A Barbearia do Amadeu
Capítulo
14
– É como lhe digo, senhor abade, o padre Diogo abandonou a igreja!
Padre António olhou-o com perplexidade. Para se integrar mais
facilmente, quando chegou a Quinta do Frade adoptou os costumes locais e
passou a frequentar a barbearia do Amadeu, como os paroquianos faziam.
Amadeu, sem dúvida a pessoa mais bem informada do meio, era uma espécie
de agência não oficial de notícias. Na barbearia tinha padre António o
local mais apropriado para saber as últimas novidades, sobretudo as que
interessavam aos homens; porque, para saber o que se passava no mundo
das mulheres, tinha o confessionário – que era
fidedigno... e mais eficaz.
Pequeno lavrador, possuidor de pouca terra, Amadeu complementava os seus
parcos rendimentos exercendo o ofício de barbeiro, num pequeno
compartimento que tinha preparado ao lado da cozinha. Nos finais do dia,
às quartas e sábados, fazia barbas; cortar cabelos só ao domingo de
manhã, antes e depois da missa, até à hora de almoço.
Capítulo 15
A barbearia era o local de reunião dos vizinhos para uma boa cavaqueira
enquanto esperavam a vez de lhes ser feita a barba. Quando padre António
chegava, por deferência deixavam-no passar à frente. Ele aceitava –
porque a todo o tempo podia ser chamado de urgência, para administrar a
extrema-unção a um moribundo ou baptizar algum bebé que nascesse
demasiado frágil – e, para isso, necessitava de estar livre. Porém,
quando não o chamavam, gostava de ficar na cavaqueira com o pessoal.
– Mas abandonou mesmo a igreja, Amadeu? Como é possível? – admirou-se.
– Claro que sim! – retrucou Amadeu. E, com a aquiescência colaborante
dos presentes, continuou: – Como o senhor abade sabe, com a implantação
da República o padre Diogo deixou de ser presidente da Junta de
Paróquia. E isso custou-lhe muito!
– Compreende-se...
– Logo no primeiro dia, a nova Junta nomeada pela República foi ao
cemitério e decidiu demolir o muro de demarcação do espaço destinado às
sepulturas dos não católicos. O senhor abade não gostava de os misturar
com os crentes. Mas a Junta entendeu que separá-los era uma
discriminação inaceitável, porque todos são igualmente cidadãos da
República. Para ele, aquilo foi como quem lhe deu uma bofetada!
– E se fosse só isso!... – acrescentou Manuel Joaquim. A Junta
exigiu-lhe que retirasse todos os objectos de culto da sacristia e
entregasse a chave ao presidente. Só lá devia deixar a mesa e os seis
bancos de pinho, porque seria lá que a Junta passaria a fazer as suas
reuniões.
– Pois! E a Lei da Separação? – questionou Zé Lérias, outro freguês.
Reparem que, enquanto o presidente da Junta mandou retirar tudo da
sacristia, veio o presidente da Câmara e ordenou-lhe que colocasse lá
todos os objectos da Paróquia que estivessem a seu cargo, para serem
arrolados, conforme a Lei determinava.
– Ó meu Deus! – comentou padre António. Com tantas ordens e contra
ordens, o senhor abade deve-se ter visto aflito.
– Se viu! – disse Amadeu. Mas ainda há mais. A nova Junta implicou
também com a casa paroquial, que o abade utilizava como residência. Era
uso indevido – diziam eles. O Administrador do Concelho deu-lhe ordem de
despejo, alegando que doravante a casa iria ser a sede da Junta.
– Coitado do abade Diogo, que velhice tão atribulada!
– Pois! – continuou Amadeu. Mas a nova Junta meteu-se também com o
sacristão. Abriu-lhe uma sindicância, suspendeu-o de funções e pediu ao
padre Diogo que nomeasse outro. O senhor abade recusou, alegando que
mais ninguém lhe merecia confiança. Então a Junta nomeou um seu
correligionário e o administrador do Concelho escreveu ao pároco
intimando-o a entregar a esse novo sacristão a chave da igreja, que o
regedor iria buscar. Como o senhor abade recusou entregar a chave, o
administrador mandou-o prender. Quando o povo se apercebeu de que padre
Diogo tinha sido preso, reuniu-se um grupo de homens bons que foi ter
com o administrador do Concelho e o intimou a mandá-lo soltar
imediatamente – porque, se o não fizesse, eles iriam tocar os sinos a
rebate e Quinta do Frade em peso iria invadir a cadeia para o tirar de
lá à força. Claro que não foi preciso – porque o Administrador, com
medo, mandou-o logo soltar.
