Mário Castrim - CETA

Auto à maneira vicentina

<<<                                              Cena V

 

(Entra em cena o Industrial.)

ANJO -

Anda cá, tens gente à espera.

DIABO -

Lá vou! Olá... Que sinal!
Cheira-me a industrial...

INDUSTRIAL    

É o que eu sou.
Ih!, que fera!
Qual o barco celestial?

DIABO -

Anjo de ervinha cidreira
torceste o nariz também.
A ti a que é que te cheira?

ANJO -

Aonde está a caldeira
que me cheira tanto mal?

DIABO -

(Apontando o industrial) Ali está.

INDUSTRIAL

Vós que estais falando?

DIABO -

Nada, apenas murmurando...
Cartas na mesa. Cá o lingrinhas anda em busca de algum chalado da pinha que tenha lugar no céu. Ainda não se estreou, coitado, e bem me quer parecer que ainda não será desta. O pobre do rapaz não ganha para o pitrol.

INDUSTRIAL

E tu quem és?

DIABO -

Sou o diabo e estou aqui para te levar comigo para o inferno. De maneira que não percas tempo. Somos gente de negócios e sabemos que time is money.

INDUSTRIAL

Estás maluco, ou quê?

DIABO -

Estou quê!...

INDUSTRIAL

Não te faças de engraçado comigo, está bem? Tu não mandas nada. As leis sou eu que as faço ou se alguém as faz contra mim, dou-lhes a volta e fica tudo igual àquilo que eu quero. Estás a olhar para mim? Sabes quem eu sou?

DIABO -

És o Cássio...

INDUSTRIAL

Sou mais do que isso.

DIABO -

Eu sei, eu sei. Está tudo aqui, o que é que pensas. O inferno já está informatizado. És portanto o Cássio Lingueirão de Esgoto e Porcaria, principal accionista da Sociedade Liquidatária do Ambiente, com sucursais em todo o mundo. Dás cabadia dos peixes, das plantas, engordas de mercúrio as enguias para assim provocares doenças mortais...

INDUSTRIAL

Pobre diabo! Os carroceis da Feira de Março deram-te volta ao miolo.

DIABO -

Perdão. Está tudo ali no computador e os meus empregados não dormem em serviço.

INDUSTRIAL

Agora a sério. De que é que me acusam?

DIABO -

O tipo é surdo ou faz-se? Achas pouco o que eu disse?

INDUSTRIAL

É o progresso, meu filho!

ANJO -

Aborrece-me a cantata
que exaltas no teu interesse.
Progresso é uma alma de prata.
Pois se o teu progresso mata
então que progresso é esse?

DIABO -

Ouviste, Frei João, ouviste agora? O lingrinhas tem carradas de razão.

INDUSTRIAL

Falo em alhos, respondem-me em bugalhos. Eu já disse que é o progresso.

DIABO -

Progresso o que fazes em Cacia?

INDUSTRIAL

Evidentemente.

DIABO -

Mas tu não moras lá...

INDUSTRIAL

Eu? Livra!

DIABO -

Ah, então tu não gostas do teu progresso...

INDUSTRIAL

Olha, rapaz, a galinha põe os ovos e não gosta de ovos estrelados.

DIABO -

O teu progresso então é só para os outros... (Começa a andar à volta dele) E por isso estás a matar a Ria de Aveiro, a menina dos olhos desta terra... E por isso estás a pôr Estarreja em cima de um barril de pólvora... E por isso matas o Rio Vouga, a Pateira de Fermentelos, a Barrinha de Esmoriz... E por isso matas os peixes, destróis as árvores, envenenas o ar que respiramos... Sabes? Sabes? No meu inferno já se respira melhor do que em muitos lugares deste distrito!

INDUSTRIAL

Tem calma, tem calma! Ouve-me primeiro. Tens um espírito demoníaco, mas também deves ter um espírito democrático. Tens de ser do nosso tempo, caramba, estamos na Europa, é preciso aceitar o desafio!

DIABO -

Já sei, já sei, também costumo ver o Telejornal...

INDUSTRIAL

Está em jogo o progresso, o desenvolvimento, a riqueza do país!

DIABO -

A riqueza do teu bolso, queres tu dizer. (Voltando-se para o Anjo) Ouve lá, ò Lingrinhas, porque será que certas pessoas quando querem falar delas próprias dizem “o país”? (O anjo encolhe os ombros. Novamente para o industrial.) Pois é, meu espertalhão, tu fugiste de respirar os belos ares de Cacia, mas não fugirás a respirar os meus. Anda ela por ela...

INDUSTRIAL

Volto a apelar para o teu espírito democrático... Podíamos ir a votos...

DIABO -

Ora aí está uma ideia. Vamos a votos.

INDUSTRIAL

Assim é que é. (Aparte) Estou garantido. Os pobres votam sempre nos ricos...

DIABO -

Distinta plateia. Acabaste de ouvir o que acabaste de ouvir. Aqui o figurão diz que provoca o nosso mal pensando no nosso bem.
O que pensais, anjo bom?

ANJO -

O que é que eu hei-de pensar?
Só Deus nos pode julgar.
Eu cá não tenho esse dom.
Vença o voto popular.

DIABO -

Estás a ver, benemérito, estás a ver? O anjo não quer manipular o eleitorado. Assim é que a televisão devia fazer. Distinta Assembleia, a decisão será por braço no ar. Quem acha que este homem devia ir para o inferno? Quem acha que devia ir para o céu, e talvez para a mão direita de Deus Padre?...

(Fazem-se as contas. Ad libitum.)

Como vês, benemérito, nada a fazer. Essa história dos votos com o chamariz do progresso e do desenvolvimento nem sempre pega. Vem por aqui...

INDUSTRIAL

O progresso é que é a moda.
Anda-me a cabeça à roda.
Sei de um químico que esgana...
Não matei a Ria toda
e só isso é que me dana.
Não tendes nenhuma lei.
Tudo o meu dinheiro dobra.
Vou para o inferno. Mas sei
que muitos aqui deixei
para acabar a minha obra...

DIABO -

(Voltando-se para o seu barco) Eh, arrais da maldição! Anúncios da assombração estão prestes a chegar, velas, cordas, lemes, tralha — tudo a postos pra largar sobre as ondas, na esgalha. Ah, este ventinho que anda à nossa volta, e desanda e manda na gente e manda não amaina, não abranda, de uma banda a outra banda, nem nos deixa respirar, nem nos dá tempo a acenar um lenço bem encharcado, vento que manda e demanda, mais picado e mais farpado, o desmando que ciranda, sarabanda, sarabanda... 

(Dá de súbito com a nova personagem que entra em cena.)

... e desanda... e anda... e manda... sarabanda... sarabanda... Que coisa mais estranha esta coincidência. Olha lá, tu não és...

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