Mário Castrim - CETA

Auto à maneira vicentina

<<<                                              Cena IV

 

(Entra em cena D. Francisca, a Fivela.)

ANJO -

Olhai que tendes freguês.

DIABO -

Que guapa, desta vez!
Vinde, andai, que pressa temos
de acabar o entremez.

FIVELA -

Oremos, irmãos, oremos!

DIABO -

Parece que estou a conhecer-te, dona. Tu não és a Francisca...

FIVELA -

Dona Francisca!

DIABO -

Dona é lá em baixo. E por enquanto. Aqui manda a igualdade. Então a madama queria privilégios... Não sabias que a perestroika já chegou cá acima? Não sabias, Francisca? Não sabias, Francisca Isabel de Valadares...

FIVELA -

Com dois eles.

DIABO -

Francisca Isabel Valadares com dois eles, Estearina.

FIVELA -

Com H depois do T.

DIABO -

Francisca Isabel Valadares com dois eles Estearina com h depois do t, de Lencastre e Alcabideche.

FIVELA -

Alcabideche com K.

DIABO -

Pois, Alcabideche como deve ser. Somos ambos nobres, sabes? Eu também ainda uso o K quando escrevo cagalhão.

FIVELA -

Malcriado. Antes do 25 de Abril nunca se ouviam destas coisas.

DIABO -

Para simplificar, vou tratar-te por Fivela.

FIVELA -

Fivela é a tua tia.

DIABO -

É a tua sigla, rica, estamos no siglo das siglas. Se te chamasses FEOGA, ou PEDIP, ou PIDAC, era bem pior.

FIVELA -

Abrenúncio!

DIABO -

Já vês. Então tu que queres, Fivelinha da minha alma?

FIVELA -

Quero saber qual é a barca do céu.

DIABO -

Só essa vos convém?

FIVELA -

Só essa. Toda a vida fiz por isso.

DIABO -

Tu que fizeste?

FIVELA -

Rezei.

DIABO -

Mas depois de rezar difamaste as tuas amigas.

FIVELA -

Comunguei.

DIABO -

Mas batias nos teus servos.

FIVELA -

Isso foi antes do 25 de Abril. Ai que saudades!

DIABO -

Mas agora voltaste quase à mesma. Puseste na rua e na miséria a criadinha que te apareceu grávida.

FIVELA -

Nunca admiti poucas-vergonhas.

DIABO -

Inveja. Inveja era o que tu tinhas. Inveja do amor, do prazer, da juventude, disso que tu nunca tiveste.

FIVELA -

(Dirigindo-se ao Anjo) Ah, como sou infeliz!
Ouves o que este me diz
e ficas nessa moleza?

ANJO -

Sou anjo. Não sou juiz.
Defende-te, se tens defesa.

DIABO -

Anda cá, Fivela, anda cá. A telenovela ainda não chegou ao fim. Que mais fazias tu?

FIVELA -

Eu ia à missa...

DIABO -

Pois... E pagavas mal aos teus servidores e deixava-los morrer à míngua e sem remédios e denunciaste aqueles trabalhadores que...

FIVELA -

Isso foi antes do 25 de Abril e quem fez isso foi o meu marido que Deus tem.

DIABO -

Deus? Tenho-o eu, rapariga, e vais vê-lo não tarda nada.

FIVELA -

Eu sempre acatei a palavra do Senhor.

DIABO -

Dos senhores, queres tu dizer. Afastaste quem não pensava como tu. Foste intolerante. Pisaste os mais fracos. Fizeste ostentação da tua riqueza, tiraste vingança, juraste falso, fechaste os olhos a quem precisou de ti. É assim, a palavra do teu Senhor?

FIVELA -

De tudo isso o meu confessor me perdoou.

DIABO -

Mas eu, não. Nem eu, nem aquele, nem o patrão dele que não desfazendo até é uma boa pessoa. Tu mastigavas a palavra, não a seguias. Tiveste a palavra sempre na boca, a palavra nunca te desceu ao coração, ia logo direita às tripas.

FIVELA -

Mas eu rezei, dava esmolas...

ANJO -

Perde essa ideia de vista.
Tu caíste do cavalo.
Perde a esperança no jurista.
Ganha o céu quem o conquista
perde o céu quem quer comprá-lo.

DIABO -

Ouviste bem? Estás feita. Anda comigo, Fivela. Eu, como sou gentil com as damas, ainda te ofereço o meu braço para te apoiares, até ao barco. S’il vous plaît, madame.

FIVELA -

Enganaram-me. Disseram
que ir à missa era bastante.
Todas as flores morreram
no veneno que lhes deram.
Oração não é purgante.

Rezarmos, bater no peito,
não chega, como se faz.
De repente vem um jeito
em que o único respeito
é o braço de Satanás.

(Afastam-se em direcção ao barco. O Diabo volta-se para trás, pisca o olho ao anjo. Depois fala para dentro do barco.)

DIABO -

Eh moço, não sejas bruto!
Estende a mão cuidadosa
e colhe este doce fruto.
Fivela tem estatuto
de madama piedosa...

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