Amor e Vida no Portugal d'Antanho. O Senhor Abade, 1ª ed., Verdemilho, 2020, págs. 36-37


Moliço, escaço, estrume e caldeirada

Capítulo 16

Estrumar as terras, para as adubar, era condição essencial para que elas produzissem bem. A adubagem era normalmente feita com três produtos diferentes: o moliço e o escasso, da Ria, ou o estrume, de produção caseira.

Em Quinta do Frade ninguém tinha condições de poder apanhar moliço na Ria de Aveiro. Era uma actividade dura e exigente, não só no plano do esforço físico, como principalmente pelo equipamento específico que era indispensável – barco e apetrechos. Então, os lavradores que precisassem dele para espalhar nas suas terras compravam-no ao pessoal da Murtosa, que fazia da apanha de moliço a sua actividade profissional e o vinham vender a Quinta do Frade.

Quanto ao escasso já era diferente. Havia em Quinta do Frade três pessoas que se dedicavam a essa actividade. O ti José do Quartel, o ti João Tripa e o ti Manuel Fininho andavam diariamente na Ria, com as suas bateiras, na apanha do caranguejo. Faziam montes com ele na margem da promaceira e aí ficava ao sol, a secar e apodrecer, transformando-se no escasso que vendiam aos demais lavradores, seus conterrâneos.

O estrume era produzido por cada um nas suas próprias casas. As camas do gado, nos currais, eram feitas com mato e um pouco de junco. Pisada pelo gado sobre a sua urina e fezes, essa camada de mato e junco, que a urina e as fezes faziam cozer e fermentar, tornava-se num estrume magnífico para adubar as terras.

Também se fazia estrume nos pátios, com idêntica camada de mato e junco, sobre a qual eram lançadas as cascas de batata e nabo, as folhas de couve e outros desperdícios da cozinha, bem como a água das lavagens e das cozeduras. Tudo isso, calcado pelo movimento do gado, da carroça e das pessoas, fermentava igualmente, produzindo também um excelente estrume.

Para poder substituir a estrumeira do pátio e as camas do gado, eram necessários mato e junco. O mato obtinha-se através da limpeza dos pinhais. Quem não tivesse nenhum pedaço de pinhal a que pudesse recorrer, comprava o mato necessário a qualquer vizinho que o tivesse disponível. O junco, ou se comprava aos murtoseiros – como o moliço – ou se ia apanhá-lo nas ilhas da Ria de Aveiro, nomeadamente na de Monte Farinha, defronte de S. Jacinto.

Os lavradores dispostos a ir ao junco não eram muitos. Mas alguns faziam-no. Juntava-se um grupo de homens no barco do ti Zé Gato, que era grande e próprio para essa actividade. Partiam logo ao romper do dia, para um trabalho duro e demorado, de que só regressavam à noitinha, dependentes como estavam do vento e do nível das marés. Na ilha, sempre que podiam, procuravam apanhar e trazer uma caldeirada de enguias, com que se consolavam à ceia. Quando a caldeirada era abundante, gostavam de convidar padre António para se juntar a eles. Claro que o senhor abade não se fazia rogado…

A caldeirada era despejada numa grande bacia redonda, que se punha em cima da mesa baixinha de cear, junto à lareira. Os homens sentavam-se em banquinhos baixos, à roda da mesa, e, cada um com o seu garfo, tiravam a comida à vez da bacia comum. Não demorou muito tempo que padre António se tornasse famoso nessas ceias pelo “incentivo” que não se cansava de dar aos demais convivas: “Comam batatas rapazes, comam as batatas que estão deliciosas!” E, enquanto isso, ele próprio nem sequer as provava: comia só as enguias!
 

 
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