CORRUPTO |
Posso entrar agora já?
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ANJO - |
Entra, sim.
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DIABO - |
Entra vizinho.
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CORRUPTO |
(Para o Anjo) E por onde quereis que
eu vá?
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ANJO - |
Depende do que será
o que trazes no bolsinho.
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CORRUPTO |
Trago notas, notas, notas
de fazer uma
alcatifa.
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DIABO - |
Postas de pescada arrotas
(Para o Anjo)
Almas não, mas anedotas
é o que hoje te sai na rifa.
(Para o corrupto)
O que é que pretendes, meu?
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CORRUPTO |
Qual é a barca do Céu?
É esta aqui ou aquela?
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DIABO - |
Estás perdido, béubéu,
se não sabes qual é ela.
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CORRUPTO |
Na verdade, enxergo mal.
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DIABO - |
Cavalheiro, etc. e tal... Vamos lá acabar com a
versalhada, que é o falar dos anjos, e vamos a conversar na linguagem de toda a
gente.
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CORRUPTO |
Isso e o que eu quero é tudo a mesma coisa.
Nunca tive jeito para Camões. Tantos versos fez que ficou sem um olho! É no
que dá.
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DIABO - |
Olha lá... Parece que te estou a conhecer. Tu
não eras o...
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CORRUPTO |
Era, dizes bem, era... Tudo o que eu fui, fui
o que eu era. Mas tudo o que eu era não será mais aquilo que eu sou.
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DIABO - |
Isso cheira-me a Fernando Pessoa. O diabo, salvo
seja, o diabo é que tudo o que se diz em Portugal cheira a Fernando Pessoa.
Não é um poeta, é uma cebola.
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CORRUPTO |
O quê?
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DIABO - |
Nada, nada. Esquece. Ora eu estou a conhecer-te.
Eras alto... Magrinho... Devias passar muita fome... Chamavam-te... Deixa cá
ver... Ah, já sei, eras o Palito...
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CORRUPTO |
Fala baixo, ladrão, podem ouvir-te. Eu agora
sou um homem respeitável.
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DIABO - |
Ah, sim?
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CORRUPTO |
Claro. Tenho dinheiro, percebes? E quem tem
dinheiro é sempre respeitável.
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DIABO - |
Mas o que é que tu fazes?
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CORRUPTO |
Participo nos simpósios, entro nas mesas
redondas, vou à televisão, faço discursos sobre a conjuntura e a eficácia
dos equinócios na cultura dos marmelos.
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DIABO - |
Olha lá, como foi que tu entraste nessa
marmelada?
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CORRUPTO |
Foi sempre dentro da maior honestidade.
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DIABO - |
Evidentemente, evidentemente!
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CORRUPTO |
Primeiro, consegui aquele subsídio para a
minha empresa, (Baixando a voz)
uma empresa que não existia.
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DIABO - |
Uma empresa tua... que não existia... que coisa
mais diabólica! E depois?
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CORRUPTO |
Depois, com esse subsídio, fui ao Tibete, à
Disneylândia, ao Algarve e comprei um Peugeot.
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DIABO - |
Estou a ver. És um notável gestor. E a tua
casa?
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CORRUPTO |
Ah, essa foi com os dinheiros que vieram da
Suécia para a Cooperativa. Uma casa com jardim, solário, piscina...
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DIABO - |
Sobejou algum?
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CORRUPTO |
Sobejou. Esse ficou para a Cooperativa.
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DIABO - |
Entendo. Sempre dentro da maior honestidade.
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CORRUPTO |
Ora nem mais! Nem de mim era de esperar outra
coisa. Depois troquei o Peugeot pelo Rolls Royce. Adquiri aquele palheiro na
Costa.
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DIABO - |
Só isso foi uma fortuna. Um palheiro a sério?
Dos antigos?
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CORRUPTO |
Com selo de garantia e tudo, que eu cá não
sou parvo.
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DIABO - |
A seguir, compraste o moliceiro.
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CORRUPTO |
Uma maravilha!
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DIABO - |
Antigo?
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CORRUPTO |
Antiquíssimo! Ainda é do tempo dos
fenícios!
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DIABO - |
Isso foi uma loucura.
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CORRUPTO |
Mas dá prestígio. Se em vez de seres Diabo
fosses aveirense, havias de compreender melhor.
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DIABO - |
Bem. Temos ainda a quinta com brasão...
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CORRUPTO |
Estupenda! Ainda lá havia uma casota onde a
princesa Santa Joana costumava ir rezar com um banquinho onde ela se sentava.
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DIABO - |
Que foi que fizeste ao banquinho?
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CORRUPTO |
Ofereci-o à Misericórdia para o mandar pôr
ali debaixo da estátua, a ver se ela parece mais alta.
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DIABO - |
Ouve cá, ò Palito...
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CORRUPTO |
Fala baixo, com os demónios!
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DIABO - |
Como foi que arranjaste dinheiro para isso tudo?
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CORRUPTO |
Candidatei-me ao Fundo Social Europeu, com
uma empresa para desenvolver a indústria do Sal. Foi fácil. Sou amigo de um
ministro, sabes...
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DIABO - |
E o sal?
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CORRUPTO |
O sal? (Rindo)
Estás louco? Então tu
não ouves o doutor Fernando Pádua, na Televisão, a dizer cobras e lagartos do
sal? Nunca farei nada que traga prejuízo ao meu semelhante.
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DIABO - |
Tudo dentro da maior honestidade de processos.
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CORRUPTO |
Tudo. Ainda fizeram uma data de inquéritos,
mas ficou tudo em águas de bacalhau. A propósito: estou a pensar em
candidatar-me ao subsídio alemão para a pesca do bacalhau. O que é que achas?
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DIABO - |
Acho que é tarde, Palito. Para onde vais, tu
já não precisas de bacalhau, nem de automóveis, nem de casas, nem de
piscinas, nem de amantes...
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CORRUPTO |
Cala a boca! A minha mulher pode estar por
aí... Não me arranjes sarilhos, pelo amor de ...
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DIABO - |
Eh! Anda. Anda depressa. Aquela é a tua barca.
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CORRUPTO |
(Para o Anjo)
Esta barca é muito
feia.
Tenho medo, medo, medo.
Não me dás uma boleia?
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DIABO - |
Fica longe a Cassiopeia
acabou o teu enredo.
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CORRUPTO |
(Voltando-se para a plateia)
Esta vida
é um vespeiro
com tais negócios na praça.
Mistérios do nevoeiro!
Todo me dei por dinheiro
vou para o inferno de graça.
(Embarca o corrupto no moliceiro do Diabo.)
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ANJO - |
Não, não há corruptos sãos.
A ambição nunca se acalma.
Condenam projectos vãos.
Primeiro, queimam-se as mãos,
a seguir, queima-se a alma.
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DIABO - |
Que bem falais, anjo meu!
Falar assim queria eu
mas sou um pobre diabo
a quem só cresceu o rabo
depois que caí do Céu.
Ao menos a tabuada
gostava eu de cantar.
“Dois mais sete...” Nada, nada.
vejo aquela cruz danada
deixo logo de somar...
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