DIABO - |
Arrais, entrou um... Oh! Oh!
Prepara o barco, malandro.
(Para a personagem)
Vem andando, vem andando,
que já estás mordendo o isco. |
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ANJO - |
Agnus Dei! Dominus Vobisco. |
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DIABO - |
Eu já me estava admirando
pois sendo um tal anjo assim
que não viesse o latim.
Ó anjo, sê deste mundo!
E o Vaticano segundo? |
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CONSTRUTOR
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Sê do mundo, como a mim. |
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ANJO - |
Quem és tu, filho de Deus? |
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CONSTRUTOR |
Ser filho de Deus já basta. |
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DIABO - |
Nesta casa não se gasta. |
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ANJO - |
Perdão é a arma dos céus. |
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DIABO - |
Pois eu cá uso a vergasta.
(Dá com uma corda no construtor.) |
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CONSTRUTOR |
Não entendo as vossas leis.
Por que é que me bateis? |
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DIABO - |
Olha, ele quer falar em verso!
Não é uma jóia?
Mas p'ra cá vens de carrinho. |
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CONSTRUTOR |
Ora essa, também tenho direito
à poesia. |
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DIABO - |
Isso é quando falares com
aquele, se ele te deixar. Comigo, não. Comigo, vais corrido a prosa. Pensas que isto é Gil Vicente, ou quê? |
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CONSTRUTOR |
Gil Vicente? Não conheço. Nunca
foi meu freguês. Como sou um Fabiano muito delicado, vou apresentar-me. O
meu nome é João das Lebres e... |
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DIABO - |
João das Lebres, construtor
civil. Está aqui tudo, o que é que pensas. O inferno tem a
escrita em dia. |
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CONSTRUTOR |
E tu quem és, se não fica mal
perguntar? |
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DIABO - |
Satanás, Belzebu, Demónio,
Galhudo, Maligno, Mefistófeles para os letrados, Niquinho, Porco-Sujo,
Pé de Cabra, Taneco, Tinhoso, enfim, tenho mais nomes do que a rainha
Maria Carlota. Mas se quiseres, chama-me Diabo, que é o meu nome mais
popular. |
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CONSTRUTOR |
Claro, tantas vezes me mandaram
para o diabo que acabei por vir. De qualquer maneira, muito prazer em
conhecê-lo. Em que é que lhe posso ser útil? |
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DIABO - |
Já lá vamos... Agora, uma conversazinha...
É verdade ou não que estás a destruir a Barra, a destruir os seus olhos
verdes, o gosto da sua Ria? Que estás a transformá-la numa praia de cimento?
Que até já estás a entrar pelo mar dentro?
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CONSTRUTOR |
Mentira. No mar ainda não construí nada.
Mas espera aí, não era má ideia. Naquela extensão toda, o metro quadrado
deve ser baratíssimo.
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DIABO - |
Por este andar, os cagaréus têm de ir tomar
banho a Copacabana. Outra coisa. É verdade ou não que andas a levar as areias
de S. Jacinto?
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CONSTRUTOR |
Tudo legal.
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DIABO - |
Que estás a destruir as dunas....
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CONSTRUTOR |
Tudo legal.
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DIABO - |
Que estás a destruir a plantação, enquanto
outros querem defendê-la?
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CONSTRUTOR |
Tudo legal. Mas por que é que só me
acusas a mim? Vai buscar os outros, anda!
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DIABO - |
Lá chegaremos. Hoje sou eu a pedir contas, mas
um dia há-de ser todo o povo de Aveiro.
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CONSTRUTOR |
Pois sim, o povo de Aveiro quer lá saber
disso. E agora pergunto eu: isso das areias e das dunas e das plantinhas,
coitadinhas, é pecado?
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DIABO - |
Pecado mortal, homem! O bastante para te meter
dentro do caldeirão. A ti e aos mais que te deixam as mãos livres.
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CONSTRUTOR |
Eu trabalho para o bem de todos.
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DIABO - |
Não me digas! Trabalhas para o bem de todos
quando constróis por aí prédios e prédios sem segurança? Quando avanças as
tuas obras até ao meio da rua? Quando abafas de cimento e de mau gosto o
coração histórico da cidade?
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CONSTRUTOR |
Ena, o que aí vai! O coração, eu? Eu nem
sei o que isso é.
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DIABO - |
É verdade ou não que desfiguras a cidade com
os teus mamarrachos? É verdade ou não que sonhas destruir as casas das pessoas
que deram nome à cidade, para construir os teus cacifos pindéricos?
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CONSTRUTOR |
Homem, calma aí. A falar é que a gente se
entende.
Vamos lá falar de negócios.
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DIABO - |
(Apontando a barca)
O teu negócio está
ali.
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CONSTRUTOR |
Espera lá, caramba. (Confidencial)
Estou a pensar
em fazer aí uns apartamentos de luxo. Coisa fina.
Coisa aí para sessenta mil contos, estás a ver? Nem nas Amoreiras em Lisboa,
que também foram construídas por mim. Conheces o Canal? O que passa ali mesmo
atrás? Pois vou fazer desaparecer tudo aquilo para fazer um bairro de fazer
inveja ao Siza Vieira. E o edifício do CETA, conheces? Em menos de um minuto
deito-o abaixo, aliás é uma ideia minha muito antiga. Para que raio precisam
as pessoas de teatro? E em lugar dele faço um duplex formidável. Aqui nesta
área, vale como ouro. Ora a gente podia combinar...
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DIABO - |
Isso pra mim não pega.
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CONSTRUTOR |
Ora, ora, bem conversadinho, pega com
todos, como é que não pega contigo...
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DIABO - |
(Segurando-o pelo braço e encaminhando-o
para a sua
barca)
Toca a andar.
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CONSTRUTOR |
(Para o Anjo)
Tu aí, que podes tanto,
Tu deixas-me ir, de bandeja?
Dei esmolas, fiz uma igreja...
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ANJO - |
Só posso dar-te o meu pranto,
(Para o diabo)
Podes levá-lo. Assim seja.
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DIABO - |
Estás a ver, rapaz? Nem o anjo te quer. E tem
juízo. Se fosses para o céu, com os teus buldózeres e essa tralha toda, lá se
ia o repouso de Jeová, Até as onze mil virgens fugiam para o Inferno. O que
para elas não era nada má ideia, diga-se de passagem... Vamos.
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CONSTRUTOR |
Tarde me diz o estudo
que o mal sempre acaba assim.
Caí nas mãos do chifrudo.
Eu cá, que construí tudo,
só me destruí a mim.
Desta ferida que dói
fique lição para a vida
pois seja santo ou herói
nada de bom se constrói
sobre a alma destruída.
(Entra na barca. Aparece já outra personagem — O Corrupto.)
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