(Ao
fundo, baile de gala em casa do Barão de Vila Pouca. No primeiro plano,
Luís Gomes de Carvalho e Mulher. Luís Gomes de Carvalho está vestido
com a farda de coronel dos exércitos portugueses.)
MARIA
FRANCISCA
O
culpado disto tudo é o rei! O rei é um mole!
GOMES
DE CARVALHO
Maria
Francisca, não sejas injusta! D. João VI é um homem bom, e nós não
nos podemos esquecer de tudo que ele fez por nós numa altura em que ninguém
acreditava em mim.
MARIA
FRANCISCA
Eu
não me esqueço, Luís. Só que isso, que foi muito importante para nós...
GOMES
DE CARVALHO
E
para a cidade de Aveiro ... E para o país...
MARIA
FRANCISCA
Seja:
que foi muito importante para toda a gente! Só que isso não pode
justificar o que agora está a fazer...
E
depois eu não estou tão segura, como tu, da importância do apoio que o
rei, enquanto príncipe, te deu... Penso, mesmo, que se não fosse o Conde
de Linhares, as obras da barra teriam ficado, mais uma vez, para as calendas
gregas...
GOMES
DE CARVALHO
O
nervosismo não te deixa raciocinar. Claro que o entusiasmo do Sr. Conde
de Linhares foi decisivo. Mas, se S. Alteza se tivesse oposto, bem pouco
teria valido tal entusiasmo...
MARIA
FRANCISCA
Tenho
sérias dúvidas! O rei já então era o que hoje é: um mol que vai para
onde o empurram.
Naquela
altura, era o Conde de Linhares que o empurrava; hoje é a mulher e o
tarado do filho, o D. Miguel!...
GOMES
DE CARVALHO
Tens
muito pouco respeito pela realeza!...
MARIA
FRANCISCA
Queres
que te diga? Não tenho nenhum. Em França, Luís XVI e
Maria Antonieta ficaram sem cabeça porque o povo lha cortou...
E
os reis que depois deles vieram, com medo que lha cortem, já nasceram
sem ela!...
GOMES
DE CARVALHO
O
que p'raí vai, mulher... O que p'raí vai!... Se alguém de fora te
ouvisse, diria que és uma jacobina, ou pior que isso, uma republicana!...
MARIA
FRANCISCA
Eu
de política não entendo nada, Luís. Mas há coisas que não posso
engolir.
Explica-me
lá tu, que estiveste no cerne da questão, e foste, aqui em Aveiro, o
grande arauto das novas ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. É
ou não verdade que, após a revolução do Porto, Aveiro foi uma das
primeiras cidades a aderir?
GOMES
DE CARVALHO
É
verdade, mulher. A revolução rebentou no Porto, no dia 24
de Agosto, e, em Aveiro,
seis dias depois estava na rua.
MARIA
FRANCISCA
Pronto
! Aveiro aderiu... E tu estiveste na primeira linha... E não foste só
tu, foi toda a gente de bem. Até o bispo, D. Manuel Pacheco de Resende,
deu a sua adesão. É verdade ou mentira?
GOMES
DE CARVALHO
É
verdade...
MARIA
FRANCISCA
Eu
não me posso esquecer do Te-Deum celebrado em Santo António, com a
presença da Câmara, dos militares, do Bispo, de toda a gente. A alegria,
a determinação com que todos gritaram:” Juro defender a constituição”
E
o que se passou em Aveiro repetiu-se por toda a parte. O país inteiro
jurou a Constituição. Até o rei, ainda no Brasil e já depois em
Portugal, fez igual juramento... Isto quer dizer que qualquer acto que
pretenda derrubar esta lei jurada pelo país inteiro e pelo rei é um acto
de rebelião que, como tal, deve ser punido!
É
ou não assim?
GOMES
DE CARVALHO
Tens
razão, mulher!
MARIA
FRANCISCA
Se
assim é, a que título o Sr. D. Miguel, apoiado por sua “exclentíssima”
mãe, se permite impor ao rei outra lei, outra constituição que ninguém
aprovou e muito menos jurou?
GOMES
DE CARVALHO
É
um golpe de força, mulher! É uma rebelião contra a
Constituição, contra o rei
e contra o regime!
