junco,
sobre a qual eram lançadas as cascas de batata e nabo, as folhas de
couve e outros desperdícios da cozinha, bem como a água das lavagens e
das cozeduras. Tudo isso, calcado pelo movimento do gado, da carroça e
das pessoas, fermentava igualmente, produzindo também um excelente
estrume.
Para poder substituir a estrumeira do pátio e as camas do gado, eram
necessários mato e junco. O mato obtinha-se através da limpeza dos
pinhais. Quem não tivesse nenhum pedaço de pinhal a que pudesse
recorrer, comprava o mato necessário a qualquer vizinho que o tivesse
disponível. O junco, ou se comprava aos murtoseiros – como o moliço – ou
se ia apanhá-lo nas ilhas da Ria de Aveiro, nomeadamente na de Monte
Farinha, defronte de S. Jacinto.
Os lavradores dispostos a ir ao junco não eram muitos. Mas alguns
faziam-no. Juntava-se um grupo de homens no barco do ti Zé Gato, que era
grande e próprio para essa actividade. Partiam logo ao romper do dia,
para um trabalho duro e demorado, de que só regressavam à noitinha,
dependentes como estavam do vento e do nível das marés. Na ilha, sempre
que podiam, procuravam apanhar e trazer uma caldeirada de enguias, com
que se consolavam à ceia. Quando a caldeirada era abundante, gostavam de
convidar padre António para se juntar a eles. Claro que o senhor abade
não se fazia rogado…
A caldeirada era despejada numa grande bacia redonda, que se punha em
cima da mesa baixinha de cear, junto à lareira. Os homens sentavam-se em
banquinhos baixos, à roda da mesa, e, cada um com o seu garfo, tiravam a
comida à vez da bacia comum. Não demorou muito tempo que padre António
se tornasse famoso nessas ceias pelo “incentivo” que não se cansava de
dar aos demais convivas: “Comam batatas rapazes, comam as batatas que
estão deliciosas!” E, enquanto isso, ele próprio nem sequer as provava:
comia só as enguias!
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