Mário Castrim - CETA

Auto à maneira vicentina

<<<                                              Cena III

 

CORRUPTO    

Posso entrar agora já?

ANJO -

Entra, sim.

DIABO -

Entra vizinho.

CORRUPTO

(Para o Anjo) E por onde quereis que eu vá?

ANJO -

Depende do que será
o que trazes no bolsinho.

CORRUPTO

Trago notas, notas, notas
de fazer uma alcatifa.

DIABO -

Postas de pescada arrotas
(Para o Anjo) Almas não, mas anedotas
é o que hoje te sai na rifa.
(Para o corrupto) O que é que pretendes, meu?

CORRUPTO

Qual é a barca do Céu?
É esta aqui ou aquela?

DIABO -

Estás perdido, béubéu,
se não sabes qual é ela.

CORRUPTO

Na verdade, enxergo mal.

DIABO -

Cavalheiro, etc. e tal... Vamos lá acabar com a versalhada, que é o falar dos anjos, e vamos a conversar na linguagem de toda a gente.

CORRUPTO

Isso e o que eu quero é tudo a mesma coisa. Nunca tive jeito para Camões. Tantos versos fez que ficou sem um olho! É no que dá.

DIABO -

Olha lá... Parece que te estou a conhecer. Tu não eras o...

CORRUPTO

Era, dizes bem, era... Tudo o que eu fui, fui o que eu era. Mas tudo o que eu era não será mais aquilo que eu sou.

DIABO -

Isso cheira-me a Fernando Pessoa. O diabo, salvo seja, o diabo é que tudo o que se diz em Portugal cheira a Fernando Pessoa. Não é um poeta, é uma cebola.

CORRUPTO

O quê?

DIABO -

Nada, nada. Esquece. Ora eu estou a conhecer-te. Eras alto... Magrinho... Devias passar muita fome... Chamavam-te... Deixa cá ver... Ah, já sei, eras o Palito...

CORRUPTO

Fala baixo, ladrão, podem ouvir-te. Eu agora sou um homem respeitável.

DIABO -

Ah, sim?

CORRUPTO

Claro. Tenho dinheiro, percebes? E quem tem dinheiro é sempre respeitável.

DIABO -

Mas o que é que tu fazes?

CORRUPTO

Participo nos simpósios, entro nas mesas redondas, vou à televisão, faço discursos sobre a conjuntura e a eficácia dos equinócios na cultura dos marmelos.

DIABO -

Olha lá, como foi que tu entraste nessa marmelada?

CORRUPTO

Foi sempre dentro da maior honestidade.

DIABO -

Evidentemente, evidentemente!

CORRUPTO

Primeiro, consegui aquele subsídio para a minha empresa, (Baixando a voz) uma empresa que não existia.

DIABO -

Uma empresa tua... que não existia... que coisa mais diabólica! E depois?

CORRUPTO

Depois, com esse subsídio, fui ao Tibete, à Disneylândia, ao Algarve e comprei um Peugeot.

DIABO -

Estou a ver. És um notável gestor. E a tua casa?

CORRUPTO

Ah, essa foi com os dinheiros que vieram da Suécia para a Cooperativa. Uma casa com jardim, solário, piscina...

DIABO -

Sobejou algum?

CORRUPTO

Sobejou. Esse ficou para a Cooperativa.

DIABO -

Entendo. Sempre dentro da maior honestidade.

CORRUPTO

Ora nem mais! Nem de mim era de esperar outra coisa. Depois troquei o Peugeot pelo Rolls Royce. Adquiri aquele palheiro na Costa.

DIABO -

Só isso foi uma fortuna. Um palheiro a sério? Dos antigos?

CORRUPTO

Com selo de garantia e tudo, que eu cá não sou parvo.

DIABO -

A seguir, compraste o moliceiro.

CORRUPTO

Uma maravilha!

DIABO -

Antigo?

CORRUPTO

Antiquíssimo! Ainda é do tempo dos fenícios!

DIABO -

Isso foi uma loucura.

CORRUPTO

Mas dá prestígio. Se em vez de seres Diabo fosses aveirense, havias de compreender melhor.

DIABO -

Bem. Temos ainda a quinta com brasão...

CORRUPTO

Estupenda! Ainda lá havia uma casota onde a princesa Santa Joana costumava ir rezar com um banquinho onde ela se sentava.

DIABO -

Que foi que fizeste ao banquinho?

CORRUPTO

Ofereci-o à Misericórdia para o mandar pôr ali debaixo da estátua, a ver se ela parece mais alta.

DIABO -

Ouve cá, ò Palito...

CORRUPTO

Fala baixo, com os demónios!

DIABO -

Como foi que arranjaste dinheiro para isso tudo?

CORRUPTO

Candidatei-me ao Fundo Social Europeu, com uma empresa para desenvolver a indústria do Sal. Foi fácil. Sou amigo de um ministro, sabes...

DIABO -

E o sal?

CORRUPTO

O sal? (Rindo) Estás louco? Então tu não ouves o doutor Fernando Pádua, na Televisão, a dizer cobras e lagartos do sal? Nunca farei nada que traga prejuízo ao meu semelhante.

DIABO -

Tudo dentro da maior honestidade de processos.

CORRUPTO

Tudo. Ainda fizeram uma data de inquéritos, mas ficou tudo em águas de bacalhau. A propósito: estou a pensar em candidatar-me ao subsídio alemão para a pesca do bacalhau. O que é que achas?

DIABO -

Acho que é tarde, Palito. Para onde vais, tu já não precisas de bacalhau, nem de automóveis, nem de casas, nem de piscinas, nem de amantes...

CORRUPTO

Cala a boca! A minha mulher pode estar por aí... Não me arranjes sarilhos, pelo amor de ...

DIABO -

Eh! Anda. Anda depressa. Aquela é a tua barca.

CORRUPTO

(Para o Anjo) Esta barca é muito feia.
Tenho medo, medo, medo.
Não me dás uma boleia?

DIABO -

Fica longe a Cassiopeia
acabou o teu enredo.

CORRUPTO

(Voltando-se para a plateia)
Esta vida é um vespeiro
com tais negócios na praça.
Mistérios do nevoeiro!
Todo me dei por dinheiro
vou para o inferno de graça.

(Embarca o corrupto no moliceiro do Diabo.)

ANJO -

Não, não há corruptos sãos.
A ambição nunca se acalma.
Condenam projectos vãos.
Primeiro, queimam-se as mãos,
a seguir, queima-se a alma.

DIABO -

Que bem falais, anjo meu!
Falar assim queria eu
mas sou um pobre diabo
a quem só cresceu o rabo
depois que caí do Céu.

Ao menos a tabuada
gostava eu de cantar.
“Dois mais sete...” Nada, nada.
vejo aquela cruz danada
deixo logo de somar...

>>>


Página anterior Índice geral Página seguinte