MARIA
FRANCISCA
E
o rei, o que é que o rei faz? Encolhe-se. Tem medo e encolhe-se! Mas tem
medo de quê e de quem? De um trauliteiro, brigão, que invade, altas
horas da noite, as tavernas de Lisboa na companhia de prostitutas e
rufias, ou tem medo que a rainha lhe parta os cornos que, como é público
e sabido, há muito lhe põe com qualquer cortesão?...
GOMES
DE CARVALHO
Cuidado,
Maria Francisca!
MARIA
FRANCISCA
Estamos
em nossa casa! Ou já nem em nossa casa podemos falar à vontade?!
GOMES
DE CARVALHO
As
paredes têm ouvidos, mulher! E, infelizmente, nem em nossa casa podemos
falar à vontade... As paredes com ouvidos são uma velha tradição
portuguesa, Maria Francisca... Uma velha tradição portuguesa!
MARIA
FRANCISCA
Terra
desgraçada! País de bonifrates!
GOMES
DE CARVALHO
Que,
apesar disso, são queimados...
MARIA
FRANCISCA
Não!
Que por isso mesmo são queimados!...
Que ao menos se levantem e lavem com o sangue esta lama que a todos nos
afoga!
GOMES
DE CARVALHO
Cuidado,
mulher! Não cuspas para o ar. D. Miguel e todo o ódio que sempre o
acompanham estão no poder... São capazes de tudo! Já festejam a vitória
com solenes “Te-Deums”
MARIA
FRANCISCA
O
eterno jogo malabar da “Santa Madre”...
GOMES
DE CARVALHO
E
agora é este baile no palácio do Barão de Vila Pouca! Que ostentação!...
MARIA
FRANCISCA
E
quem é que paga toda esta bebedeira de ódio?
GOMES
DE CARVALHO
É
o povo! Somos nós... E o povo!...
Aqueles
que os foram esperar e lhes bateram palmas e gritam: viva D. Miguel! Mal
sonham que todo este festim está a ser pago com o dinheiro da barra que
tanta falta faz às obras em curso!
MARIA
FRANCISCA
No
tempo do Intendente Cardoso Verney isso não aconteceria...
GOMES
DE CARVALHO
Mas,
infelizmente, não estamos no tempo do Intendente Cardoso Verney...
Estamos, sim, no tempo dos “ inauferíveis direitos de sua Majestade!"
No tempo da vingança!
MARIA
FRANCISCA
Mas
tu ainda és o Governador Militar da Cidade!
GOMES
DE CARVALHO
Não!
Infelizmente, eu já não sou o Governador Militar da Cidade; acabo de ser
substituído por outro... Que se dizia muito liberal, e que,
vergonhosamente, se passou para o campo do inimigo!
O
dinheiro das “obras da barra" dá para comprar muita consciência e
o Sr. D. Miguel e a corja que o acompanha sabem muito bem fazer tais
“negócios".
MARIA
FRANCISCA
Seja
como for, ainda temos connosco a Cidade do Porto e muita gente por esse país
a cabo...
Eu
não acredito que o povo de Aveiro, a quem tanto deste, te abandone nesta
hora tão negra... Eu não acredito...
(Batem
violentamente à porta.)
GOMES
DE CARVALHO
Não
é, certamente, o povo de Aveiro...
(Batem
à porta com mais força. Pergunta para fora:) Quem é?
VOZ
DE FORA
Abra,
em nome da lei!
MARIA
FRANCISCA
Não
abras, Luís!
(De
novo pancadas mais fortes, ainda.)
VOZ
DE FORA
Abra,
ou rebentamos a porta!...
MARIA
FRANCISCA
Recebe-os
a fogo, homem!
GOMES
DE CARVALHO
E
depois?... Estamos na mó de baixo, mulher... Conservemos a cabeça ...
fria, se possível!...
MARIA
FRANCISCA
Não
te reconheço...
GOMES
DE CARVALHO
Reconheces,
sim. Reconheces, quando estiveres mais calma! (Vai à porta e abre
quando batiam de novo. Entram de roldão Almeida Coimbra, acompanhado por
uma força militar.)
