|
(Entra em cena o Industrial.)
|
|
|
ANJO - |
Anda cá, tens gente à espera.
|
|
|
DIABO - |
Lá vou! Olá... Que sinal!
Cheira-me a industrial...
|
|
|
INDUSTRIAL |
É o que eu sou.
Ih!, que fera!
Qual o barco celestial?
|
|
|
DIABO - |
Anjo de ervinha cidreira
torceste o nariz também.
A ti a que é que te cheira?
|
|
|
ANJO - |
Aonde está a caldeira
que me cheira tanto mal?
|
|
|
DIABO - |
(Apontando o industrial) Ali está.
|
|
|
INDUSTRIAL |
Vós que estais falando?
|
|
|
DIABO - |
Nada, apenas murmurando...
Cartas na mesa. Cá o lingrinhas anda em busca de algum
chalado da pinha que tenha lugar no céu. Ainda não se estreou, coitado, e bem
me quer parecer que ainda não será desta. O pobre do rapaz não ganha para o
pitrol.
|
|
|
INDUSTRIAL |
E tu quem és?
|
|
|
DIABO - |
Sou o diabo e estou aqui para te levar comigo
para o inferno. De maneira que não percas tempo. Somos gente de negócios e
sabemos que time is money.
|
|
|
INDUSTRIAL |
Estás maluco, ou quê?
|
|
|
DIABO - |
Estou quê!...
|
|
|
INDUSTRIAL |
Não te faças de engraçado comigo, está
bem? Tu não mandas nada. As leis sou eu que as faço ou se alguém as faz
contra mim, dou-lhes a volta e fica tudo igual àquilo que eu quero. Estás a
olhar para mim? Sabes quem eu sou?
|
|
|
DIABO - |
És o Cássio...
|
|
|
INDUSTRIAL |
Sou mais do que isso.
|
|
|
DIABO - |
Eu sei, eu sei. Está tudo aqui, o que é que
pensas. O inferno já está informatizado. És portanto o Cássio Lingueirão de
Esgoto e Porcaria, principal accionista da Sociedade Liquidatária do Ambiente,
com sucursais em todo o mundo. Dás cabadia dos peixes, das plantas, engordas de
mercúrio as enguias para assim provocares doenças mortais...
|
|
|
INDUSTRIAL |
Pobre diabo! Os carroceis da Feira de
Março deram-te volta ao miolo.
|
|
|
DIABO - |
Perdão. Está tudo ali no computador e os meus
empregados não dormem em serviço.
|
|
|
INDUSTRIAL |
Agora a sério. De que é que me acusam?
|
|
|
DIABO - |
O tipo é surdo ou faz-se? Achas pouco o que eu
disse?
|
|
|
INDUSTRIAL |
É o progresso, meu filho!
|
|
|
ANJO - |
Aborrece-me a cantata
que exaltas no teu interesse.
Progresso é uma alma de prata.
Pois se o teu progresso mata
então que progresso é esse?
|
|
|
DIABO - |
Ouviste, Frei João, ouviste agora? O lingrinhas
tem carradas de razão.
|
|
|
INDUSTRIAL |
Falo em alhos, respondem-me em bugalhos. Eu
já disse que é o progresso.
|
|
|
DIABO - |
Progresso o que fazes em Cacia?
|
|
|
INDUSTRIAL |
Evidentemente.
|
|
|
DIABO - |
Mas tu não moras lá...
|
|
|
INDUSTRIAL |
Eu? Livra!
|
|
|
DIABO - |
Ah, então tu não gostas do teu progresso...
|
|
|
INDUSTRIAL |
Olha, rapaz, a galinha põe os ovos e não
gosta de ovos estrelados.
|
|
|
DIABO - |
O teu progresso então é só para os outros...
(Começa a andar à volta dele)
E por isso estás a matar a Ria de
Aveiro, a menina dos olhos desta terra... E por isso estás a pôr Estarreja em
cima de um barril de pólvora... E por isso matas o Rio Vouga, a Pateira de
Fermentelos, a Barrinha de Esmoriz... E por isso matas os peixes, destróis as
árvores, envenenas o ar que respiramos... Sabes? Sabes? No meu inferno já se
respira melhor do que em muitos lugares deste distrito!
|
|
|
INDUSTRIAL |
Tem calma, tem calma! Ouve-me primeiro.
Tens um espírito demoníaco, mas também deves ter um espírito democrático.
Tens de ser do nosso tempo, caramba, estamos na Europa, é preciso aceitar o
desafio!
|
|
|
DIABO - |
Já sei, já sei, também costumo ver o
Telejornal...
|
|
|
INDUSTRIAL |
Está em jogo o progresso, o
desenvolvimento, a riqueza do país!
|
|
|
DIABO - |
A riqueza do teu bolso, queres tu dizer. (Voltando-se
para o Anjo)
Ouve lá, ò Lingrinhas, porque será que certas pessoas quando
querem falar delas próprias dizem “o país”? (O anjo encolhe os ombros.
Novamente para o industrial.)
Pois é, meu espertalhão, tu fugiste de
respirar os belos ares de Cacia, mas não fugirás a respirar os meus. Anda ela
por ela...
|
|
|
INDUSTRIAL |
Volto a apelar para o teu espírito
democrático... Podíamos ir a votos...
|
|
|
DIABO - |
Ora aí está uma ideia. Vamos a votos.
|
|
|
INDUSTRIAL |
Assim é que é. (Aparte)
Estou
garantido. Os pobres votam sempre nos ricos...
|
|
|
DIABO - |
Distinta plateia. Acabaste de ouvir o que
acabaste de ouvir. Aqui o figurão diz que provoca o nosso mal pensando no nosso
bem.
O que pensais, anjo bom?
|
|
|
ANJO - |
O que é que eu hei-de pensar?
Só Deus nos pode julgar.
Eu cá não tenho esse dom.
Vença o voto popular.
|
|
|
DIABO - |
Estás a ver, benemérito, estás a ver? O anjo
não quer manipular o eleitorado. Assim é que a televisão devia fazer.
Distinta Assembleia, a decisão será por braço no ar. Quem acha que este homem
devia ir para o inferno? Quem acha que devia ir para o céu, e talvez para a
mão direita de Deus Padre?...
(Fazem-se as contas. Ad libitum.)
Como vês, benemérito, nada a fazer. Essa
história dos votos com o chamariz do progresso e do desenvolvimento nem sempre
pega. Vem por aqui...
|
|
|
INDUSTRIAL |
O progresso é que é a moda.
Anda-me a cabeça à roda.
Sei de um químico que esgana...
Não matei a Ria toda
e só isso é que me dana.
Não tendes nenhuma lei.
Tudo o meu dinheiro dobra.
Vou para o inferno. Mas sei
que muitos aqui deixei
para acabar a minha obra...
|
|
|
DIABO - |
(Voltando-se para o seu barco)
Eh, arrais
da maldição! Anúncios da assombração estão prestes a chegar, velas,
cordas, lemes, tralha — tudo a postos pra largar sobre as ondas, na esgalha.
Ah, este ventinho que anda à nossa volta, e desanda e manda na gente e manda
não amaina, não abranda, de uma banda a outra banda, nem nos deixa respirar,
nem nos dá tempo a acenar um lenço bem encharcado, vento que manda e demanda,
mais picado e mais farpado, o desmando que ciranda, sarabanda, sarabanda...
(Dá de súbito com a nova personagem que entra em cena.)
... e desanda... e anda... e
manda... sarabanda... sarabanda... Que coisa mais estranha esta coincidência.
Olha lá, tu não és...
|