Amor e Vida no Portugal d'Antanho. O Senhor Abade, 1ª ed., Verdemilho, 2020, págs. 29-30


D. Ernestina dos Anjos e Joãozito

Capítulo 13

Quando se apresentou em Quinta do Frade padre António vinha acompanhado dum irmão, de idade muito próxima da sua, que passou alguns dias com ele, para lhe dar apoio nesse tempo inicial, e depois regressou à sua terra. Mais tarde vieram, e passaram a viver com ele para sempre na casa paroquial, a mãe e uma irmã.

A irmã, D. Ernestina dos Anjos, era uma mulher enorme, alta e forte, com perto de metro e oitenta de altura. Vestia sempre de negro, uns vestidos compridos até ao chão, com muitos botões, que quase pareciam uma sotaina. Calçava botas grossas, de tacão largo, que, dado o seu modo pesado de andar, faziam barulho, um toque-toque no chão que não a deixava passar despercebida onde quer que fosse. O seu ar pesadão e soturno fazia medo aos garotos, que fugiam dela como o diabo da cruz. Um deles era o Joãozito Marau, um garoto de imaginação fértil, muito brincalhão.

Um dia o Joãozito, então com quatro ou cinco anos de idade, encontrou em casa, vazio, o frasquinho dum remédio, muito bonito, branquinho e transparente, com o formato duma garrafinha pequenina, com rolha de cortiça e tudo. Encheu-o de chichi e rolhou-o. Ficou quentinho que era uma beleza. Com tal tesouro na mão veio para a rua brincar.

Estava tão embebido no mundo da sua fantasia que nem ouviu o toque-toque de aproximação da D. Ernestina dos Anjos e sobressaltou-se só quando a sentiu a seu lado, a perguntar:

– Olá Joãozito, que estás a fazer?

O miúdo olhou para cima, para lhe ver o rosto severo, e respondeu:

– Estou a brincar.

– A brincar com quê? Que é que tens aí no frasquinho?

Atrapalhado com aquela pergunta inesperada, o garoto olhou para o frasco e a cor do líquido inspirou-lhe a resposta:

– É azeite.

D. Ernestina dos Anjos ficou siderada. O azeite era, por aquele tempo, o produto alimentar mais difícil de arranjar em Quinta do Frade. De tal modo que, as mães de família, quando conseguiam comprar algum no mercado negro, ele era tão caro que tinham de pôr aos filhos a questão de saber que é que eles preferiam a acompanhar as batatas cozidas com couves da ceia, se um pedacinho de peixe ou um pingo de azeite. As dificuldades da vida não possibilitavam que lhes dessem a comer as duas coisas ao mesmo tempo. Ao pingo de azeite era então acrescentado um pouco da água de cozer as berças, para parecer mais. Daí o espanto com que D. Ernestina perguntou:

– Então a tua mãe deixa-te andar a brincar com azeite? Mostra-me cá!

Pegou o frasquinho da mãozita do miúdo, tirou-lhe a rolha e levou-o ao nariz. «Ah porco, que é mijeira!» – exclamou indignada… E atirou o frasquinho fora, contra o muro.

Desencantado, o Joãozito ficou para morrer… Aquela mulher horrorosa, que não tinha nada a ver com ele, destruíra num instante toda a fantasia do mundo maravilhoso em que estava a brincar!…
 

 
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