D. Ernestina dos Anjos e Joãozito
Capítulo
13
Quando se apresentou em Quinta do Frade padre António vinha acompanhado
dum irmão, de idade muito próxima da sua, que passou alguns dias com
ele, para lhe dar apoio nesse tempo inicial, e depois regressou à sua
terra. Mais tarde vieram, e passaram a viver com ele para sempre na casa
paroquial, a mãe e uma irmã.
A irmã, D. Ernestina dos Anjos, era uma mulher enorme, alta e forte, com
perto de metro e oitenta de altura. Vestia sempre de negro, uns vestidos
compridos até ao chão, com muitos botões, que quase pareciam uma
sotaina. Calçava botas grossas, de tacão largo, que, dado o seu modo
pesado de andar, faziam barulho, um toque-toque no chão que não a
deixava passar despercebida onde quer que fosse. O seu ar pesadão e
soturno fazia medo aos garotos, que fugiam dela como o diabo da cruz. Um
deles era o Joãozito Marau, um garoto de imaginação fértil, muito
brincalhão.
Um dia o Joãozito, então com quatro ou cinco anos de idade, encontrou em
casa, vazio, o frasquinho dum remédio, muito bonito, branquinho e
transparente, com o formato duma garrafinha pequenina, com rolha de
cortiça e tudo. Encheu-o de chichi e rolhou-o. Ficou quentinho que era
uma beleza. Com tal tesouro na mão veio para a rua brincar.
Estava tão embebido no mundo da sua fantasia que nem ouviu o toque-toque
de aproximação da D. Ernestina dos Anjos e sobressaltou-se só quando a
sentiu a seu lado, a perguntar:
– Olá Joãozito, que estás a fazer?
O miúdo olhou para cima, para lhe ver o rosto severo, e respondeu:
– Estou a brincar.
– A brincar com quê? Que é que tens aí no frasquinho?
Atrapalhado com aquela pergunta inesperada, o garoto olhou para o frasco
e a cor do líquido inspirou-lhe a resposta:
– É azeite.
D. Ernestina dos Anjos ficou siderada. O azeite era, por aquele tempo, o
produto alimentar mais difícil de arranjar em Quinta do Frade. De tal
modo que, as mães de família, quando conseguiam comprar algum no mercado
negro, ele era tão caro que tinham de pôr aos filhos a questão de saber
que é que eles preferiam a acompanhar as batatas cozidas com couves da
ceia, se um pedacinho de peixe ou um pingo de azeite. As dificuldades da
vida não possibilitavam que lhes dessem a comer as duas coisas ao mesmo
tempo. Ao pingo de azeite era então acrescentado um pouco da água de
cozer as berças, para parecer mais. Daí o espanto com que D. Ernestina
perguntou:
– Então a tua mãe deixa-te andar a brincar com azeite? Mostra-me cá!
Pegou o frasquinho da mãozita do miúdo, tirou-lhe a rolha e levou-o ao
nariz. «Ah porco, que é mijeira!» – exclamou indignada… E atirou o
frasquinho fora, contra o muro.
Desencantado, o Joãozito ficou para morrer… Aquela mulher horrorosa, que
não tinha nada a ver com ele, destruíra num instante toda a fantasia do
mundo maravilhoso em que estava a brincar!…
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