Gil Vicente sou e Mestre me chamaram,
talvez polo muito que da vida sabia, e não apenas dos livros que em meu tempo
eram raros e nem sequer livros de cheques havíamos.
Aqui estou, por obra e graça (Voltando-se para o Anjo)
deste que ao céu me foi buscar, disse ele que para dar honra a esta função.
De lá vim, digo que com muita alegria, pois já não aguentava mais as harpas
dos anjinhos e as festinhas vãs das onze mil virgens, essas coitadas que por
muito que lhes queiramos dar nunca mais deixarão de o ser. Lá, só comida nos
dão de hóstias e pétalas e um dia quase me expulsaram por ter sonhado com
umas enguias de escabeche. Se eu vim, sou franco, mais por via disso foi que por
honra a uma função que não precisa dela, pois tem este amável povo para lha
prestar.
A Barca que eu escrevi foi representada por contemplação
da sereníssima e mui católica rainha dona Lianor. Também eu desejaria que
estivesse ora presente a mui digna Princesa Santa Joana, que aqui não vejo
certamente por não poder andar polo muito bronze com que a carregaram.
Aqui estou somente para louvar as gentes deste teatro não
só por sua muita devoção, mas pelo muito frio que aqui rapam durante os
ensaios.
Mais direi que se não falo em verso, como desejava, isso
se deveu a uma imposição da Câmara que me ameaçou de pesadas coimas, e se
tanto acoimado fui em vida, ao menos me salve disso depois de morto.
Quanto às enguias de escabeche, já sabem. Se ainda
encontrarem por aí uma latinha, levem-ma lá dentro, mas de modo a que este
não veja, pois de contrário me deixaria ir para o inferno como os outros.
Mais vos digo que em todos os tempos houve tristezas e
males. Não vos deixeis vencer pelos temores pois, como disse um que ali vejo,
entre dores e noites demoradas, sempre «o porvir amanhece».