Amor e Vida no Portugal d'Antanho. O Senhor Abade, 1ª ed., Verdemilho, 2020, págs. 31-35


A Barbearia do Amadeu

Capítulo 14

– É como lhe digo, senhor abade, o padre Diogo abandonou a igreja!

Padre António olhou-o com perplexidade. Para se integrar mais facilmente, quando chegou a Quinta do Frade adoptou os costumes locais e passou a frequentar a barbearia do Amadeu, como os paroquianos faziam.

Amadeu, sem dúvida a pessoa mais bem informada do meio, era uma espécie de agência não oficial de notícias. Na barbearia tinha padre António o local mais apropriado para saber as últimas novidades, sobretudo as que interessavam aos homens; porque, para saber o que se passava no mundo das mulheres, tinha o confessionário – que era fidedigno... e mais eficaz.

Pequeno lavrador, possuidor de pouca terra, Amadeu complementava os seus parcos rendimentos exercendo o ofício de barbeiro, num pequeno compartimento que tinha preparado ao lado da cozinha. Nos finais do dia, às quartas e sábados, fazia barbas; cortar cabelos só ao domingo de manhã, antes e depois da missa, até à hora de almoço.

Capítulo 15

A barbearia era o local de reunião dos vizinhos para uma boa cavaqueira enquanto esperavam a vez de lhes ser feita a barba. Quando padre António chegava, por deferência deixavam-no passar à frente. Ele aceitava – porque a todo o tempo podia ser chamado de urgência, para administrar a extrema-unção a um moribundo ou baptizar algum bebé que nascesse demasiado frágil – e, para isso, necessitava de estar livre. Porém, quando não o chamavam, gostava de ficar na cavaqueira com o pessoal.

– Mas abandonou mesmo a igreja, Amadeu? Como é possível? – admirou-se.

– Claro que sim! – retrucou Amadeu. E, com a aquiescência colaborante dos presentes, continuou: – Como o senhor abade sabe, com a implantação da República o padre Diogo deixou de ser presidente da Junta de Paróquia. E isso custou-lhe muito!

– Compreende-se...

– Logo no primeiro dia, a nova Junta nomeada pela República foi ao cemitério e decidiu demolir o muro de demarcação do espaço destinado às sepulturas dos não católicos. O senhor abade não gostava de os misturar com os crentes. Mas a Junta entendeu que separá-los era uma discriminação inaceitável, porque todos são igualmente cidadãos da República. Para ele, aquilo foi como quem lhe deu uma bofetada!

– E se fosse só isso!... – acrescentou Manuel Joaquim. A Junta exigiu-lhe que retirasse todos os objectos de culto da sacristia e entregasse a chave ao presidente. Só lá devia deixar a mesa e os seis bancos de pinho, porque seria lá que a Junta passaria a fazer as suas reuniões.

– Pois! E a Lei da Separação? – questionou Zé Lérias, outro freguês. Reparem que, enquanto o presidente da Junta mandou retirar tudo da sacristia, veio o presidente da Câmara e ordenou-lhe que colocasse lá todos os objectos da Paróquia que estivessem a seu cargo, para serem arrolados, conforme a Lei determinava.

– Ó meu Deus! – comentou padre António. Com tantas ordens e contra ordens, o senhor abade deve-se ter visto aflito.

– Se viu! – disse Amadeu. Mas ainda há mais. A nova Junta implicou também com a casa paroquial, que o abade utilizava como residência. Era uso indevido – diziam eles. O Administrador do Concelho deu-lhe ordem de despejo, alegando que doravante a casa iria ser a sede da Junta.

– Coitado do abade Diogo, que velhice tão atribulada!

– Pois! – continuou Amadeu. Mas a nova Junta meteu-se também com o sacristão. Abriu-lhe uma sindicância, suspendeu-o de funções e pediu ao padre Diogo que nomeasse outro. O senhor abade recusou, alegando que mais ninguém lhe merecia confiança. Então a Junta nomeou um seu correligionário e o administrador do Concelho escreveu ao pároco intimando-o a entregar a esse novo sacristão a chave da igreja, que o regedor iria buscar. Como o senhor abade recusou entregar a chave, o administrador mandou-o prender. Quando o povo se apercebeu de que padre Diogo tinha sido preso, reuniu-se um grupo de homens bons que foi ter com o administrador do Concelho e o intimou a mandá-lo soltar imediatamente – porque, se o não fizesse, eles iriam tocar os sinos a rebate e Quinta do Frade em peso iria invadir a cadeia para o tirar de lá à força. Claro que não foi preciso – porque o Administrador, com medo, mandou-o logo soltar.

