Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                                  QUADRO XI

 

APRESENTADOR

A alegria do povo de Aveiro era justificada.

Nas primeiras 24 horas, a água baixou, na cidade, três palmos; e outro tanto nas vinte e quatro horas seguintes.

Três dias depois, a cidade estava limpa de água e de lodos, graças, também, a uma boa chuvada que Deus mandou para lavar as ruas.

A barra ficou com a largura, e a profundidade, que hoje tem.

Cerca de um ano após ter sido aberta, uma esquadra inglesa, composta de 48 navios, entrou na barra em menos de uma hora, a fim de transportar alimentos para os exércitos que faziam frente à segunda invasão Francesa.

O governo, que permanecia no Brasil, mas as obras de limpeza da ria, da abertura de novos canais, da mudança do curso final do Vouga, (O Rio Novo do Príncipe) continuavam.., apesar da guerra com os Franceses e do próprio Luís Gomes de Carvalho nela ter participado como Quartel Mestre General e Comandante dos Engenheiros do Exército Português. A cidade e todas as redondezas, pouco a pouco, retomavam a vida fabril de antigamente... a caminho do Futuro!

(Movimento nas ruas. Compra e venda. Varinas, pregões. Nas marinhas grande azáfama, o mesmo no campo. Barcos entrando, barcos saindo. Marinheiros e pescadores. Ordens. Berros. Sobre tudo uma cantiga.)

ALGUÉM

(cantando)

Ó Aveiro, ó Aveiro
Terra da minha alegria, 
Embarcaste num veleiro,
Tornaste na maresia...

(Todos trabalham e cantam. Um marinheiro pega numa mulher que se oferece. Beija-a furiosamente. Saem abraçados. De repente entra uma sardinheira, meia descomposta, com a canastra mal segura, a fugir de uma Lavradeira que a persegue de forquilha em punho.)

LAVRADEIRA

Sua puta! Seu estupor. Toda em pelote metida na cama com o meu homem.

SARDINHEIRA

(Sustendo a corrida e apanhando uma pedra com que ameaça a Lavradeira.)

Ah, sua caloteira! Eu racho-lhe os cornos...

LAVRADEIRA

Foste tu que mos pusestes, sua vaca! Não tens vergonha, pandorca, de andares a dar a “coisa” a um homem casado, enquanto o teu anda lá pelo bacalhau, sabe-se Deus como!

SARDINHEIRA

Ah, sua Iíngua negra! Você há-de provar-mo no meirinho!

LAVRADEIRA

Provo! Provo!

SARDINHEIRA

(gritando e chamando.)

Ó povo! Ó povo!... Venham ver esta caloteira que me deve o peixe de há aquase meio ano e agora não mo quer pagar!...

LAVRADEIRA

Já te pagaste em “carne”!

SARDINHEIRA

Uma vez era a porca que estava p’ra parir; outra vez eram os bácaros que não estavam criados... Outra vez era a raposa que tinha comido as galinhas... Sua ladra!...

LAVRADEIRA

Ladra és tu que me trazes o peixe moído!

SARDINHEIRA

Ladra é você que me paga com ovos podres!

LAVRADEIRA

Eu pago-te já, queres ver...

(Avança para ela com a forquilha no ar. A Sardinheira segura-lhe a forquilha. Lutam pela posse da forquilha. Caiem no chão, rebolam, descompõem-se.)

UMA

Acudam! Acudam!

(Corre o Homem da Lavradeira e consegue separá-las.)

HOMEM

Tem vergonha, mulher. Tem vergonha... (para a sardinheira) E você, seu raio, ponha-se daqui para fora. Desapareça!

MULHER

(lutando com o homem)
Ó homem, larga-me... Larga-me que eu até tos arranco. Seu porco!

HOMEM

(Segurando-a)

Cala-te, mulher! ... Cala-te! Tem vergonha!...

SARDINHEIRA

Eu só saio daqui depois de me pagarem o que me devem.

HOMEM

Quanto é que se lhe deve, mulher?

SARDINHEIRA

São quatro pintos, um cruzado e trezentos reis!

LAVRADEIRA

Ah, seu coldre! Eu não devo nada disso!

SARDINHEIRA

Num deve? Ai isso é que deve. Está aqui tudo aponte no rol. (mostra um livro) Está aqui tudo, tim tim por tim tim...

Quer que lho mostre?

LAVRADEIRA

Limpa-lhe o cu!

SARDINHEIRA

E depois limpo-lho à cara...

LAVRADEIRA

(num novo rompante)

Ah traste, que eu esfrego-te! (Para o homem) Deixa-me cabrão! Deixa-me que eu desfaço-a...

(O Homem segura-a como pode. Ela esbraceja.)

SARDINHEIRA

Está aqui tudo tim tim por tim tim... Isto fala como gente...

(Troar de canhões, ao longe!.. .Tiros mais perto. A zaragata das mulheres acalma com a surpresa dos rebentamentos. Todos ficam ansiosos e olham para o local de onde vêm os rebentamentos.)

UM

Será outra vez a guerra?

POPULAR

(entrando)

Houve uma revolução em Aveiro!
Anda tudo aos tiros! Fujam! Fujam!...

(A Sardinheira pega na canastra e foge.)

SARDINHEIRA

Não perdes pela demora, caloteira!

LAVRADEIRA

(Mostrando uma rodilha)

Olha! Olha!... Quando o teu homem chegar, hei-de lhe dar a rodilha que deixaste em cima da minha maceira, quando foste fornicar com o meu homem!

SARDINHEIRA

Rodilhas há muitas, seu coirão!

(Faz-lhe um manguito. Dá uma palmada no rabo e sai. Entra um pelotão de granadeiros. Tomam posição de fogo. Toda a gente foge espavorida.)

COMANDANTE

Fogo!

(Disparam sobre a assistência. Escuro.)

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