Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                                  QUADRO XII

 

(Ao fundo, baile de gala em casa do Barão de Vila Pouca. No primeiro plano, Luís Gomes de Carvalho e Mulher. Luís Gomes de Carvalho está vestido com a farda de coronel dos exércitos portugueses.)

MARIA FRANCISCA

O culpado disto tudo é o rei! O rei é um mole!

GOMES DE CARVALHO

Maria Francisca, não sejas injusta! D. João VI é um homem bom, e nós não nos podemos esquecer de tudo que ele fez por nós numa altura em que ninguém acreditava em mim.

MARIA FRANCISCA

Eu não me esqueço, Luís. Só que isso, que foi muito importante para nós...

GOMES DE CARVALHO

E para a cidade de Aveiro ... E para o país...

MARIA FRANCISCA

Seja: que foi muito importante para toda a gente! Só que isso não pode justificar o que agora está a fazer...

E depois eu não estou tão segura, como tu, da importância do apoio que o rei, enquanto príncipe, te deu... Penso, mesmo, que se não fosse o Conde de Linhares, as obras da barra teriam ficado, mais uma vez, para as calendas gregas...

GOMES DE CARVALHO

O nervosismo não te deixa raciocinar. Claro que o entusiasmo do Sr. Conde de Linhares foi decisivo. Mas, se S. Alteza se tivesse oposto, bem pouco teria valido tal entusiasmo...

MARIA FRANCISCA

Tenho sérias dúvidas! O rei já então era o que hoje é: um mol que vai para onde o empurram.

Naquela altura, era o Conde de Linhares que o empurrava; hoje é a mulher e o tarado do filho, o D. Miguel!...

GOMES DE CARVALHO

Tens muito pouco respeito pela realeza!...

MARIA FRANCISCA

Queres que te diga? Não tenho nenhum. Em França, Luís XVI e Maria Antonieta ficaram sem cabeça porque o povo lha cortou...

E os reis que depois deles vieram, com medo que lha cortem, já nasceram sem ela!...

GOMES DE CARVALHO

O que p'raí vai, mulher... O que p'raí vai!... Se alguém de fora te ouvisse, diria que és uma jacobina, ou pior que isso, uma republicana!...

MARIA FRANCISCA

Eu de política não entendo nada, Luís. Mas há coisas que não posso engolir.

Explica-me lá tu, que estiveste no cerne da questão, e foste, aqui em Aveiro, o grande arauto das novas ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. É ou não verdade que, após a revolução do Porto, Aveiro foi uma das primeiras cidades a aderir?

GOMES DE CARVALHO

É verdade, mulher. A revolução rebentou no Porto, no dia 24 de Agosto, e, em Aveiro, seis dias depois estava na rua.

MARIA FRANCISCA

Pronto ! Aveiro aderiu... E tu estiveste na primeira linha... E não foste só tu, foi toda a gente de bem. Até o bispo, D. Manuel Pacheco de Resende, deu a sua adesão. É verdade ou mentira?

GOMES DE CARVALHO

É verdade...

MARIA FRANCISCA

Eu não me posso esquecer do Te-Deum celebrado em Santo António, com a presença da Câmara, dos militares, do Bispo, de toda a gente. A alegria, a determinação com que todos gritaram:” Juro defender a constituição”

E o que se passou em Aveiro repetiu-se por toda a parte. O país inteiro jurou a Constituição. Até o rei, ainda no Brasil e já depois em Portugal, fez igual juramento... Isto quer dizer que qualquer acto que pretenda derrubar esta lei jurada pelo país inteiro e pelo rei é um acto de rebelião que, como tal, deve ser punido!

É ou não assim?

GOMES DE CARVALHO

Tens razão, mulher!

MARIA FRANCISCA

Se assim é, a que título o Sr. D. Miguel, apoiado por sua “exclentíssima” mãe, se permite impor ao rei outra lei, outra constituição que ninguém aprovou e muito menos jurou?

GOMES DE CARVALHO

É um golpe de força, mulher! É uma rebelião contra a Constituição, contra o rei e contra o regime!