– Bolas! Não imaginava… – disse padre António, realmente estupefacto.

– Mas a Lei da Separação – retornou Zé Lérias por sua vez – também determinava que houvesse uma Comissão Cultual, composta só por leigos, e seria ela que regulamentaria o culto, cuidando inclusivamente da administração financeira da paróquia.

– Sim! – concordou Amadeu. Essa Comissão formou-se, tomou posse e foi ela que fixou as verbas que o abade poderia cobrar dos paroquianos pelos actos litúrgicos individuais que lhe pedissem para celebrar: casamentos, baptizados, funerais... Foi a gota de água que fez transbordar o copo. Padre Diogo não aguentou mais: nesse dia, fechou a igreja e abandonou-a!

De tão curioso que estava para saber tudo o que se passara, Padre António quase bebia as palavras dos interlocutores. Sentia que, para se situar correctamente no meio, tinha de conhecer os antecedentes. O que ouvia perturbava-o muito, porque ainda desconhecia algo de que só mais tarde veio a aperceber-se: afinal, os problemas com o abade Diogo no meio social de Quinta do Frade já vinham de longe, não tinham começado propriamente com a implantação da República. Por ora, sem ainda saber isso, sentia-se verdadeiramente assustado e cogitou:

– Caramba! Coitado do padre Diogo! Amargou aqui as passas do Algarve! Perguntou então: – E como é que as pessoas reagiram a esse abandono?

– Ficaram atarantadas. Os que faziam parte do pequeno grupo favorável ao padre, diziam mal da Comissão Cultual e da Junta; os outros, que eram a maioria, diziam mal do padre. Mas a Comissão Cultual não se ficou. Mexeu-se e arranjou o padre Dionísio para celebrar aqui missa ao Domingo. Era capelão militar.

– Capelão militar?

Zé Lérias, um jovem expedito, de palavra fácil – daí a alcunha! – retomou o fio da meada:

– Sim, era capelão do Regimento de Cavalaria. O abade Diogo ficou fulo por ele ter aceitado a incumbência! Conspirou com os seus apaniguados e começaram uma campanha de atoardas sobre a honradez do padre Dionísio, dizendo dele o pior possível. Acabaram por lançar tamanha dúvida no espírito do Administrador do Concelho que a Junta de Freguesia se viu na necessidade de sair em defesa da honra do padre, atestando também a sua fidelidade à República e ao seu ideário.

– É claro que, em face disto, – comentou Amadeu – a Junta proibiu o abade de entrar na igreja e de utilizar os seus paramentos ou alfaias para celebrar. Mas ele entrou abusivamente, com uma chave que retivera, e celebrou para os seus correligionários.

– Arrombou a igreja! Profanou o sacrário! – clamava a Junta. E o povo já não sabia o que pensar. A tensão era enorme e atirava vizinho contra vizinho.

– Que complicação, meu Deus! Mas isso foi terrível. Manteve-se assim muito tempo?

– Ah, sim, quase um ano! – disse Amadeu. O povo já estava farto. O risco de desacatos graves era cada vez maior. É certo que havia missa aos Domingos. Mas não havia mais nada: não havia quem acudisse aos moribundos; não havia quem confessasse, quem baptizasse, quem casasse os noivos ou fizesse um funeral. Não houve comunhão solene nesse ano e as crianças não tinham catequese. Então o Sr. Carlos Miguel, o nosso maior lavrador (provavelmente a pedido do próprio abade, de quem era muito amigo), requereu à Junta que lhe entregasse de novo a igreja.

– E a Junta?

– A Junta concordou. Como também já estava com medo do povo, cuja reacção podia a qualquer momento ser imprevisível, acedeu ao pedido. Abade Diogo voltou então à igreja. Mas não recuperou a confiança da Junta. A valiosa Cruz da Fábrica e os demais objectos de prata não voltaram à sua posse. Permaneceram à guarda do tesoureiro da Junta.

– Isso parece-me uma coisa muito feia, uma grande desconsideração ao senhor abade...

– Claro que foi! – concordou Amadeu. – Mas o abade Diogo, velho como estava e após tanta asneira que tinha feito, teve de aceitar. E fez bem. Aos poucos, a paz voltou à nossa terra. Quando morreu, dois anos mais tarde...

– Acuda, senhor abade, acuda! – gritou Fernando Abegão, que chegava, açudado. – Venha depressa. O ti Luís da Fonte está muito mal. Teve um ataque.

Padre António arrancou logo a buscar o viático. Urgia levar a extrema-unção ao ti Luís.
 

 
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