Mário Castrim - CETA

Auto à maneira vicentina

<<<                                              Cena VI

 

SARABANDO

Sou o João Sarabando.

ANJO -

Todos nós o conhecemos
Todos nós bem lhe queremos.

DIABO -

Eu já te andava mancando...

ANJO -

Não há porcos, não há demos
que lhe possam mal fazer.

DIABO -

Isso é o que iremos ver.
(Falando para o João Sarabando)
o que tens pra nos dizer?

SARABANDO

Que é que eu posso responder?
Não me perguntaste nada...

DIABO -

Ai tu queres conversa... Podias confessar já tudo e ficávamos despachados...

SARABANDO

Boa ideia. Eu até gosto de me deitar cedo.
Portanto, confesso.

DIABO -

Ora isso é que é falar.

ANJO -

(Falando para o João Sarabando)
Cuidado com este guizo
que falseia toda a lei.

SARABANDO

Anjo, poupa o teu aviso.
Falei, quando foi preciso.
Se foi preciso, calei.

DIABO -

Confessa, João, confessa. Tu disseste que ias confessar.

SARABANDO

Confesso que amei a minha terra.

DIABO -

Isso é uma agravante.

SARABANDO

Confesso que só pensei nela toda a vida.

DIABO -

Tás pior, rapaz. Quanto mais falas, mais te enterras.

SARABANDO

Confesso que nunca fui capaz de respirar outros ares senão estes.

DIABO -

Estás a pedir cacetada nesse lombo.

SARABANDO

Confesso que só tenho voz e memória para estas ruas... estas águas... estas casas... esta gente... este teatro em que estamos...

DIABO -

Por isso é que tens esta claque toda, esta malta...

SARABANDO

A malta que eu amo. Porque o teatro é cultura, é arte, espelha a vida do passado, do presente e do porvir que amanhece...

DIABO -

Que não viesse a piadinha política... Mas ao castigo é que tu não foges.

SARABANDO

Porquê?

DIABO -

Porque foste um grandecíssimo tolo, um ingénuo, um idealista, uma erva rasteira...

SARABANDO

Sim, erva rasteira, para ficar mais perto do meu chão...

DIABO -

Ouve lá. É verdade que te convidaram para altos cargos e que os recusaste?

SARABANDO

Assim foi.

DIABO -

E que podias ganhar muito dinheiro e recusaste...

SARABANDO

Recusei.

DIABO -

Que te ofereceram lugar e trabalho longe daqui e disseste que não...

SARABANDO

Isso mesmo.

DIABO -

Foste um parvalhão.

SARABANDO

Mereço castigo?

DIABO -

Claro. Para o inferno vão os maus e os parvos. (Trocista) A GLÓRIA DE SER AVEIRENSE! E como é que Aveiro te tem pago?

SARABANDO

Aveiro não me deve nada. O amor também se paga?

DIABO -

Tu ainda és desse tempo, João?! Fidalgo sem comedoria... Por isso é que hás-de vir comigo para o meu reino. Além do mais, cá em baixo estragas-me o negócio. Virás, sim, nem o anjo te vale.

SARABANDO

Não preciso que ninguém me valha: (Declamando)
Bicho sujo te esconjuro
para a água te afogar.
Vai para longe, porco sujo,
pra onde a água te levar...

DIABO -

Pronto, não digas mais... Não fales mais, que me pões nervoso.

SARABANDO

Ainda conheço mais...

DIABO -

Eu sei, eu sei, também já li esse cancioneiro... Mas agora, por favor, cala-te. (Voltando-se para o Anjo) Ò lingrinhas, fica com este, a ver se te estreias.

ANJO -

(Levando Sarabando pela mão)
Deste mais luz à candeia,
és a memória, João.
Deus diz que é cedo para a ceia.
Vá, senta-te na plateia
vê o resto da função.

DIABO -

Está na hora da partida!
Ah, ventinho que aí vem!
(Voltando-se para a plateia)
Cama, dinheiro, comida
Gozem todos bem a vida
venham comigo também.
Se é decente ou indecente
isso que importa, ieramá!

ANJO -

Ieramá? É coisa má?

DIABO -

Não sei, mas se Gil Vicente
o diz, é porque certo está.

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