ALMEIDA
COIMBRA
(Dirigindo-se
a Gomes de Carvalho e pondo-lhe a mão no ombro)
Cidadão
Luís Gomes de Carvalho, considere-se preso, em nome da lei!
GOMES
DE CARVALHO
Qual
lei, "cidadão" Almeida Coimbra?
ALMEIDA
COIMBRA
O
cidadão Gomes de Carvalho quer mesmo saber a lei?
MARIA
FRANCISCA
Suponho
que meu marido foi muito claro, "cidadão" Almeida Coimbra!...
ALMEIDA
COIMBRA
Minha
senhora...
MARIA
FRANCISCA
Deixe-se
de falsas delicadezas, "cidadão" Almeida Coimbra... Mais do que
"senhora" eu sou uma cidadã com direitos... e deveres!
ALMEIDA
COIMBRA
(procurando
conter-se.)
Sra.
D. Maria Francisca de Paula Oudinot... V. Exª é apenas uma senhora e
isso basta para eu não ter de a prender, também...
MARIA
FRANCISCA
Talvez
eu fosse a medalha que falta no seu colar de vilanias, "cidadão"
Almeida Coimbra...
(Almeida
Coimbra vai para lhe deitar a mão, mas contem-se no último instante.)
ALMEIDA
COIMBRA
(com
raiva contida e num último aviso.)
Minha
senhora...
GOMES
DE CARVALHO
Maria
Francisca, acalma-te... O "cidadão" Almeida Coimbra, que há
tanto tempo nos não dava a "honra" da sua visita e que da última
vez em que esteve em nossa casa saiu sem ter a delicadeza de se despedir,
vai ter, agora, pelo menos, a “gentileza“ de nos dizer em que lei se
fundamenta para entrar em nossa casa sem pedir licença e me dar voz de
prisão, sem ordem nem mandato legal!
ALMEIDA
COIMBRA
A
lei que me permite entrar em sua casa, a estas horas, para o prender, sem
ordem nem mandato, Cidadão Gomes de Carvalho, é a lei do mais forte!
Faço-me
entender?
GOMES
DE CARVALHO
Ah!
Agora percebo!
ALMEIDA
COIMBRA
Ganhámos,
Sr. Gomes de Carvalho. O poder é nosso. Somos nós quem faz e desfaz as
leis!
Acabaram-se,
em Aveiro, os ateus, os pedreiros livres e toda essa cambada de liberais,
jacobinos! E constitucionalistas!
(Grita)
Abaixo
a Constituição!
A
TROPA
Abaixo
a Constituição!
ALMEIDA
COIMBRA
Viva
o príncipe D. Miguel!
A
TROPA
Viva
o príncipe D. Miguel!
ALMEIDA
COIMBRA
Viva
El-Rei D. João VI, Senhor absoluto destes reinos de Portugal!
A
TROPA
Viva!
GOMES
DE CARVALHO
Quer
dizer: sou preso em nome do Sr. D. João VI?
ALMEIDA
COIMBRA
Sim,
cidadão Luís Gomes de Carvalho, é preso em nome d’El-Rei D. João VI
e por ordem de S. Alteza Real, o Sr. D. Miguel!
GOMES
DE CARVALHO
Não
acato ordens do Sr. D. Miguel e não acredito que El-Rei D. João VI me
tivesse mandado prender! Por isso, não saio desta casa, senão pela força
das armas!
ALMEIDA
COIMBRA
Resiste?
GOMES
DE CARVALHO
(levando
a mão à espada.)
Resisto!
ALMEIDA
COIMBRA
(para
o tropa)
À força!
(A
tropa executa e manieta Gomes de Carvalho, perante a resistência deste.)
GOMES
DE CARVALHO
(enquanto
é desarmado, preso e arrastado.)
Apelo
ao povo de Aveiro!...
ALMEIDA
COIMBRA
(dando
uma gargalhada de escárnio.)
O
povo de Aveiro!...
(A
Mulher agarra-se ao marido e procura impedir que o levem. É brutalmente
afastada pela tropa. Procura voltar a agarrar-se ao marido. É impedida,
agora, por Almeida Coimbra, que a segura e abana com toda a violência.
Atira com ela ao chão e dá-lhe um pontapé.)