MARIA FRANCISCA

E o rei, o que é que o rei faz? Encolhe-se. Tem medo e encolhe-se! Mas tem medo de quê e de quem? De um trauliteiro, brigão, que invade, altas horas da noite, as tavernas de Lisboa na companhia de prostitutas e rufias, ou tem medo que a rainha lhe parta os cornos que, como é público e sabido, há muito lhe põe com qualquer cortesão?...

GOMES DE CARVALHO

Cuidado, Maria Francisca!

MARIA FRANCISCA

Estamos em nossa casa! Ou já nem em nossa casa podemos falar à vontade?!

GOMES DE CARVALHO

As paredes têm ouvidos, mulher! E, infelizmente, nem em nossa casa podemos falar à vontade... As paredes com ouvidos são uma velha tradição portuguesa, Maria Francisca... Uma velha tradição portuguesa!

MARIA FRANCISCA

Terra desgraçada! País de bonifrates!

GOMES DE CARVALHO

Que, apesar disso, são queimados...

MARIA FRANCISCA

Não! Que por isso mesmo são queimados!...
Que ao menos se levantem e lavem com o sangue esta lama que a todos nos afoga!

GOMES DE CARVALHO

Cuidado, mulher! Não cuspas para o ar. D. Miguel e todo o ódio que sempre o acompanham estão no poder... São capazes de tudo! Já festejam a vitória com solenes “Te-Deums”

MARIA FRANCISCA

O eterno jogo malabar da “Santa Madre”...

GOMES DE CARVALHO

E agora é este baile no palácio do Barão de Vila Pouca! Que ostentação!...

MARIA FRANCISCA

E quem é que paga toda esta bebedeira de ódio?

GOMES DE CARVALHO

É o povo! Somos nós... E o povo!...

Aqueles que os foram esperar e lhes bateram palmas e gritam: viva D. Miguel! Mal sonham que todo este festim está a ser pago com o dinheiro da barra que tanta falta faz às obras em curso!

MARIA FRANCISCA

No tempo do Intendente Cardoso Verney isso não aconteceria...

GOMES DE CARVALHO

Mas, infelizmente, não estamos no tempo do Intendente Cardoso Verney... Estamos, sim, no tempo dos “ inauferíveis direitos de sua Majestade!" No tempo da vingança!

MARIA FRANCISCA

Mas tu ainda és o Governador Militar da Cidade!

GOMES DE CARVALHO

Não! Infelizmente, eu já não sou o Governador Militar da Cidade; acabo de ser substituído por outro... Que se dizia muito liberal, e que, vergonhosamente, se passou para o campo do inimigo!

O dinheiro das “obras da barra" dá para comprar muita consciência e o Sr. D. Miguel e a corja que o acompanha sabem muito bem fazer tais “negócios".

MARIA FRANCISCA

Seja como for, ainda temos connosco a Cidade do Porto e muita gente por esse país a cabo...

Eu não acredito que o povo de Aveiro, a quem tanto deste, te abandone nesta hora tão negra... Eu não acredito...

(Batem violentamente à porta.)

GOMES DE CARVALHO

Não é, certamente, o povo de Aveiro...

(Batem à porta com mais força. Pergunta para fora:) Quem é?

VOZ DE FORA

Abra, em nome da lei!

MARIA FRANCISCA

Não abras, Luís!

(De novo pancadas mais fortes, ainda.)

VOZ DE FORA

Abra, ou rebentamos a porta!...

MARIA FRANCISCA

Recebe-os a fogo, homem!

GOMES DE CARVALHO

E depois?... Estamos na mó de baixo, mulher... Conservemos a cabeça ... fria, se possível!...

MARIA FRANCISCA

Não te reconheço...

GOMES DE CARVALHO

Reconheces, sim. Reconheces, quando estiveres mais calma! (Vai à porta e abre quando batiam de novo. Entram de roldão Almeida Coimbra, acompanhado por uma força militar.)

