Mário Castrim - CETA

Auto à maneira vicentina

<<<                                              Cena VII

 

(Entra em cena nova personagem — Patuá.)

PATUÁ -

Dão licença? Uma emergência
atrasou-me nesta instância.

ANJO -

Aí tens outra pendência.

PATUÁ -

Pode entrar minha excelência?

DIABO -

Pois sim, dada a circunstância...

PATUÁ -

Bem, dada a complexidade...

DIABO -

Vamos lá pôr os pontos nos ii. Preparas-te para uma versalhada, não é?

PATUÁ -

Claro. Se D. Sebastião teve direito a Camões...

DIABO -

Sebastião comeu tudo, tudo, tudo... A gente vai-se entender, mas em prosa. Tu não és o doutor Patuá?

PATUÁ -

Ah, conheces-me?

DIABO -

Toda a gente te conhece. Apareces todos os dias no Telejornal.

PATUÁ -

A propósito. Onde está a câmara de televisão? O quê?! Ainda não veio?! Amanhã vão apanhar uma rabecada. Sempre quero ver se eles também não aparecem quando eu chegar ao céu. Vai ser uma recepção de truz. Tenho aqui a minuta do discurso para quando Deus me vier receber. (Tira o papel do bolso.) «Meu bom Senhor! Na crise das ideologias que o mundo atravessa, com as profundas rupturas nos conceitos e nas vivências...»

DIABO -

Perde a esperança, tu que governaste! O reino para onde vais é outro e muito diferente. Temos umas contas a ajustar.

PATUÁ -

Comigo? Ora essa! Sempre pautei a minha actuação pela observância da mais rigorosa fidelidade aos interesses da Nação.

DIABO -

Vamos por partes. Prometeste baixar o desemprego. E afinal...

PATUÁ -

Que é que querias. Querias que eu dissesse que ele ia aumentar?

DIABO -

Prometeste baixar a inflação...

PATUÁ -

Prometi.

DIABO -

Prometeste combater a corrupção...

PATUÁ -

Prometi.

DIABO -

Prometeste melhorar o ensino...

PATUÁ -

Prometi.

DIABO -

Prometeste que não prometias mais...

PATUÁ -

Prometi.

DIABO -

E não cumpriste.

PATUÁ -

Tu não sabes que em política tudo consiste em prometer? Acreditar nas promessas faz parte da natureza humana.

DIABO -

E onde está o plano director?

PATUÁ -

Quem?

DIABO -

E a defesa do património?

PATUÁ -

Onde?

DIABO -

E os poluidores castigados?

PATUÁ -

O quê?

DIABO -

E o combate à burocracia?

PATUÁ -

Quando?

DIABO -

E a regulamentação do trânsito?

PATUÁ -

Qual?

DIABO -

E os favores aos amigalhaços?

PATUÁ -

Porquê?

DIABO -

Não me fugirás, isso te garanto eu! Virás comigo e terás o que mereces.

PATUÁ -

Espera um pouco. As opções estratégicas são muito claras. Estamos numa encruzilhada e se queremos aceitar o desafio de 1992, há que correr o risco de uma profunda alteração nos comportamentos. A contumácia industrial provoca uma obliteração nas ideologias estruturais da Europa ocidental e cristã, pelo que, em defesa da conjuntura...

DIABO -

Não te canses, meu velho. Sei o discurso de cor. Ignoras que era eu, às vezes, que to deixava todo escrito na memória? Anda. Não vale de nada oferecer resistência. O inferno está à nossa espera.

PATUÁ -

Está bem, se não há outra alternativa... Só te peço uma coisa, diabinho da minha alma, espera que venha o Telejornal...

DIABO -

Ah, se é por isso, não te preocupes. Ele também já lá está.

PATUÁ -

Aonde?

DIABO -

No inferno, onde é que havia de ser. Anda...

(Afastam-se lentamente em direcção ao barco. A luz vai-se apagando lentamente. Escurece. Quando a luz volta, Gil Vicente está no palco ladeado pelo Anjo e pelo Diabo.)

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