Mário Castrim - CETA

Auto à maneira vicentina

<<<                                            Cena II

 

DIABO -

Arrais, entrou um... Oh! Oh!
Prepara o barco, malandro.

(Para a personagem)

Vem andando, vem andando,
que já estás mordendo o isco.

ANJO -

Agnus Dei! Dominus Vobisco.

DIABO -

Eu já me estava admirando
pois sendo um tal anjo assim
que não viesse o latim.
Ó anjo, sê deste mundo!
E o Vaticano segundo?

CONSTRUTOR

Sê do mundo, como a mim.

ANJO -

Quem és tu, filho de Deus?

CONSTRUTOR

Ser filho de Deus já basta.

DIABO -

Nesta casa não se gasta.

ANJO -

Perdão é a arma dos céus.

DIABO -

Pois eu cá uso a vergasta.

(Dá com uma corda no construtor.)

CONSTRUTOR

Não entendo as vossas leis.
Por que é que me bateis?

DIABO -

Olha, ele quer falar em verso! Não é uma jóia?
Mas p'ra cá vens de carrinho.

CONSTRUTOR

Ora essa, também tenho direito à poesia.

DIABO -

Isso é quando falares com aquele, se ele te deixar. Comigo, não. Comigo, vais corrido a prosa. Pensas que isto é Gil Vicente, ou quê?

CONSTRUTOR

Gil Vicente? Não conheço. Nunca foi meu freguês. Como sou um Fabiano muito delicado, vou apresentar-me. O meu nome é João das Lebres e...

DIABO -

João das Lebres, construtor civil. Está aqui tudo, o que é que pensas. O inferno tem a escrita em dia.

CONSTRUTOR

E tu quem és, se não fica mal perguntar?

DIABO -

Satanás, Belzebu, Demónio, Galhudo, Maligno, Mefistófeles para os letrados, Niquinho, Porco-Sujo, Pé de Cabra, Taneco, Tinhoso, enfim, tenho mais nomes do que a rainha Maria Carlota. Mas se quiseres, chama-me Diabo, que é o meu nome mais popular.

CONSTRUTOR

Claro, tantas vezes me mandaram para o diabo que acabei por vir. De qualquer maneira, muito prazer em conhecê-lo. Em que é que lhe posso ser útil?

DIABO -

Já lá vamos... Agora, uma conversazinha...
É verdade ou não que estás a destruir a Barra, a destruir os seus olhos verdes, o gosto da sua Ria? Que estás a transformá-la numa praia de cimento? Que até já estás a entrar pelo mar dentro?

CONSTRUTOR

Mentira. No mar ainda não construí nada. Mas espera aí, não era má ideia. Naquela extensão toda, o metro quadrado deve ser baratíssimo.

DIABO -

Por este andar, os cagaréus têm de ir tomar banho a Copacabana. Outra coisa. É verdade ou não que andas a levar as areias de S. Jacinto?

CONSTRUTOR

Tudo legal.

DIABO -

Que estás a destruir as dunas....

CONSTRUTOR

Tudo legal.

DIABO -

Que estás a destruir a plantação, enquanto outros querem defendê-la?

CONSTRUTOR

Tudo legal. Mas por que é que só me acusas a mim? Vai buscar os outros, anda!

DIABO -

Lá chegaremos. Hoje sou eu a pedir contas, mas um dia há-de ser todo o povo de Aveiro.

CONSTRUTOR

Pois sim, o povo de Aveiro quer lá saber disso. E agora pergunto eu: isso das areias e das dunas e das plantinhas, coitadinhas, é pecado?

DIABO -

Pecado mortal, homem! O bastante para te meter dentro do caldeirão. A ti e aos mais que te deixam as mãos livres.

CONSTRUTOR

Eu trabalho para o bem de todos.

DIABO -

Não me digas! Trabalhas para o bem de todos quando constróis por aí prédios e prédios sem segurança? Quando avanças as tuas obras até ao meio da rua? Quando abafas de cimento e de mau gosto o coração histórico da cidade?

CONSTRUTOR

Ena, o que aí vai! O coração, eu? Eu nem sei o que isso é.

DIABO -

É verdade ou não que desfiguras a cidade com os teus mamarrachos? É verdade ou não que sonhas destruir as casas das pessoas que deram nome à cidade, para construir os teus cacifos pindéricos?

CONSTRUTOR

Homem, calma aí. A falar é que a gente se entende.
Vamos lá falar de negócios.

DIABO -

(Apontando a barca) O teu negócio está ali.

CONSTRUTOR

Espera lá, caramba. (Confidencial) Estou a pensar em fazer aí uns apartamentos de luxo. Coisa fina.
Coisa aí para sessenta mil contos, estás a ver? Nem nas Amoreiras em Lisboa, que também foram construídas por mim. Conheces o Canal? O que passa ali mesmo atrás? Pois vou fazer desaparecer tudo aquilo para fazer um bairro de fazer inveja ao Siza Vieira. E o edifício do CETA, conheces? Em menos de um minuto deito-o abaixo, aliás é uma ideia minha muito antiga. Para que raio precisam as pessoas de teatro? E em lugar dele faço um duplex formidável. Aqui nesta área, vale como ouro. Ora a gente podia combinar...

DIABO -

Isso pra mim não pega.

CONSTRUTOR

Ora, ora, bem conversadinho, pega com todos, como é que não pega contigo...

DIABO -

(Segurando-o pelo braço e encaminhando-o para a sua barca) Toca a andar.

CONSTRUTOR

(Para o Anjo) Tu aí, que podes tanto,
Tu deixas-me ir, de bandeja?
Dei esmolas, fiz uma igreja...

ANJO -

Só posso dar-te o meu pranto,
(Para o diabo) Podes levá-lo. Assim seja.

DIABO -

Estás a ver, rapaz? Nem o anjo te quer. E tem juízo. Se fosses para o céu, com os teus buldózeres e essa tralha toda, lá se ia o repouso de Jeová, Até as onze mil virgens fugiam para o Inferno. O que para elas não era nada má ideia, diga-se de passagem... Vamos.

CONSTRUTOR   

Tarde me diz o estudo
que o mal sempre acaba assim.
Caí nas mãos do chifrudo.
Eu cá, que construí tudo,
só me destruí a mim.

Desta ferida que dói
fique lição para a vida
pois seja santo ou herói
nada de bom se constrói
sobre a alma destruída.

(Entra na barca. Aparece já outra personagem — O Corrupto.)

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