ALMEIDA COIMBRA

(Dirigindo-se a Gomes de Carvalho e pondo-lhe a mão no ombro)

Cidadão Luís Gomes de Carvalho, considere-se preso, em nome da lei!

GOMES DE CARVALHO

Qual lei, "cidadão" Almeida Coimbra?

ALMEIDA COIMBRA

O cidadão Gomes de Carvalho quer mesmo saber a lei?

MARIA FRANCISCA

Suponho que meu marido foi muito claro, "cidadão" Almeida Coimbra!...

ALMEIDA COIMBRA

Minha senhora...

MARIA FRANCISCA

Deixe-se de falsas delicadezas, "cidadão" Almeida Coimbra... Mais do que "senhora" eu sou uma cidadã com direitos... e deveres!

ALMEIDA COIMBRA

(procurando conter-se.)

Sra. D. Maria Francisca de Paula Oudinot... V. Exª é apenas uma senhora e isso basta para eu não ter de a prender, também...

MARIA FRANCISCA

Talvez eu fosse a medalha que falta no seu colar de vilanias, "cidadão" Almeida Coimbra...

(Almeida Coimbra vai para lhe deitar a mão, mas contem-se no último instante.)

ALMEIDA COIMBRA

(com raiva contida e num último aviso.)

Minha senhora...

GOMES DE CARVALHO

Maria Francisca, acalma-te... O "cidadão" Almeida Coimbra, que há tanto tempo nos não dava a "honra" da sua visita e que da última vez em que esteve em nossa casa saiu sem ter a delicadeza de se despedir, vai ter, agora, pelo menos, a “gentileza“ de nos dizer em que lei se fundamenta para entrar em nossa casa sem pedir licença e me dar voz de prisão, sem ordem nem mandato legal!

ALMEIDA COIMBRA

A lei que me permite entrar em sua casa, a estas horas, para o prender, sem ordem nem mandato, Cidadão Gomes de Carvalho, é a lei do mais forte!

Faço-me entender?

GOMES DE CARVALHO

Ah! Agora percebo!

ALMEIDA COIMBRA

Ganhámos, Sr. Gomes de Carvalho. O poder é nosso. Somos nós quem faz e desfaz as leis!

Acabaram-se, em Aveiro, os ateus, os pedreiros livres e toda essa cambada de liberais, jacobinos! E constitucionalistas!

(Grita)

Abaixo a Constituição!

A TROPA

Abaixo a Constituição!

ALMEIDA COIMBRA

Viva o príncipe D. Miguel!

A TROPA

Viva o príncipe D. Miguel!

ALMEIDA COIMBRA

Viva El-Rei D. João VI, Senhor absoluto destes reinos de Portugal!

A TROPA

Viva!

GOMES DE CARVALHO

Quer dizer: sou preso em nome do Sr. D. João VI?

ALMEIDA COIMBRA

Sim, cidadão Luís Gomes de Carvalho, é preso em nome d’El-Rei D. João VI e por ordem de S. Alteza Real, o Sr. D. Miguel!

GOMES DE CARVALHO

Não acato ordens do Sr. D. Miguel e não acredito que El-Rei D. João VI me tivesse mandado prender! Por isso, não saio desta casa, senão pela força das armas!

ALMEIDA COIMBRA

Resiste?

GOMES DE CARVALHO

(levando a mão à espada.)

Resisto!

ALMEIDA COIMBRA

(para o tropa)  
À força!

(A tropa executa e manieta Gomes de Carvalho, perante a resistência deste.)

GOMES DE CARVALHO

(enquanto é desarmado, preso e arrastado.)

Apelo ao povo de Aveiro!...

ALMEIDA COIMBRA

(dando uma gargalhada de escárnio.)

O povo de Aveiro!...

(A Mulher agarra-se ao marido e procura impedir que o levem. É brutalmente afastada pela tropa. Procura voltar a agarrar-se ao marido. É impedida, agora, por Almeida Coimbra, que a segura e abana com toda a violência. Atira com ela ao chão e dá-lhe um pontapé.)

ALMEIDA COIMBRA

Sua puta jacobina!

(escuro)

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