Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

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(Som de clarins. Relinchar de cavalos. Tambores militares. Tropas em marcha. Troar de canhões. É a guerra. Em cena Luís Gomes de Carvalho e Cardoso Verney.)

GOMES DE CARVALHO

Sr. Superintendente, com a saída de S. Alteza Real para o Brasil ficamos mais expostos.

A obra da barra, à qual já demos seis anos da nossa própria vida, corre sérios riscos. Os inimigos da barra estão mais fortes.

A agravar a situação, esta maldita guerra que Napoleão Bonaparte nos impõe.

Estamos numa fase decisiva. Nem um dia podemos perder!

CARDOSO VERNEY

Pior do que isso, Sr. engenheiro: as populações estão outra vez em pé de guerra! Os nossos inimigos andam, outra vez, de bairro em bairro, de terra em terra, a sublevá-las...

Temos de abrir a barra, e já!

GOMES DE CARVALHO

Foram exactamente essas pressas que nos fizeram falhar, o ano passado e há dois anos...

CARDOSO VERNEY

Mas , nem o ano passado, nem há dois anos, a chuva foi tão intensa. Está a chover há dois meses seguidos, Sr. Engenheiro!

Depois, os paredões também não estavam tão avançados!

Se neste momento as águas da ria já só estão separadas das águas do mar por algumas braças de areia, eu não percebo, desculpe, eu não percebo qual a razão por que o Sr. teima em não rasgar esse bocado de areia e não acaba com este inferno de uma vez por todas!...

GOMES DE CARVALHO

Exactamente, Sr. Superintendente, porque quero acabar com este inferno de uma vez por todas...

É preciso que a caldeira da ria encha o mais possível, de modo a que se crie um grande desnível entre as águas interiores e as águas exteriores do mar. Quanto maior for o desnível, maior é a garantia de que, quando se fizer a ligação, a violência das águas arrastará, na sua frente, toda e qualquer resistência, abrindo uma entrada por onde possa entrar qualquer navio, por maior que seja o seu bojo ou calado.

Esta chuva, Sr. Superintendente, é um maná do céu... É Deus a colaborar connosco!

CARDOSO VERNEY

Tenho é receio que as populações que há tanto tempo não podem entrar em casa, que perderam ou estão em vias de perder o pouco que ainda lhes resta e morrem afogados, e não vêem qualquer saída para o seu desespero, compreendam os altos desígnios de Deus... E o seu espírito de colaboração connosco!

GOMES DE CARVALHO

Julga o Sr. Superintendente que eu não sei tudo isso? Só que a nossa obra é uma guerra da inteligência contra a força bruta da natureza e a incompreensão dos homens. A vitória está em sabermos aproveitar a nosso favor a força bruta e em ultrapassar a incompreensão humana!

CARDOSO VERNEY

Sim! Mas não se esqueça que tudo tem o seu tempo!

GOMES DE CARVALHO

Eu sei... Eu sei!... Toda a gente me acusa de estar fora de tempo...

ENCARREGADO

(entrando)
Sr. engenheiro, a diferença de nível é já de vinte palmos!...

GOMES DE CARVALHO

(dando um murro de satisfação)
Até que enfim!

(Chama para dentro.)

Maria Francisca, Maria Francisca!...

(Entra a Mulher)

MARIA FRANCISCA

Então, qual é a novidade?

GOMES DE CARVALHO

Quero que venhas connosco, vamos abrir a barra!

(Saem. Escuro. Luz no local da barra. Chegam Gomes de Carvalho, a Mulher, o Superintendente, o Encarregado e mais dois trabalhadores.)

(Subindo ao paredão e mirando a ria.)

Neste momento, desde este paredão até Ovar, desde a Murtosa a Cacia, desde Aveiro à Gafanha, desde S. Jacinto à Torreira, é um lençol de água de onze mil hectares! Com o desnível de dois metros sobre a água do mar, tal significa que, ao retirarmos a tapagem que aguenta a ria, ir-se-ão lançar no mar qualquer coisa como 220 milhões de toneladas de água!

Espero que esta força imensa, que até aqui temos dominado, depois de solta, faça aquilo que nunca ninguém fez: abrir definitiva e irrevogavelmente, a nova barra de Aveiro!

(Dirigindo-se ao Encarregado.)

Cláudio, tu e os outros cavem, sobre a duna e em direcção ao mar, um rego no local que eu vos indicar.

(Com o bico da bota risca na areia o bocal do rego.) Ao trabalho!

(Executam com grande celeridade. Falando para os demais.)
Nós vamos para cima do paredão.

(Para os que estão a abrir o rego.)

Atenção! Vocês aí, olhos e ouvidos atentos! Se por qualquer motivo imprevisto a água rebentar, fujam depressa para este lado do paredão, que ele nos defenderá.

(Vendo o relógio.)

São sete horas da tarde deste dia 3 de Abril de 1808. Estamos aqui meia dúzia de pessoas, quando devia estar aqui a cidade inteira de Aveiro.

Porque hoje vai ser um dia histórico para Aveiro. Como no terceiro dia da criação do mundo, as águas vão separar-se da terra!

A cidade inteira devia estar aqui, mas só estamos nós, porque apenas nós acreditamos naquilo que vai acontecer!

(Para Cláudio e os outros.)

Pronto?

CLÁUDIO

Pronto, Sr. engenheiro!...

GOMES DE CARVALHO

Tirem as estacas e saltem cá para cima. Depressa! Depressa!

CLÁUDIO

Cá vai!...

(Um estrondo enorme de água caindo rebenta sobre todos como se submergisse o mundo inteiro. O encenador deverá, com todo o seu engenho e os meios técnicos disponíveis, criar a ilusão que os milhões de toneladas de água da ria vão cair sobre os próprios espectadores, de modo que estes se sintam “submersos”. Quando a água da ria se encontrar com a do mar, um rugido maior, como se dois mundos embatessem um contra o outro. No meio do burburinho e do fragor da rebentação, as personagens devem (quase) desaparecer encobertas pelo nevoeiro provocado. Quando houver possibilidade de ser ouvido...)

GOMES DE CARVALHO

Vitória! Vitória! A ria venceu o mar!... A barra está aberta e nunca ninguém mais a fechará!...

(Beija a mulher. Abraçam-se todos. Grande alegria. Pouco a pouco o estrondo das águas é substituído pelo som de bombos e gaitas e ferrinhos. Arraial popular. Entra gente de todos os lados, cantam e dançam. Foguetes. No centro Gomes de Carvalho e os demais do grupo.)

POPULARES

(cantando)

Viva a cidade de Aveiro
Vivam os heróis da Ria.
Já temos a barra aberta, 
Voltou a nossa alegria! 

Viva o príncipe regente
Que nos deu muito trabalho.
Viva o Conde de Linhares
E o Sr. Luís de Carvalho!

Viva o Cardoso Verney
Que é um bom superintendente.
Vivam todos em geral
E viva também a gente!

MANDADOR

Força!

Viva o príncipe regente!

TODOS

Viva!

MANDADOR

Viva o engenheiro Gomes de Carvalho!

TODOS

Viva!

MANDADOR

Viva o povo de Aveiro!

TODOS

Viva!

(Voltam a cantar e a dançar.)

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