– Bolas! Não imaginava… – disse padre António, realmente estupefacto.
– Mas a Lei da Separação – retornou Zé Lérias por sua vez – também
determinava que houvesse uma Comissão Cultual, composta só por leigos, e
seria ela que regulamentaria o culto, cuidando inclusivamente da
administração financeira da paróquia.
– Sim! – concordou Amadeu. Essa Comissão formou-se, tomou posse e foi
ela que fixou as verbas que o abade poderia cobrar dos paroquianos pelos
actos litúrgicos individuais que lhe pedissem para celebrar: casamentos,
baptizados, funerais... Foi a gota de água que fez transbordar o copo.
Padre Diogo não aguentou mais: nesse dia, fechou a igreja e abandonou-a!
De tão curioso que estava para saber tudo o que se passara, Padre
António quase bebia as palavras dos interlocutores. Sentia que, para se
situar correctamente no meio, tinha de conhecer os antecedentes. O que
ouvia perturbava-o muito, porque ainda desconhecia algo de que só mais
tarde veio a aperceber-se: afinal, os problemas com o abade Diogo no
meio social de Quinta do Frade já vinham de longe, não tinham começado
propriamente com a implantação da República. Por ora, sem ainda saber
isso, sentia-se verdadeiramente assustado e cogitou:
– Caramba! Coitado do padre Diogo! Amargou aqui as passas do Algarve!
Perguntou então: – E como é que as pessoas reagiram a esse abandono?
– Ficaram atarantadas. Os que faziam parte do pequeno grupo favorável ao
padre, diziam mal da Comissão Cultual e da Junta; os outros, que eram a
maioria, diziam mal do padre. Mas a Comissão Cultual não se ficou.
Mexeu-se e arranjou o padre Dionísio para celebrar aqui missa ao
Domingo. Era capelão militar.
– Capelão militar?
Zé Lérias, um jovem expedito, de palavra fácil – daí a alcunha! –
retomou o fio da meada:
– Sim, era capelão do Regimento de Cavalaria. O abade Diogo ficou fulo
por ele ter aceitado a incumbência! Conspirou com os seus apaniguados e
começaram uma campanha de atoardas sobre a honradez do padre Dionísio,
dizendo dele o pior possível. Acabaram por lançar tamanha dúvida no
espírito do Administrador do Concelho que a Junta de Freguesia se viu na
necessidade de sair em defesa da honra do padre, atestando também a sua
fidelidade à República e ao seu ideário.
– É claro que, em face disto, – comentou Amadeu – a Junta proibiu o
abade de entrar na igreja e de utilizar os seus paramentos ou alfaias
para celebrar. Mas ele entrou abusivamente, com uma chave que retivera,
e celebrou para os seus correligionários.
– Arrombou a igreja! Profanou o sacrário! – clamava a Junta. E o povo já
não sabia o que pensar. A tensão era enorme e atirava vizinho contra
vizinho.
– Que complicação, meu Deus! Mas isso foi terrível. Manteve-se assim
muito tempo?
– Ah, sim, quase um ano! – disse Amadeu. O povo já estava farto. O risco
de desacatos graves era cada vez maior. É certo que havia missa aos
Domingos. Mas não havia mais nada: não havia quem acudisse aos
moribundos; não havia quem confessasse, quem baptizasse, quem casasse os
noivos ou fizesse um funeral. Não houve comunhão solene nesse ano e as
crianças não tinham catequese. Então o Sr. Carlos Miguel, o nosso maior
lavrador (provavelmente a pedido do próprio abade, de quem era muito
amigo), requereu à Junta que lhe entregasse de novo a igreja.
– E a Junta?
– A Junta concordou. Como também já estava com medo do povo, cuja
reacção podia a qualquer momento ser imprevisível, acedeu ao pedido.
Abade Diogo voltou então à igreja. Mas não recuperou a confiança da
Junta. A valiosa Cruz da Fábrica e os demais objectos de prata não
voltaram à sua posse. Permaneceram à guarda do tesoureiro da Junta.
– Isso parece-me uma coisa muito feia, uma grande desconsideração ao
senhor abade...
– Claro que foi! – concordou Amadeu. – Mas o abade Diogo, velho como
estava e após tanta asneira que tinha feito, teve de aceitar. E fez bem.
Aos poucos, a paz voltou à nossa terra. Quando morreu, dois anos mais
tarde...
– Acuda, senhor abade, acuda! – gritou Fernando Abegão, que chegava,
açudado. – Venha depressa. O ti Luís da Fonte está muito mal. Teve um
ataque.
Padre António arrancou logo a buscar o viático. Urgia levar a
extrema-unção ao ti Luís.
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